PICICA: "Texto coletivo da rede Universidade Nômade, de que este blogue participa, sobre a farsa encenada no 3º Fórum de Mídias Livres (FML)
no Fórum Social Temático 2012, os novos modelos de negócios e suas
capturas (Facebook, Google, cultura livre, digitalismo etc), a
exploração das redes e a perspectiva do comum. Assume a rede Fora do
Eixo como estudo de caso, reconstruindo o debate."
O comum e a exploração 2.0
O 3º FÓRUM DE MÍDIAS LIVRES
O 3º Fórum de Mídias Livres (FML),
realizado em Porto Alegre no escopo do Fórum Mundial Temático 2012, foi
marcado pelo apelo à convergência. Os desafios para a democratização das
comunicações no Brasil dependem de uma mobilização abrangente, de amplo
espectro articulado em rede, dos grupos, coletivos e veículos que
trabalham à margem dos conglomerados das comunicações. A chegada de Ana
de Hollanda como ministra da cultura de Dilma, com suas relações íntimas
com o ECAD, a dita “classe artística” e a grande indústria fonográfica,
acabou por fechar as portas do governo aos novos protagonistas do campo
cultural e das mídias livres. Em menos de um ano, o MinC da Holanda
tornou-se um reduto de defesa aristocrática da “arte” contra a cultura.
Daí os apelos no 3º Fórum quanto ao respeito às diferenças para a
expansão de redes contra-hegemônicas ao establishment representado pela
indústria cultural nacional e internacional. No “espírito do tempo”
dessa convergência, não há lugar para purismos, dogmatismos,
academicismos, para qualquer esboço de retorno a formas ultrapassadas de
militância, consideradas analógicas ou “1.0″.
A rede Universidade Nômade, inclusive por
meio da Revista Global/Brasil, participou dos dois fóruns anteriores, no
Rio de Janeiro (2008) e em Vitória (2009). Em ambos, não só debateu
horizontalmente, como contribuiu para a formulação de uma frente
transversal de construção para as novas mídias livres e/ou redes
colaborativas. O que se traduziu, por exemplo, na política dos Pontos de
Mídia Livre. Numa perspectiva materialista, de fato, não adianta
aferrar-se a elaborações teóricas ou cartilhas utópicas, mas, sim,
identificar movimentos e lutas reais que já estão constituindo uma
alternativa ao modelo da grande mídia e grande indústria cultural. Desde
os primeiros fóruns, consideramos acertado o diagnóstico da importância
de colocarem-se tarefas concretas para a coordenação de movimentos
sociais, redes militantes e/ou mídias auto-organizadas de cauda longa.
No sentido que esses vários agentes (pontos, singularidades) se
qualifiquem cada vez mais para, no limite, constituirem-se como uma teia
múltipla e politicamente organizada contra o status quo. Noutras
palavras, constituirem-se como um comum produtivo, material e
antagonista ao capitalismo: seja ele 1.0 ou 2.0, analógico ou digital.
A 3ª edição do FML, no entanto, causou
estranheza. Seu calendário, a composição das mesas e suas pautas, foram
pré-definidos por um círculo fechado que, quando teve a legitimidade
contestada, tentou legitimar-se apelando às atividades de um “comitê
executivo”, instituído em 2008, e cujas atividades e deliberações não
foram apresentadas aos midialivristas em lista aberta. Em princípio,
participaram desse comitê os cabeças de algumas organizações já
estabelecidas. Ou seja, a maioria dos midialivristas não participou da
construção do 3º FML: um evento pré-formatado e pré-pautado. Essa
centralização havia se tornado conhecida pelo vazamento de um e-mail
assinado por Pablo Capilé, do circuito Fora do Eixo (FdE). Vide: http://www.4shared.com/office/sgjElRbI/2012_e_as_Redes_em_Rede.html?refurl=d1url
A mensagem, dirigida a grupos “parceiros”, convoca a
formação de redes em rede e contém um calendário e uma pauta completos
para 2012. Esse pacote inclui o Fórum de Mídias Livres em Porto Alegre,
mas também o Festival Digitália, o Grito Rock, os encontros anuais do
próprio FdE e da Casa de Cultura Digital e, finalmente, a decisão já tomada
de organizar um Fórum Mundial de Mídia Livre em ocasião da Rio + 20.
Entre as redes “parceiras”, citadas porém não consultadas: Pontos de
Cultura, Pontos de Mídia Livre e Espaços Hackers. Quando interrogações e
vozes dissonantes começavam a se fazer ouvir, o próprio Capilé informou
que “não precisamos mais ficar lotando a caixa de emails de ninguém
aqui com um debate que será feito a partir de agora em outras listas” Vide: http://www.4shared.com/office/VGSr5KU9/2012_e_as_Redes_em_Rede_-_2.html?refurl=d1url
O 3º FML em Porto Alegre aconteceu num ambiente onde o
dissenso foi rapidamente desqualificado, e onde a convergência veio
pré-estabelecida de cima a baixo. Uma forma de organização que lembra
não só a burocracia estatal, como também aparelhos meramente
partidários, em que são camufladas a hierarquização e a fragmentação por
meio da mística do consenso. Ao invés de momento para a construção
democrática, o FML se tornou o lugar de ratificação burocrática de
decisões tomadas antes, alhures e por outrem! O FML tornou-se assim o
teatro de mais uma comédia da representação.
Diante disso, vale a pena problematizar o
estado do processo de constituição de “mídias livres” e mais em geral o
movimento da “cultura” de resistência à restauração no MinC. O que
significa o apelo de convergência e ao que, afinal, se pretendem fazer
convergir as redes? O que está em jogo nesses consensos cada vez mais
impermeáveis e institucionalizados, que são reproduzidos, muitas vezes
na sua essência acriticamente, nos fóruns e encontros culturalivristas e
midialivristas? O que significa que as redes (no plural) agora devam
constituir-se em uma só rede?
AS REDES E OS NOVOS MODELOS DE NEGÓCIOS
De tempos para cá, se tornou costumeira a expressão “gestor de redes” e “redes em rede“.
Por gestão de redes se entende a atividade de ligar os pontos e trançar
os fios do que passa a ser uma cadeia produtiva. O gestor opera como um
agregador dos múltiplos nós produtivos da economia da cultura. Por um
lado, gere o fluxo de equipamento e trabalhadores (gestão de eventos,
carreiras, plataformas); por outro, o fluxo do dinheiro (editais,
patrocínios, investimentos, lucros). Na música, por exemplo, significa
articular bandas, casas de show, plataformas, equipes técnicas,
promoters, produtores, publicitários, críticos e intelectuais. Essas
conexões compõem uma rede que o gestor administra, promovendo o
empreendedorismo dos participantes e sob o guarda-chuva de uma marca. A
marca, por sua vez, é construída como um modo de engajamento de seus
trabalhadores, um jeito característico de trabalhar, vestir-se,
negociar, em suma, uma ética e uma estética, uma forma de vida: um
coletivo. O objetivo deste concerto passa a ser implementar a marca até
se obter um conglomerado de redes, integradas ou “parceiras”. Funciona
como um brand management, pelo qual se aplicam e
aperfeiçoam processos e técnicas de marketing, determinados pelas
oportunidades (e ameaças), com vistas a expandir, controlar e conservar
os mercados. O processo vai produzindo sinergia e se constituindo como
mercado (cultura) flexível, eficiente, sinergético, horizontal, em suma,
livre como na expressão livre mercado . Tudo isso se ensina
tranquilamente nas faculdades de economia ou administração da FGV, PUC,
da COPPE/AD da UFRJ etc.
A REDE COMO NOVO MODELO DE NEGOCIO
Criado ao redor da música independente
(indie), o Fora do Eixo opera mais fortemente na cadeia produtiva da
música e se organiza no formato de coletivos de produtores. O FdE, aqui,
é fora do eixo produtivo das grandes gravadoras e produtoras, e não
somente fora do eixo RJ-SP. Para ser autônomo, é preciso não só fazer
música fora do mainstream, mas passar a ter controle sobre os processos
de distribuição, divulgação, organização de eventos, parcerias etc. Ele
conta com gestores “orgânicos” que se entregam 24 horas para a “causa”,
numa moral do trabalho que lembra tanto as vanguardas profissionalizadas
de militantes liberados quanto o executivo workaholic das
multinacionais. Desde 2005, o FdE se expandiu à margem das redes
oligopólicas da indústria fonográfica, de laços amiúde familiares e
muito verticalizados. Ele se propõe a desenvolver a cauda longa de
produtores e bandas pelo país, sem se subordinar à indústria cultural.
Nesse intuito, vem organizando shows, festivais, turnês, encontros,
debates e fóruns, fornecendo plataformas e espaço para bandas menores e
artistas jovens, iniciantes ou com pequenos públicos. Nos anos Lula, o
FdE foi bem-sucedido em angariar sistematicamente verbas de editais do
Ministério da Cultura (MinC), bem como patrocínios (que também são
públicos) de empresas e bancos.
Assim como outros grupos
político-culturais aliados ao MinC de Gilberto Gil e Juca Ferreira,
encampou o discurso culturalivrista e digitalista, de contraposição aos
atravessadores tradicionais e à supervalorização do artista criador.
Trata-se de uma concepção de novos modelos de negócios, adaptados à era
digital, às licenças Creative Commons e à riqueza das redes onde a
informação não teria rivais.
A PRIMEIRA GERAÇÃO DE CRÍTICAS AO NOVO MODELO DE NEGÓCIOS
Dentre as críticas ao FdE, destacam-se:
1) a dependência de verbas estatais, 2) o caráter político do grupo, 3) a
exploração dos artistas com o não-pagamento ou minoração dos cachês, e
4) um comportamento predatório dos mercados.
2) Quanto ao componente político, à direita, a crítica tende a se contradizer, pois a indústria cultural e a grande mídia igualmente mantêm uma agenda política, rigorosamente ideológica mesmo ao silenciar a respeito de suas opções e tendências. A diferença do FdE é assumir agressivamente a pauta política, inclusive no jargão de seus membros. Já na vertente à “esquerda”, o FdE banalizaria as lutas sociais e marchas, esvaziando o seu caráter conflitivo e antagonista. Sua aparência esquerdista não passaria de estratégia de marketing para cooptar o sentimento de revolta e insatisfação da juventude. Porém, diz-se, não ataca o sistema; pelo contrário, é parte dele. Essas avaliações, das quais o coletivo Passa Palavra é emblemático, acabam reduzindo a crítica à denúncia do desvio entre teoria e prática. É preciso avançar a análise sobre a matriz da exploração no contexto do capitalismo cognitivo, assim como a composição de classe que lhe resiste, o que falta nessas análises em comento. Não percebem como a teoria circula e viabiliza certas práticas e vice-versa, como a teoria é pensamento estruturado e organizado para fazer sentido e ser efetivo em determinado contexto de relações. Numa perspectiva materialista, não adianta acusar o FdE de anticapitalista de menos, ou de falsidade ideológica, mas destrinchar a matriz prático-discursiva que possibilite algo como o FdE avançar ao mesmo tempo sobre mercados e espaços tradicionalmente ocupados pelas esquerdas. O que interessa não é demonizar o FdE, como se fossem “traidores”, mas entender como, por quais mecanismos um novo modelo de negócio avança e consegue fazer operações de hegemonia nas redes de movimento. Até o ponto de ser – mundo afora – apresentado academicamente como “rede de ativismo descentralizado”.
3) Outro bloco de críticas circunda o
pagamento dos cachês. O FdE aufere verbas públicas e de patrocínio,
porém não remunera diretamente a maioria dos artistas que performam em
seus shows e festivais. Geralmente paga passagens, alimentação e
hospedagem apenas para os músicos (e não à toda a equipe), o que não
deixa de consistir numa remuneração indireta, mas não os cachês. Em
parte, isto decorre da própria concepção de cultura como cadeia
produtiva. Em vez de ser encabeçada pelo artista-criador, como no
discurso reacionário do ECAD e do MinC da Dilma, a economia da cultura
se faz com a cauda longa de produtores, trabalhadores e serviços
agregados. Daí a menor importância conferida aos cachês, em relação à
retroalimentação do processo como um todo. Ao atribuir ao artista um
papel quase sagrado na produção, deixando de lado o processo social como
um todo, essa crítica também é insuficiente, embora legitima na boca de
artistas que se recusam a entrar no esquema do Cubo Card: ou seja de
receber pagamentos com base em títulos emitidos pelo próprio FdE, algo
como uma moeda complementar.
4) Finalmente, quanto à predação, o FdE
não esconde a sua estratégia de inserção e dominação dos mercados. Não à
toa, num Fórum de Mídias Livres e no Fórum Social em geral, o extremo
pragmatismo de seus membros em contornar debates para concentrar-se nas
pautas do próprio grupo e suas possíveis convergências (parcerias e
negócios). Atualizando o par estratégia/tática, o FdE não cansa de
esclarecer que mantém a hegemonia sobre suas composições com grupos
estatais ou privados: o MinC, a Petrobrás, o Itaú Cultural, a Coca-Cola
etc, pois estaria “hackeando” essas instituições menos do que sendo
“hackeado” por elas. Novamente, neste âmbito, o FdE lembra tanto uma
vanguarda leninista (na luta expansionista por hegemonia), quanto uma
multinacional (na luta expansionista pelo controle dos mercados). Se o
linguajar é “pós-pós”, a prática é bem aquela de uma captura de novas
redes produtivas dentro de uma só rede, sendo essa estruturada segundo
os métodos mais tradicionais do século 20. A pauta — importantissima —
da flexibilização dos direitos autorais acaba sustentando como que uma
“vontade geral”. Ora, quando tratada fora de um contexto de luta contra a
mercantilização da vida, a flexibilização dos direitos autorais serve
mais ao capital do que aos movimentos. Afinal, no novo modelo de
negócios que o Facebook ou a Google expressam bem, enquanto muitos
trabalham de graça (free, livre) em frente seus computadores, investindo
suas vidas na internet, poucos ganham rios de dinheiro no mercado
financeiro. O mesmo vale para o mercado fonográfico, e para cultura
digital em geral, onde muitos trabalham de graça enquanto os gestores,
ou produtores culturais dos grandes festivais e suas polpudas verbas de
publicidade, negociam milhões. Esse é o novo modelo de negócios que
tenta rearticular o capital no campo dos comuns, para rearranjá-lo no
interior mesmo de sua nova crise. Assim, a multidão é liquidada à
crowdsourcing, o objeto da exploração do trabalho livre, no sentido de
gratuito.
A PERSPECTIVA DO COMUM
As lutas, ocupações, marchas e acampadas
globais exprimem um desejo de mudança e uma forma de organização que as
conferem um caráter antissistêmico. Contudo, a crise global, essa
proliferação de acontecimentos e embates, tanto pode resultar numa
ruptura com o capitalismo global financeirizado, quanto numa nova
reestruturação e captura, uma nova síntese, em suma, em algo como um
altercapitalismo (ou capitalismo 2.0). Esse capitalismo já se anuncia
como um regime de acumulação que abre mão da retórica e até das
instituições democráticas, servindo como exemplo o caso da Itália, onde o
sistema financeiro global decidiu compor ele mesmo o gabinete de
governo do país, com o primeiro-ministro Mário Monti. Por isso, é
preciso assumir a situação de crise na sua dimensão ambivalente,
propugnando pelo aprofundamento do ciclo de lutas, ou seja, pela
radicalização da crise. Daí a relevância de uma perspectiva da crise que
não perca de vista a dimensão antagonista, em vez de convergir
convenientemente para uma síntese neutralizada.
Dito isto, uma boa maneira de apreender as alternativas da crise se dá por meio da perspectiva da constituição do comum.
O comum, na esteira do marxismo
operaísta, da filosofia da diferença e da antropologia canibal, é uma
organização política das relações produtivas e materiais. Não só como
modalidade de convivência, cooperação e produção, mas também como base
material para a auto-formação e auto-valorização do trabalho, das redes
colaborativas, da criação de formas de vida a partir de formas de vida,
da constituição antropofágica de perspectivas de mundos além do
capitalismo. O comum está além do público-estatal e do privado, como
esfera transversal onde cultura, economia e política se amalgamam
gerando potências de vida: biopolítica e auto-valorização. Trata-se da
ocupação intensiva do espaço e do tempo, sob outra gramática
organizacional. Uma organização heterogênea que se constitui não para
nivelar as diferenças, mas para produzir a partir delas, gerando novos
entes e processos. Sob a perspectiva do comum, se podem abordar e
elaborar estratégias para muitos campos políticos: a gestão de recursos
naturais e da própria relação entre natureza e cultura; a produção e
reprodução da vida social (saúde, educação, políticas da mulher, ações
afirmativas); a geração, circulação, distribuição e alocação de energia,
renda, conhecimento e direitos.
Discordando dos saint-simonianos digitais
(ou tecnutopistas) e dos ultra-liberais das redes, é preciso admitir
que a centralidade do comum não significa que as dinâmicas produtivas
que o constituem não sejam objeto de novas investidas do capitalismo,
pós-moderno ou cognitivo. Quer dizer, da reconfiguração das relações
sociais atravessadas pela divisão de classe e pelo comando capitalista. O
domínio do comum também (ou sobretudo) é passível de expropriação.
Com efeito, o que muda é a exploração:
o capitalismo 1.0 organizava a cooperação entre as forças produtivas
para poder explora-las. O “comum” era assim “produzido” (e imediatamente
subsumido) na divisão capitalista do trabalho (na relação salarial) e
explorado indiretamente, por meio dessa divisão técnica. O capitalismo
2.0, ao contrário, explora diretamente o comum (a colaboração) que já
existe, como condição prévia: o trabalho colaborativo entre as
singularidades (os pontos). No capitalismo 1.0, a exploração determina a
colaboração. Um paradoxo que emerge na ambiguidade dos temas do
“emprego”. No capitalismo 2.0, a colaboração é condição da exploração e
por isso pode acontecer por fora da relação de emprego, na precarização
da relação salarial, no terreno da empregabilidade (workfare).
A empresa capitalista, neste cenário, não
pode mais controlar diretamente a produção. Porque, na economia da
cultura e do conhecimento, a dinâmica do valor está concentrada no
capital variável. Noutras palavras, não está mais atrelada ao domínio
dos meios de produção e das máquinas, nas condições objetivas da
produção, mas na própria subjetividade, na capacidade dos sujeitos
cooperarem, criarem em conjunto e se reinventarem. A vida como um todo é
investida, à medida que a subjetividade atravessa não só o tempo de
trabalho propriamente dito, mas as ações mais cotidianas, o dia-a-dia, a
linguagem, a ética e a estética dos sujeitos. É por isso que, no
capitalismo cognitivo, a produção social ocupa todas as esferas da
existência: o lazer, a educação, os esportes, as relações amorosas, a
família, o Estado etc. Não admiram as atividades da publicidade, isto é,
a cognição sistemática dos valores de uso, conseguir enxergar valor a
ser expropriado por toda parte. Desta forma, busca subsumir as potências
de vida em produtos vendáveis, em um imaginário ou em estilos de vida
que determinada marca representa. A atividade por excelência do
capitalismo cognitivo é o brand management, que opera nas condições
subjetivas da produção social.
Por um lado, essa administração
capitalista das subjetividades extrai uma quantidade imensa de
mais-valor a partir do comum, ao passo que camufla a exploração ao
contar com a participação direta dos explorados, assim neutralizando e
mistificando o antagonismo entre exploradores e explorados. Por outro, a
multidão dos expropriados pode organizar-se autonomamente e dispensar o
gestor capitalista. Isto significa conferir um caráter afirmativo,
radicalmente democrático e antagonista ao comum. Ou o comum é uma prática política, ou não é.
VOLTANDO AO CASO DO FORA DO EIXO
A extração de mais-valor do comum no
Circuito FdE não reside, como supõe certa crítica moralista, em algum
desvio ou malversação de verbas públicas. Não é que as planilhas não
fechem, como se houvesse um rombo escuso. O FdE é bem sucedido (a
maioria das vezes) em abrir integralmente as planilhas orçamentárias e
prestar contas da aplicação dos recursos. É que, dentro da lógica da
teoria do valor, a expropriação do comum não aparece. Pensado
isoladamente, caso a caso, o capital investido na produção dos eventos e
na gestão das carreiras corresponde à remuneração das partes envolvidas
e aos custos operacionais e comerciais. A questão é que, ao assumir o
brand management “Fora do Eixo”, sucede uma valorização paralela e
cumulativa. A acumulação de valor se dá na integração, na sinergia, na
socialização dos múltiplos trabalhos e projetos tomados isoladamente.
Daí a formação de um autêntico capital social, de uma intensificação da
produção em rede. Essa valorização difusa supera, exponencialmente, a possível extração de lucro dos empreendimentos isolados.
A riqueza das redes (Y.
Benkler) aparece, por conseguinte, não da produção de lucros por edital
ou evento, mas por meio da apropriação global do valor cognitivo:
exploração do comum! Se o FdE reúne confiança coletiva para emitir
débitos contra si mesmo, como promessas de pagamento sob o seu
guarda-chuva, como o cubocard, isto se deve, em boa parte, ao lastro
conferido pelo capital social (“In FdE We Trust!“). O comum é
expropriado e se torna renda: não é por acaso que o próprio Capilé fala
de um subprime do FdE! Nessa gestão rentista, quanto mais redes
parceiras (“redes em rede“), quanto mais expansível o FdE se afirmar como brand, maior a captura da produtividade difusa: as redes que caem na rede. Nesse sentido, o FdE é o antípoda da política dos Pontos!
Isso aparece, evidentemente, nas polpudas
verbas de publicidade, no interesse que grandes marcas e empresas
manifestam em relação aos enfim reencontrados representantes
da nova juventude, das lutas da geração, do estilo indie, descolado,
alternativo etc. Ao não pagar cachês e informar que a planilha fechou,
que não sobrou nada, redes como o FdE deixam de divulgar a cadeia
produtiva da cultura em sua inteireza, em sua verdadeira cauda longa de
circuitos de valorização e apropriação. Num contexto nacional de
ascensão de renda e consumo, no interior e nas periferias, o interesse
pelos novos mercados consumidores é redobrado. Não soa ilógico,
portanto, o FdE propor a participação da Coca-Cola em uma marcha da
liberdade em São Paulo, mesmo sem a marca estar diretamente exposta no
evento. E é aí, também, que aparece o caráter não-transversal do
“movimento”. Não admira, ainda, o caminhar do FdE em direção ao eixo.
Trata-se de um ciclo, onde o indie, o alternativo, o independente
rapidamente se integram no novo mainstream. Os gestores 2.0 das redes em
rede aos poucos mostram a face como os novos capitalistas, afinados com
o discurso altercapitalista da sustentabilidade, do cool e da
indignação seletiva. São gestores do comum que precisam abafar a
qualquer custo o antagonismo e o dissenso, ao mesmo tempo em que
mistificam a exploração dos comuns com discursos enviesadamente radicais
e antissistêmicos.
… E O HOMEM CORDIAL VIROU “PÓS-PÓS”
O debate nas redes passou a ser
patrulhado pelo mais último jargão: todo dissenso é rancoroso,
desatualizado, analógico. O discurso tem que ser “novo” e “pós” e, nessa
medida, será “digital”, plugado, pós-rancor. O homem cordial passou a
esconder seu autoritarismo soberbo atrás do pensamento binário do
“Pós-Pós”.
A apropriação do comum depende que todos não só participem da contra-hegemonia, mas invistam a subjetividade, que sejam subsumidos como subjetividades. Não basta trabalhar, é preciso se integrar 24 horas por dia à “causa”, e com entusiasmo. O discurso do pós-rancor aí se inscreve funcionalmente. Assim, se alguém dissente, só pode estar numa vibe ruim, rancorosa, e isso não é só ruim para o consenso, mas para a própria subjetividade que depende da cooperação engajada e integral em primeiro lugar. O capitalismo cognitivo prescreve mais uma subjetividade do que tarefas propriamente ditas. Daí é preciso que todos cooperem felizes numa lógica de trabalho grátis (free, livre), ou do contrário não se pode extrair a renda do comum. No fundo, talvez, o capitalismo desde sempre seja gestão de redes com o propósito de obter mais-valor e acumular a riqueza. E desde pelo menos o modelo japonês, que a sociologia do trabalho conhece por toyotismo, subsista a ideia de gestão horizontal de redes, um outro nome para o controle dos trabalhadores. Por isso, às vezes, a resistência por dentro do comum pode se dar com a não-colaboração. Através da não-colaboração, a ética hacker se mostra mais potente, hackeando consensos e comitês. A ética hacker nesse sentido é uma prática sabotadora e radical. A colaboração entre os hackers se dá através da não-colaboração com práticas antidemocráticas, cada ato de desestabilização e/ou destruição feito pelos hackers é também um ato de cooperação, entre singularidades que se mantêm enquanto tais: o fazer-se da multidão!
O BRASIL VIVO COMO POLÍTICA DO COMUM
Isso pode acontecer, como propomos,
dentro de uma perspectiva antagonista de comum. Sair dos cercamentos
(enclosures), com efeito, não significa contornar a apropriação do
trabalho, mas somente um tipo dela. Tem acontecido uma verdadeira
multiplicação das formas rentistas de valorização do capital, que poucos
têm se proposto a analisar, mais preocupados em ver a questão como um
problema jurídico ou de sustentabilidade profissional.
Embora o software livre conviva bem com
marcas consagradas, ele permanece como importante terreno de lutas, que
pode e deve ser articulado com as lutas pelo hardware livre e pela banda
larga, onde persiste uma gigantesca extração de renda. As lutas não
podem ser resumidas às frentes digitalistas, nem a um retorno nostálgico
ao 1.0, de tomada dos meios de produção simplesmente objetivos. De
qualquer modo, é fundamental repensar as formas de organização, para
contestar o núcleo do modo de produção na apropriação do trabalho
social. Só assim se pode manter aberto o horizonte de lutas, contra as
sínteses conciliadoras. Confrontado pelo ciclo de lutas, o capitalismo
se reinventa, e as teorias precisam se colocar à altura das lutas que
estão a um passo a frente.
—
Rede Universidade Nômade, 11/02/2012 (original aqui)
Fonte: Quadrado dos Loucos
Nenhum comentário:
Postar um comentário