PICICA: "Em ‘O método’ (2005), o diretor Marcelo Piñeyro leva às
últimas consequências o princípio excludente que estrutura nossa
sociedade: se os recursos são escassos e é preciso competir sem
restrições, escrúpulos devem ser relegados como um fardo sumamente
desnecessário."
Cultura| 19/08/2013 | Copyleft
Discurso sobre o método
Em ‘O método’ (2005), o diretor Marcelo Piñeyro leva às últimas consequências o princípio excludente que estrutura nossa sociedade: se os recursos são escassos e é preciso competir sem restrições, escrúpulos devem ser relegados como um fardo sumamente desnecessário. Por Flávio Ricardo Vassoler
Flávio Ricardo Vassoler*
− Mas, apenas por curiosidade, o que você faz?
A pergunta aparentemente impune que fazemos ao outro durante os primeiros momentos de conversa já articula o discurso sobre o método. Desde situações formais do âmbito de trabalho até a (suposta) intimidade que nada tem – ou pior, nada teria – a ver com a reprodução das estruturas de poder social, a competição com o outro e seu enquadramento hierárquico se insinuam como categorias do nosso olhar.
Assim como o filme ‘O método’ (2005), direção de Marcelo Piñeyro, ao longo do qual postulantes a um cargo de uma multinacional se veem agrupados em uma sala para a participação nas mais diversas provas que os arremessam, necessariamente, uns contra os outros, proponho agora um jogo – ou pior, uma ficção que poderia ser menos real: imagine que, ao invés de responder à pergunta que dá início a este discurso sobre o método, você tivesse que escrever sobre sua pele todos os caminhos já percorridos para (tentar) chegar até onde chegou.
− Mas, ora, isso nos obrigaria a andar nus! Como é que eu poderia mostrar toda a minha capacidade se meu currículo longilíneo não cabe apenas nos meus braços à mostra?
Assim falou Maurício Pompeu de Toledo Filho e Neto. Pois é isso mesmo, Maurício: andemos nus para desvelarmos todos os nossos esforços sob a forma de tatuagens de mérito contra a pele nua. Nesse caso, quanto mais superfície de contato, mais possibilidades de currículo – em meu jogo, o discurso sobre o método acaba valorizando pessoas acima do peso que tenham mais pele e mais coisas válidas a dizer sobre suas trajetórias.
Só que o jogo que proponho, livremente inspirado em A colônia penal, de Franz Kafka, não demanda apenas tatuagens de mérito. É preciso escrever e descrever sobre o corpo nu, logo ao lado das (insufladas) conquistas, as muitas derrotas e frustrações. E mais: vitórias com caneta azul; agruras em vermelho. (Ora, o sangue passará a circular sobre a nossa pele.) As tatuagens do mérito narcísico passarão a lutar contra as cicatrizes de nossas decepções.
− Mas o que pretendem os funcionários do RH que nos vão entrevistar?
Em nosso discurso sobre o método, os entrevistadores sopesam com o mesmo valor tanto o curriculum vitae quanto o curriculum mortis. A entrevista de emprego assume os ares do confessionário católico: é preciso haver autopromoção e penitência. Autopenitência. Devemos mostrar nossa culpa antes que sejamos interpelados.
O jogo que proponho transforma o corpo em um campo de batalha. Ora um outdoor, ora o alvo da vergonha (própria e alheia); ora um veículo de relações públicas, um merchadising ereto, ora um exemplar resumido do código penal – os espíritos empreendedores poderiam vender os corpos majoritariamente vermelhos como apostilas de estudo para os candidatos a concursos públicos.
Aqueles e aquelas entre vocês que se sentiram algo incomodados com o jogo em questão trazem muito da náusea que clama por uma sociedade outra. (Na atualidade, eis o bunker da utopia.) Nosso jogo parece fruto de um esboço para um conto enquadrado pelo gênero fantástico, mas o absurdo kafkiano que desponta a priori procura mostrar a brutalidade do cotidiano que há muito introjetamos como transcurso “natural” das relações. Senão, vejamos: sempre que nos candidatamos a determinado posto, não é preciso apresentar um curriculum vitae que nos insufle como se fôssemos exemplares em miniatura de Júlio César? Diante do entrevistador, podemos demonstrar fragilidade e hesitação? Podemos ser humanos?
Ora, nosso discurso sobre o método me parece mais sincero: a ficção que nos deixa nus pede que nos dispamos por inteiro. As vitórias e os muitos fracassos, os méritos ao lado das mentiras e picaretagens, o altruísmo se esgueira pela culpa.
A diferença fundamental é que, em nossa colônia penal sem torres de vigilância, sentinelas e muros imediatamente delimitados, já não nos revoltamos com o fato de termos que ser cativos do (suposto) sucesso. E a patologia competitiva chega ao ponto de não sabermos mais quando estamos representando – isto é, nos insuflando – e quando estamos falando de fato sobre nós mesmos. (Pois ainda somos capazes de hesitar, não? O carrasco de nossa consciência socialmente gerida aconselha coercitivamente a não respondermos a esta pergunta nem para nós mesmos.)
Caro leitor e cara leitora, não lhes parece bárbaro que não possamos revelar a nossos empregadores – que, salvo engano, também passaram pelas vexatórias entrevistas de emprego, não? – que temos apenas uma noção pálida do que faremos nos próximos 5 ou 10 anos? Se não sabemos ao certo se estaremos empregados, como podemos responder à questão sobre quanto esperamos ganhar mensalmente? Por que não podemos dizer que foram as derrotas sucessivas que nos ensinaram, de maneira trôpega e errante, que não deveríamos seguir por uma vereda x, mas talvez, e não mais do que talvez, optar pelo caminho y? Não, não: tudo deve ser assertivo e inequívoco; burocrático, hierárquico e autoritário como as prateleiras dos parágrafos de nosso curriculum vitae. Criamos uma narrativa sobre nossa própria aridez, vestimos a verdade das máscaras. Tudo deve ser assertivo, inequívoco – e sintético como uma sentença capital.
Em ‘O método’, o diretor Marcelo Piñeyro leva às últimas consequências o princípio excludente que estrutura nossa sociedade: se os recursos são escassos e é preciso competir sem restrições, escrúpulos devem ser relegados como um fardo sumamente desnecessário. Eis uma atividade que a multinacional propõe aos candidatos hermética e voluntariamente encalacrados na sala de reuniões: vocês todos estão em um bunker porque houve uma hecatombe nuclear. A comida é escassa. Nesse sentido, cada um de vocês deve provar como, nessas condições, suas habilidades são úteis à sobrevivência do pouco e dos poucos que ainda restam. Os inúteis serão eliminados – ou pior, demitidos.
A maioria dos postulantes ao cargo multinacional pertence ao sexo masculino. O pátrio poder prevalece e joga a tensão para as duas mulheres que restam. A primeira é jovem e esbelta; a segunda já ultrapassou a barricada dos quarenta anos.
− Em que vocês nos podem ser úteis? – perguntam os candidatos que já se eximiram. Pois a jovem candidata aceita o estupro visual dos machos alfa e se oferece como bode expiatório:
− Ora, eu serei a mãe de todos os seus filhos!
Logo vemos e ouvimos a unanimidade masculina batendo palmas e assoviando. Mas agora os olhares ogivas se dirigem contra a mulher aos 40 e tantos anos. “Em que você – ou pior, a senhora – nos pode ser útil?” A candidata a princípio silencia e depois começa a gaguejar – sinal de que o curriculum vitae já se confunde com o curriculum mortis. Cada segundo de hesitação prepara a carta de demissão – ou “desligamento”, como quer a nova linguagem asséptica do profissionalismo.
O darwinismo social dos candidatos remanescentes – e de nossa colônia penal – sentencia a candidata infértil ao exílio do desemprego. Penso, logo existo: a ex-candidata não precisa ouvir da funcionária do RH que é preciso amealhar seus escombros e sair da sala de competição o quanto antes. O discurso sobre o método já se confunde com o discurso da servidão voluntária. Agora, os jovens candidatos irão se devorar até que a passagem do tempo – essa inútil desvantagem comparativa que o darwinismo social não consegue eliminar – traga novos corpos e currículos para que o método continue a reciclar a senilidade humana.
Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). A partir do dia 02 de setembro, passará a apresentar o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – segundas-feiras, às 19h, na TV Geração Z: www.tvgeracaoz.com.br. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
Fonte: Carta Maior
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