Nota do blog: Entre as matérias publicadas na imprensa nacional sobre o tema Saúde Mental, a do jornal O Popular se destaca por abrir espaço para os diversos atores em cena. Destaco o depoimento da companheira Deusdet do Carmo Martins, do Fórum Goiano de Saúde Mental, filiado à Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial. Mas chamo atenção para o último depoimento, no qual há uma curiosa aplicação do conceito de exclusão. Esse tipo de inversão vem sendo assumido por um setor, em que salvo as exceções de praxe, omitiu-se diante da tragédia vivida pelos loucos nos hospícios. Agora querem humanizá-lo. Esse filme a gente já viu.
MATÉRIA PUBLICADA NO JORNAL O POPULAR, de Goiânia, no dia 10 de novembro de 2008
SAÚDE
Lei fica no papel e doentes mentais sofrem com abandono
Após sete anos de reforma psiquiátrica, pacientes enfrentam falta de leitos e desassistência
Isabel Czepak
Para alguns, Marcos diz que é fazendeiro e dono de uma cobertura no Setor Bueno; para outros, conta que é agente do Exército Brasileiro em missão ultra-secreta e que desceu de pára-quedas no Parque Vaca Brava, vindo de São Paulo. Os colares extravagantes, a flor vermelha de tecido na lapela do casaco velho, o olhar e a eloqüência desconexa – ele garante ser capaz de falar cinco idiomas diferentes e parece misturar todos eles – mostram uma realidade bem diferente do seu mundo imaginário.
Seguranças, frentistas e porteiros que trabalham na Avenida T-5, nas proximidades do parque, contam que Marcos é alcoólatra e por vezes agride a si mesmo. Já foi visto batendo com a cabeça numa placa de concreto e está sempre exposto ao risco de atropelamento. Precisa de tratamento e não é o único, nem na rua e nem fora dela. Sete anos depois de publicada a Lei nº 10.216, que redirecionou o modelo de assistência em saúde mental no Brasil, promovendo a chamada reforma psiquiátrica, os direitos de muitos pacientes, inclusive à proteção, ainda não saíram do papel.
O modelo asilar, com internações em hospitais, está sendo banido, mas junto com a redução vertiginosa de leitos e a restrição das internações o que se vê é a desassistência. A estruturação da rede de serviços emergenciais e ambulatoriais e de residências terapêuticas não acompanhou o ritmo do desmonte dos leitos hospitalares.
Se antes os pacientes viviam trancafiados nas clínicas psiquiátricas, privados do convívio com a família e a sociedade, hoje, além de ficar perambulando pelas ruas eles também estão nas emergências dos prontos-socorros, nas cadeias ou em prisões domiciliares – neste caso, especificamente, sejam eles ricos ou pobres.
Em celas especialmente construídas nos fundos de um barraco pobre do Parque Real, em Aparecida de Goiânia, são mantidos encarcerados Nara, de 36 anos, e Fábio, de 44. Alberto (o nome é fictício porque foi essa a condição imposta pela irmã para conceder a entrevista), de 68, vive trancado na acomodação de serviço de um confortável sobrado com piscina de um dos bairros mais nobres da capital. Portador de psicose maníaco depressiva e agressivo, ele só extrapola os limites do pequeno quintal fechado por muros de quase 3 metros de altura sob efeitos de calmante. Cada uma por suas próprias razões, as famílias alegam que a clausura foi a única forma encontrada para proteger os doentes e a si.
As autoridades da área de saúde mental admitem a insuficiência da rede. Pesquisa do Ibope para a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) em 2007, com 2 mil doentes que dependem do setor público, revelou que apenas 33% conseguiram agendar consulta em menos de 30 dias, mesmo em crise. Em Goiânia, essa dificuldade pode ser sentida com maior intensidade no Ambulatório Psiquiátrico e no Pronto-Socorro Psiquiátrico Wassily Chuc. No ambulatório, 400 pacientes aguardam na fila de consulta. "Serão necessários quatro a cinco meses para zerar a fila", estima o coordenador municipal de Saúde Mental, Marcelo Trindade. A situação ajuda a explicar a sobrecarga do Pronto-Socorro Psiquiátrico. Pela unidade passam entre 100 e 110 pacientes por dia. De 30 a 40 precisam ser internados, mas quase metade está sendo medicada e orientada a esperar em casa. O Pronto-Socorro interna os casos mais graves, por 72 horas.
Os demais pacientes precisam ser transferidos para as clínicas, mas não há vagas. O problema é mais grave nos casos de dependentes químicos. Eles representam metade da demanda por internações e só podem contar com uma clínica. "Em geral, temos 4 a 5 vagas para cerca de 15 a 20 pacientes. Às vezes não temos nenhuma."
Coordenador cita melhoria dos serviços
O coordenador municipal de Saúde Mental, Marcelo Trindade, concorda com as críticas e destaca que realmente houve um descompasso entre o desmonte das clínicas e a estruturação da chamada rede substitutiva. "A rede não consegue absorver todos que precisam e, portanto, temos mais pacientes reincidindo e, conseqüentemente, mais internações para menos leitos", afirma.
Trindade diz que a população também não foi preparada para a reforma e cobra as internações, até por questões culturais. Ele diz, no entanto, que a capital está investindo na estruturação da rede. Tem inclusive um projeto de geração de renda.
Treinamento
Duas novas residências terapêuticas estão prontas e mais quatro Centro de Atendimento Psicosocial (Caps) serão inaugurados, o que garantirá uma cobertura de 80% da população. "Além disso, estamos treinando os médicos do Programa de Saúde da Família para dar suporte às equipes de psiquiatria no acompanhamento de rotina dos doentes."
No Estado, a estruturação anda mais lentamente, conforme o gerente de Desenvolvimento do Sistema e das Ações de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde (SES), Petronor de Carvalho. Ele confirma que o Estado tem sido insistentemente cobrado em relação à ampliação da rede e precisaria abrir mais 25 Caps.
O Ministério da Saúde rebate, por meio de sua Assessoria de Comunicação, que o modelo brasileiro tem recebido elogios internacionalmente e que já conseguiu avanços consideráveis no setor.
A presidente do Fórum Goiano de Saúde Mental, Deusdet do Carmo Martins, concorda. Ela diz que a desassistência existe porque os governantes não dão a devida atenção aos doentes. "Os leitos foram desativados, mas não foram feitos os investimentos necessários na assistência."
Caps 3
Em sua opinião, o Estado de Goiás já deveria ter Caps 3 (com internação de emergência e atendimento 24 horas) e equipes do PSF dando apoio no acompanhamento dos doentes, além de mais residências terapêuticas.
"A solução para os pacientes que estão vivendo nas ruas não é a clínica, mas locais onde eles possam viver dignamente, inseridos na sociedade, mas ao mesmo tempo protegidos."
Filhos são mantidos em cárcere domiciliar
O pai de Nara e Fábio, o pedreiro aposentado Lázaro Ferreira dos Santos, de 68 anos, conta que a filha já nasceu doente. O filho manifestou a esquizofrenia no final da adolescência. Ambos já viveram em clínicas, mas desde 1982, devido à pressão do movimento antimanicomial, o pai optou pelo cárcere domiciliar.
"Ela é agressiva e pode se machucar ou machucar alguém. Ele só agride se estiver em crise, mas já ficou desaparecido por quatro anos."
Nara e Fábio tomam medicamentos controlados, mas sem ir ao médico. "Eu vou lá e ele dá a receita." Os irmãos não fazem um exame de sangue há mais de dez anos. Lázaro diz que não enxerga direito para dirigir o velho carro. "A vida deles é comer, fumar e dormir."
O vício é alimentado pelo próprio pai, que enrola os palheiros em folhas de revista. A quem fica chocado com a situação, seu Lázaro aponta para a filha enclausurada e diz: "Ali ela não tem felicidade, mas também não tem sofrimento."
Luxo
Com 55 anos, aposentada, a irmã de Alberto, que é professora, vive sozinha na casa com ele. O tratamento do doente é regular e feito em uma das clínicas mais conceituadas da cidade, com médico do plano de saúde. Os remédios são ministrados religiosamente. Mas Alberto é mantido trancado, segundo a irmã, por questão de segurança. Está assim há dez anos.
"O médico me disse que não posso dar as costas a ele. Se fizer isso, corro o risco de ser agredida", afirma. "Como ninguém quer trabalhar em casa onde existe doente mental e nenhum abrigo ou clínica aceita portador de transtorno para morar, nem pagando, não me sobrou outra solução."
Com diagnóstico de câncer desde abril, em tratamento da doença, a professora assinala que não agüenta mais viver "eternamente de plantão". "Ele grita muito e bate as portas à noite e, como fuma, já causou princípio de incêndio na casa várias vezes", relata.
"Eu vivo estressada e com medo. Ele consegue escapar. Já o surpreendi no meu quarto, olhando pra mim. Outra vez, desapareceu na rua."
Sumiço
A professora, que cuidou da mãe, também doente mental, diz que o irmão ficou sumido por 50 anos e quando voltou para casa era um desconhecido para ela. "Ele desapareceu de casa quando eu tinha uns 3 anos. Aí, de repente, tive de cuidar de alguém que era um estranho para mim."
Indignação
Com seus próprios problemas de saúde, bastante graves por sinal, a professora fica indignada por não poder contar com a família (ela tem dois irmãos que não a ajudam a cuidar de Alberto) e com o governo.
"Sou uma cidadã, pago impostos e caro. Mas não consigo encontrar um lugar que dê assistência ao meu irmão, nem pagando eu encontro apoio", declara, aos prantos.
"As autoridades querem que cuidemos deles, mas somos pessoas comuns. Não estamos preparados para isso como elas imaginam que estamos."
* * *
Leitos no HGG foram fechados
Reforma psiquiátrica previa também a criação de casas-abrigo, mas vagas são insuficientes
Isabel Czepak
A reforma psiquiátrica estipulou que os leitos extintos em clínicas deveriam ser substituídos por leitos psiquiátricos em hospitais gerais.
Pacientes sem vínculos familiares deveriam ser inseridos em residências terapêuticas, casas comuns com capacidade para oito pessoas, no máximo, onde ficariam sob a responsabilidade de cuidadores respaldados pelas equipes dos Centros de Atenção Psicossocial. Não é isso que ocorre.
Os poucos leitos psiquiátricos que existiam no Estado, no HGG, foram fechados e são apenas 13 residências terapêuticas, para privilegiados. Pelo menos 15 pessoas continuam vivendo em clínicas psiquiátricas, dez delas em medida circular, ou seja, fazem rodízio entre as clínicas enquanto as equipes de assistentes sociais tentam convencer suas famílias a recebê-las.
O fechamento do Adauto Botelho, considerado símbolo do atraso pelos adeptos da reforma, não virou esta página da história da assistência psiquiátrica no Estado e o que é pior: pacientes que antigamente eram levados para o manicômio e esquecidos lá, hoje estão largados nas ruas, expostos à violência ou provocando-a.
O Hospital de Urgências de Goiânia (Hugo) com freqüência recebe doentes vítimas de acidente ou agressão, como o cearense Jorge, de 72 anos. Ele próprio conta que foi baleado na perna pela polícia ao tentar matar uma pessoa com uma foice. "Ele me roubou", justifica. Cabelos brancos, fala enrolada, seu Jorge conta que veio para Goiás a pé, há 50 anos, e vive pelas estradas. "Não agüento ficar parado." Consigo, leva panelas, dois cachorros e uma inseparável garrafa de pinga. "Tomo uma garrafa a cada dois dias, para esquecer as tristezas da vida." Jorge diz que nunca se casou, mas gostaria de ter uma casa e criar galinhas.
Para um paciente como Jorge, sair do Hugo é complicado. Se antes iam para as clínicas psiquiátricas, hoje eles vão para abrigos, mas é difícil arrumar algum que os aceite e, de lá, acabam indo de novo para a rua.
Das ruas, os doentes mentais também vão parar nas cadeias. Sem medicação, dependentes de álcool, eles acabam praticando delitos. Às vezes se envolvem em brigas. Outras, por causa da falta de controle dos próprios atos, estupram, roubam, furtam. O POPULAR mostra em reportagem na sua edição de amanhã que 75 pessoas estão cumprindo penas como presos comuns apenas no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, embora a lei lhes assegure o direito a tratamento. Por falta de advogados ou em função da morosidade da Justiça, eles simplesmente não conseguem ter acesso às medidas de segurança, que assegurariam seu tratamento.
Processo se arrasta há 20 anos
A luta antimanicomial começou no Brasil há 20 anos, inspirada no modelo criado pelo italiano Franco Basaglia, que, em 1961, assumiu a direção do Hospital Psiquiátrico de Gorizia e transformou o manicômio em uma comunidade terapêutica, com princípios humanistas. Há 18 anos, o então deputado Paulo Delgado apresentou projeto de lei propondo o fechamento dos hospícios, mas a política antimanicomial só foi estabelecida em 2001.
A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) é a maior crítica da reforma psiquiátrica. Há dois anos, a entidade apresentou ao Ministério da Saúde um documento com diretrizes para a Política de Saúde Mental no País. Relator do documento, o psiquiatra Salomão Rodrigues Filho diz que ABP não defende o modelo antigo. Mas também não concorda que o atual seja adequado. "Defendemos um modelo de assistência integral, que contemple a promoção da saúde e prevenção das doenças mentais, a assistência ambulatorial, o atendimento de urgência e as internações", diz.
"Está havendo uma exclusão do hospital e do médico da atenção psiquiátrica", afirma Salomão Rodrigues.
Nenhum comentário:
Postar um comentário