novembro 20, 2008

Memórias do hospício (II)

Foto: Rogelio Casado - Pavilhão de Terapia Ocupacional do HPER - Manaus-Am, jan/2005

Notal do blog: Em 1987, quando dirigia o Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro (HPER), fiz uma greve de fome para chamar atenção da opinião pública e do gestor de saúde dos perigos que rondavam a Reforma Psiquiátrica no Amazonas. O retorno dos representantes da psiquiatria conservadora ameaçava o que construímos ao longo de uma década. Entre as reivindicações acatadas pelo governo Amazonino Mendes, foi erguido um Pavilhão para a prática de Oficinas de Geração de Renda (aqui visto em 2005, quando um vendaval o destelhou), dado o sucesso do Grupo de Agricultura que produzia, mensalmente, uma tonelada de verduras; plantava roçado de mandioca, macaxeira, milho e feijão; mantinha uma casa de farinha e criava 60 cabeças de suínos. Após a construção do Pavilhão, em 1988, sustentamos até o final do anos 1980 a produção de redes de pesca, atividade que resgatava uma parte importante da vida e cultura dos internos do HPER. Hoje, não há vestígio de nenhuma dessas atividades, e o Pavilhão, que faz fronteira com a Av. Pedro Teixeira, na altura do Sambodromo, depois de ser utilizado como depósito, está subutilizado. Há uma esperança: a Terapeuta Ocupacional Márcia Maria é a única trabalhadora de saúde mental com um projeto digno da Reforma Psiquiátrica, capaz de atualizar os procedimentos requeridos pelo movimento por uma sociedade sem manicômios, bastante atrasados no Amazonas. Seu projeto de Reabilitação Psicossocial é o que de mais importante foi produzido nos últimos dez anos. Até o momento, nem ela, nem o projeto ganhou a devida visibilidade. Volto ao assunto.
Memórias do hospício (II)

Certamente a formação universitária não garante a prática dos princípios que norteiam a Reforma Psiquiátrica brasileira. Mesmo porque o currículo acadêmico vigente está longe de assegurar um ensino à altura do desafio civilizatório de por fim aos hospícios. Há quem defenda, recorrentemente, sua eterna humanização, sem colocar em causa as razões da deterioração do modelo. Não se trata de um vício incorrigível, mas de uma cena pedagógica que caducou, sem perceber que os novos tempos exigem transformações no relacionamento entre o louco e a cidade. Essa onda passará, no eterno movimento pendular das mudanças.

Se a criação do Grupo de Agricultura (composto por usuários de longa permanência no então Hospital Colônia Eduardo Ribeiro, no início dos anos 1980), representou um gesto radical na construção de um novo pacto a favor de um outro lugar – diferente do que fora instituído para o “louco” institucionalizado –, pacto que teve repercussão positiva na imprensa amazonense, o fato foi comprometido pela ausência de um referencial teórico que desse suporte no enfrentamento contra a submissão à lógica manicomial, baseada no estereótipo da vigilância, punição e restrição de informação.

A maior parte dos trabalhadores de saúde mental, desprovidos de outros referenciais para a compreensão e para a existência de outras formas de cuidar da loucura, acabaram contribuindo para a manutenção de um modelo obsoleto, incapaz de mediar e superar os conflitos decorrentes da cultura de exclusão social dos loucos, que há mais de dois séculos fustiga a humanidade. Com isso, deixaram de atender às demandas dos usuários e seus familiares, acumulando uma enorme dívida social.

Há um fator pouco mencionado nas análises sobre a acomodação ao modelo manicomial e seus ambulatórios medicalizadores: a origem de classe dos trabalhadores do setor. A tese marxista permite uma leitura mais realista do modus operandi do setor, quando se trata de construir a autonomia e cidadania do louco. Não há inocentes.

Manaus, Novembro de 2008.

Rogelio Casado, especialista em Saúde Mental
Pro-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários da UEA
www.rogeliocasado.blogspot.com
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