PICICA: "Quem é esse Lóki?
Bom, vamos botar pra rodar o Amacord do roquenroll tupiniquim e explicar a história toda. A cena inicial
é em São Paulo, na década de 1960. Nos porões do Pompeia, um trio
dentuço, formado por Arnaldo Baptista, seu irmão Sérgio Dias e a sua
então namorada Rita Lee, dá partida ao rock não infantilóide brasileiro e
à contracultura cabocla com uma receita excêntrica. Pega as
experiências sonoras de John Cage (“todo ruído é música, todo som é
musical”), coloca uma pitada de música erudita (Dona Clarisse, mãe de
Sérgio e Arnaldo, era concertista do Municipal), um quilo de
rock’n'roll, bate num liquidificador mental e transforma essa pasta nos
Mutantes. Uma ousadia para os parâmetros musicais da época, afinal,
antes tudo era Celly Campello e Jovem Guarda e até Raul Seixas fazia iê-iê-iê em 1968, quando os Mutantes emergiam com a explosão tropicalista.
Nas palavras do maestro tropicalista Rogério Duprat [1932-2006], no vídeo-documentário “Maldito popular brasileiro: Arnaldo Dias Baptista”,
de Patrícia Moran, “os Mutantes foram a coisa mais importante do
tropicalismo. E ninguém conseguiu deixar isto claro. Mas eu sei bem
disso e que a cabeça disto tudo, a cabeça dos Mutantes, era o Arnaldo
Baptista. Insisto e resumo, em poucas palavras, o Arnaldo é responsável
por quase tudo que aconteceu de 1967 pra frente”."
As válvulas de Arnaldo Baptista
– on 09/08/2013 Próximo a relançar álbum clássico e aplaudido pela nova geração, ex-Mutante fala de contracultura e dispara: “Juventude precisa ser mais psicodélica”Por Rôney Rodrigues | Imagem: Carolina Ito
Bem pensado, John Ulhoa. John é guitarrista da banda mineira Pato Fu e me conta que quase matou Arnaldo Baptista. Quase o matou e ri com a história. Ele conheceu o artista em um restaurante de Belo Horizonte e conversa vai, conversa vem, foi até o sítio de Arnaldo, junto com o músico Rubinho Trol, montar um PC com vários programas de áudio. O lance era mostrar ao ex-mutante as várias possibilidades dessas novas tecnologias – uma espécie de home-estúdio, com recursos que há alguns anos só eram possíveis em estúdios caríssimos e agora estavam bem à mão.
Fazia uma cara que Arnaldo não gravava e a pressão e os custos de um estúdio só dificultariam as coisas. John e Rubinho sacaram a necessidade de inverter o “paradigma da necessidade” e, portanto, decidiram levar a montanha até Maomé. “Fiquei imaginando o que ele faria com essas tecnologias, apesar de curtir esses equipamentos valvulados. Queríamos que ele registrasse à sua maneira suas novas canções e depois ajudaríamos a dar um acabamento”, conta John.
“O Arnaldo, na primeira ou segunda música, tentava gravar da maneira old scholl, não tinha sacado que dava para gravar de maneira não-linear”, rememora. “Depois, quando ele percebeu que podia gravar de maneira caótica, o disco caminhou mais rápido. Mas ele gravava o baixo, por exemplo, sem uma base, tipo ‘ah, esse é o baixo dessa música’, depois gravava a bateria, também sem uma base. E depois juntava tudo”. John faz uma pausa retórica. Espera minha reação. “Sacou como era? Uma loucura! Depois víamos que tudo se encaixava perfeitamente”.
O resultado do caos foi o CD “Let it Bed” (2004), primeiro trabalho de Arnaldo Baptista depois de anos de silêncio, álbum que foi elogiado pela crítica brasileira e que a revista inglesa Mojo colocou em sua lista dos dez mais de 2005.
“O trabalho não precisou de grana, foi de graça, fizemos o ‘esquema Lobão’: um disco com encarte legal e depois disponibilizamos tudo na internet”, explica o guitarrista do Pato Fu. “Na verdade, foi uma ação entre amigos, bancamos a vinda do Rubinho de Londres para cá, eu levei os equipamentos e também pedi alguns microfones emprestados. Sabe, o Arnaldo não é uma banda indie para ter toda essa dificuldade de gravar”.
Logo ele descontrai das idiocrassias do mercado fonográfico, da ausência de memória cultural do Brasil frente aos ídolos e das dificuldades de gravar do eterno mutante. Bota pra fora a bad trip e conta gargalhando que, pode crer, quase matou o Arnaldo Baptista.
“E como foi isso?”
“Ele estava trabalhando numa música para o disco e ficou muito excitado, começou a suar, passar mal… Imagina, cara? A gente foi lá cheio de boas intenções, querendo gravar um disco do cara e, pum! Matamos ele. Os fãs que iriam nos matar!”
Bem pensado, John. Não é bom provocar os atônitos fãs e, muito menos, o próprio Arnaldo, esse malandro velho que tem dado de ombros para o mito de “lóki”, esbanja vitalidade e corre em busca do tempo perdido.
E falando no Lóki, é ele mesmo que entra por aquela porta do café do Hotel George V. O próprio, o menino da Pompeia, bairro paulistano berço do rock brasileiro, que comia em enlatados Cray o picadinho da contracultura; o maluco que fundou uma das bandas mais emblemáticas da música brasileira e que agora relança seu clássico álbum de 1982, “Singin´ Alone”; o Ken Kesey do refresco elétrico tupiniquim que nunca mascou o chiclete do conformismo, o ateu psicodélico fundador do endoterismo, senhoras e senhores, o músico-pintor-escritor, o Rimbaud da música, bem, aí está ele.
“Tá entregue”, diz Lúcia Barbosa, a Lucinha, sua “menina”, como ele romanticamente a chama, casada com o artista há mais de 30 anos e que coordena sua vida e obra. “O Arnaldo tava se decidindo se a entrevista seria aqui ou lá na piscina, porque ele queria fumar. Mas depois falou que já tinha fumado demais por hoje”.
Arnaldo veste uma camisa quadriculada e está sonolento. Costuma trocar o dia pela noite, horário que se sente mais criativo, e deve ser um pé no saco levantar aquela hora, quatro da tarde, para atender a imprensa há apenas um dia de um de seus shows. Afinal, ainda está se recompondo das tensões naturais da volta aos palcos. Peguei o caderno de notas e apertei o play do gravador. Teste, teste, alô som, alô som… É, tá gravando.
Comecei perguntando quando ele percebeu que sua música podia interferir na vida das pessoas.
“Talvez com o lançamento do Lóki [álbum de 1974], mas ele veio com tanto revezes e falta de divulgação…”, diz. Ele fala pausadamente, manso, como um monge, coisa de quem já não tem pressa e parece flutuar sobre a realidade. “Mas tenho a impressão que foi quando consegui meu som totalmente valvulado em casa. Durante anos diziam que as válvulas estavam mortas e muitas outras confusões, inclusive, eu até parei de tocar bateria e contrabaixo porque não são valvulados. Se tivesse uma companhia que me alugasse…”.
O cara tem um carisma que suga o interlocutor como um aspirador de pó, com um olhar siderado de quem já viveu e viu muito, falando e falando sobre – bem, para ser franco, eu não tinha a menor ideia do que ele estava falando. Sei que esses amplificadores valvulados demandam trabalho manual, mas com a vantagem de permitir alta frequência e grande variação de timbre e que, ao que consta, poucos ainda os fabricam. Mas Arnaldo fala sobre essas preferências em termos cifrados, com aforismos. Peço para ele explicar melhor o motivo de sua paixão pelas válvulas.
“Essa opção é de acordo com meu DNA”.
E como não havia entendido, num tom muito paciente, com um tipo de cortesia interiorana, explica mais uma vez:
“O Camilo Cristófaro [piloto famoso na década de 1960 em provas de longa duração] era um corredor de Interlagos que ganhava sempre, mas preferia motor Corvette. Na oficina dele tinha Ferrari, Jaguar, mas, entre todos, ele preferia envenenar o Corvette. Ele conseguia que um motor Corvette fosse muito melhor que um Ferrari. Eu sou assim com meu amplificador valvulado e também quanto a extrair a alma de uma coisa”.
Sacou?
Quem é esse Lóki?
Bom, vamos botar pra rodar o Amacord do roquenroll tupiniquim e explicar a história toda. A cena inicial é em São Paulo, na década de 1960. Nos porões do Pompeia, um trio dentuço, formado por Arnaldo Baptista, seu irmão Sérgio Dias e a sua então namorada Rita Lee, dá partida ao rock não infantilóide brasileiro e à contracultura cabocla com uma receita excêntrica. Pega as experiências sonoras de John Cage (“todo ruído é música, todo som é musical”), coloca uma pitada de música erudita (Dona Clarisse, mãe de Sérgio e Arnaldo, era concertista do Municipal), um quilo de rock’n'roll, bate num liquidificador mental e transforma essa pasta nos Mutantes. Uma ousadia para os parâmetros musicais da época, afinal, antes tudo era Celly Campello e Jovem Guarda e até Raul Seixas fazia iê-iê-iê em 1968, quando os Mutantes emergiam com a explosão tropicalista.
Nas palavras do maestro tropicalista Rogério Duprat [1932-2006], no vídeo-documentário “Maldito popular brasileiro: Arnaldo Dias Baptista”, de Patrícia Moran, “os Mutantes foram a coisa mais importante do tropicalismo. E ninguém conseguiu deixar isto claro. Mas eu sei bem disso e que a cabeça disto tudo, a cabeça dos Mutantes, era o Arnaldo Baptista. Insisto e resumo, em poucas palavras, o Arnaldo é responsável por quase tudo que aconteceu de 1967 pra frente”.
Mas vieram as tretas. No centro da banda, o casamento de Arnaldo e Rita funciona como um ponto de equilíbrio artístico e musical. À medida que o rock progressivo contamina a agenda do grupo, Rita aos poucos se vê fora da brincadeira original. Sai fora da banda e separa-se de Arnaldo – a ordem, na verdade, ninguém sabe. Fade out.
1974. Arnaldo quer gravar um disco com grande urgência. O final dos Mutantes havia sido um período extremamente doloroso para ele. Afinal, terminara uma banda, amizades, um casamento e mergulhara numa viagem de depressões, paranóia e incertezas, regadas a grandes rodadas lisérgicas na Serra da Cantareira, seu mítico reduto. Muita coisa, principalmente para um jovem de 26 anos que não que não estava conseguindo lidar com tantos problemas. Nasce, então, o aclamado disco “Lóki”, seu primeiro álbum solo, hoje considerado um dos melhores do gênero. Corta para:
1977. Com Rolando Castelo Júnior na bateria, John Flavin na guitarra e Kokinho no baixo, Arnaldo funda uma nova banda, a Patrulha do Espaço. A banda dura pouco, apenas o tempo de uma gestação: nove meses. E, novamente, algumas tretas. “As portas estavam fechadas para o Arnaldo, com ele fizemos a peregrinação por diversas gravadoras e empresários importantes, mas todos, sem exceção, ignoraram o som da banda e, creio que por terem uma imagem negativa do passado recente do Arnaldo, não quiseram se envolver conosco” relembra Castelo Júnior. “Foi uma grande covardia, pois julgaram o homem e não a obra. Todos cagaram soberanamente sobre isso, falharam como amigos e como profissionais, com o Arnaldo e evidentemente com a Patrulha do Espaço”. Segundo o baterista, esse momento de “mancadas generalizadas” foi conturbado e Arnaldo “se refugiava mais e mais em sua persona”.
Cena final. Arnaldo está ansioso. Fuma quatro maços de Hollywood por dia. Também passou a tomar Lorax. Vendo o filho mais agressivo, Clarisse, sua mãe, dilui um sedativo num copo do Coca-Cola e chama a ambulância para aquela que seria a quinta e última internação de Arnaldo. E assim passou a virada 1981 para 1982. Até… Fade out. Aparece o seguinte letreiro:
O primeiro dia do resto de sua vida
Arnaldo Baptista fratura a base do crânio no estacionamento do prédio do Hospital do Servidor, em São Paulo, depois de um mergulho de três andares do setor de Psiquiatria. Algo nele parecia cortado e suas frustrações, de repente, desembocavam em um longo coma. Era o primeiro dia de 1982. O diagnóstico unânime: era só uma questão de horas para ele morrer. Passado isso, nada mais havia a não ser a nova dimensão arnaldiana.
“Quando eu tava em coma não lembro exatamente o que me passava pela cuca. Me lembro que encontrei espíritos como o [Jimmy] Hendrix e eu evitei ter contato porque ele não usava a marca de instrumentos Gibson, usava Fender, igual ao meu irmão”, conta hoje Arnaldo.
Meses em coma, Arnaldo foi salvo por uma fã que se tornou namorada e parceira. Lucinha se muda com ele para um sítio em Minas Gerais, onde as sequelas de sua queda passaram a ser tratadas lentamente. O músico, que já pintava como hobby, passa a utilizar a atividade de forma terapêutica e, hoje, sua casa é cheia de quadros, até na cozinha e no banheiro.
“Pinto todo dia, geralmente de madrugada. Durmo às 21h, acordo à 1h. Tenho motivação maior de madrugada. Músicas não posso tocar, porque faz barulho. Então a gente pinta”.
“E mesmo afastado por um bom tempo dos palcos e sem lançar álbum, você nunca perdeu fãs, aliás, a cada dia mais e mais jovens se interessam pelo seu som”, reflito alto.
“Eu tô atravessando a minha segunda infância. Eu quase morri, depois reaprendi a falar, a escrever, a me movimentar. Talvez eu esteja compartilhando essa infância com eles. Bem, não sei”, diz Arnaldo.
Talvez seja por isso, mas também há uma sucessão de fatos. Quando Kurt Cobain esteve no Brasil, em 1993, no auge do grunge e do indie, reacendeu a febre dos jovens pelos Mutantes e por Arnaldo. Chegou até a lhe escrever uma carta em que dizia “Arnaldo, os melhores votos para você e cuidado com o sistema. Eles engolem você e cospem fora como o caroço de uma cereja marrasquino”. Arnaldo não respondeu pessoalmente, mas mandou o recado: “Diga a ele que eu já fui engolido, cuspido e estou começando tudo de novo”. Também participou de um show com Sean Lennon, uma espécie de divulgador oficial do grupo no exterior e que até desenhou a capa de Tecnicolor, álbum inédito (gravado em 1970) e lançado em 2000. Outros artistas sempre lhe prestam reverências, como Beck, David Byrne, Radiohead, Stereolab, Torloise, High Llamas e Wondermints.
Em 2008, o Canal Brasil também contribuiu para popularizá-lo entre os jovens. Levou ao público o documentário “Lóki! Arnaldo Baptista”, dirigido por Paulo Henrique Fontenelle, e que trazia luz sobre fatos obscuros do passado do ex-mutante e como vivia no pós-acidente. O filme teve grande sucesso e ganhou 14 prêmios no Brasil e no exterior.
Hoje, Arnaldo realiza saraus cantando seus sucessos só ao piano e é o representante-mor da antiga efervescência contracultural brasileira. Pelo menos como figura totêmica. Uma mente inquieta que segue na vanguarda, desde suas preferências pelos amplificadores valvulados e pelas guitarras Gibson, até na militância pelo vegetarianismo e por fontes de energia sustentáveis. Parece atravessar pontes ao mesmo tempo em que as incendeia, o que o obriga a seguir novos caminhos. Talvez seja por isso que ele evita esmiuçar o passado, parece já tê-lo incendiado, e quer mesmo é falar sobre as novas mutações.
Novas mutações
Flaviana Bernardo, uma das proprietárias da galeria Emma Thomas, gosta de recordar a história. Apresentava seu filho ao artista: “Esse é o meu filho Luck”. “Prazer”, disse Arnaldo. “Eu sou o Lóki”. Ela ri. “Ele é muito rápido no gatilho, tem um humor de trocadilhos incríveis”.
Ela, com sua sócia, Juliana Freire, organizaram a primeira exposição individual do artista, realizada no ano passado e batizada de “Lentes Magnéticas”. “Foi muito legal a exposição, apesar de polêmica. Ele tem uma arte em estado bruto, que vai desde o naïf até influencias de folk art e outsider art”, diz a galerista.
“Polêmica?”
“Fora do Brasil as pessoas estão acostumado com artistas multifacetados e não têm preconceito. Tem a Yoko Ono, o Kim Gordon, o Bob Dylan, o David Bowie, até a Courtney Love, do Kurt Cobain… Aqui fica aquela coisa, de ‘só porque é o Arnaldo’, sabe? Também teve toda a dificuldade em captar dinheiro com as empresas, talvez por causa do acidente e do envolvimento com drogas”, diz ela.
“E o trabalho dele de art naïf é super atual e de qualidade, a gente não fez só pelo hype…”, conta Juliana. “Tem alguns artistas de Baltimore (EUA), que também desenvolvem um trabalho como o dele, um psicodelismo infantil. Fomos pesquisar e a maioria deles eram músicos também” diz.
Em 2006, os Mutantes se reuniram novamente em Londres, em um evento em homenagem à Tropicália. Só que com a Zélia Duncan no lugar da Rita Lee. O retorno se estendeu ao Brasil e, em 2007, um show ao ar livre reuniu 50 mil pessoas no aniversário de São Paulo. Ainda em 2007, Arnaldo se desligou dos Mutantes.
“Eu tenho a impressão que Mutantes é muito difícil de repetir, embora o meu irmão Sérgio tenha tentado fazer”, conta Arnaldo sobre o episódio. “Uma vez no aeroporto, quando a gente tava em turnê pela Europa com os Mutantes, ele falou para mim: ‘eu não quero amplificador valvulado, é dificílimo para ligar e é muito frágil’. Eu não disse, mas deveria ter dito que ele é burro porque o som é muito melhor. Mas naquela época eu tava seguindo uma lei interna e filosófica da ‘solidão no absoluto’. Então me separei dele…. Mas Mutantes é passado. Esse outro que o Sérgio tá tentando fazer é cover. As pessoas até me confundem”.
Um projeto do Arnaldo que está pra sair do forno é um disco que se chama “Esphera”, com ph mesmo, porque, segundo ele, tem a ver com “a esphera de cada dia e com a esperança de um mundo melhor”. No disco, ele comanda todos os instrumentos, numa “espécie de faroeste musical”, como define, uma pegada sergioleonesca de one man band.
Psicodelia retropicalista
Para muitos, Arnaldo Baptista colocou a pedra filosofal da cultura psicodélica no Brasil. Há quem diga também que ele foi além, não só pelas investigações no uso do LSD nas décadas de 1960/70, mas antecipando discussões ecológicas e de libertação moral e estética. É, o cara tava antenado, até em frequências adiante no espaço-tempo. Como ele canta em “LSD”, música de seu último disco, “acrosticando” a letra: “Louvado Seja Deus que nos deu o rock´n´roll”. Vou, então, na jugular da questão: “pra você, o que representa a cultura psicodélica?”.
“Quem comanda o que é ser psicodélico é muito profundo pra gente tentar filosofar”, vagueia Arnaldo. “O mundo precisa de pessoas de ação. Que abram portas. E, às vezes, eu penso que pode ser um líder. Vai saber… Os Beatles, naquela música ‘Revolution’, falam we all want to change the world: nós queremos mudar o mundo. E eu digo que eu quero mudar o mundo. Será que tô sendo muito?… Será que tô dando um passo maior que a perna? Eletricidade elétrica, a eletricidade solar são coisas que envolvem o futuro da humanidade: sair da Idade do Fogo, que estamos no momento, e tentar poluir menos, em vez de usar o sol ou o vento pra produzir energia. Ainda somos piromaníacos. E o que é isso? Mudar o mundo. E também mudar o mundo com os amplificadores valvulados”.
“Você acha que a juventude tá mais careta?”.
“A juventude precisa ser mais psicodélica. É difícil fazer uma declaração como essa, que envolva o psicodelismo. Isso envolve liderança e coisas profundas, mas a humanidade está muito mais ligada em outras coisas que nisso. Do jeito que eu tô vendo, não existe jeito de ser psicodélico no Brasil. A pessoa teria que conseguir fazer química cerebral, como já é feito na Holanda, mas é prematuro falar disso agora. Seria um modo de encarar o sistema de maneira pessoal”.
“Mas por que, exatamente, não é possível no Brasil?”.
“Prefiro não falar a respeito porque é uma coisa ilegal, enquanto na Holanda não é. Com a química cerebral a gente consegue manter o cérebro mais ativo de uma forma ou de outra. Mas aqui no Brasil não existe isso pesquisado”.
“E como foi a revolução psicodélica para você?”.
“Como acabei de relatar, com o lado químico-mental. A gente tem bilhões de neurônios, então, desde antigamente eles estão dando um jeito de fazer isso funcionar melhor… Quando eu fiquei psicodélico, todo mundo do conjunto entrou numa espécie de ‘uma pessoa só’, em que problemas como andamento e harmonia, desapareciam e a gente se ligava num total de música, devido à comunicação ser tão grande. Mas nunca a interface foi total nos Mutantes, porque eu discordava de alguns instrumentos, mas a gente foi dando o melhor de nós”.
“A juventude de hoje tem uma forma diferente de encarar o mundo e a política em relação a da época da Tropicalia?”.
“Eu tenho a impressão que, antigamente, a juventude estava descobrindo alguma coisa. É difícil de explicar, é como falar de amplificador valvulado, e não gosto de estar como um irmão mais velho falando isso. A gente conseguiu uma abertura de vida que já existe há muito tempo e que, de uma certa forma, foi esquecida. A gente não vê tantos gênios acontecerem atualmente, tipo Bob Dylan…”.
“E isso é reflexo de alguma coisa que aconteceu nesse caminho dos anos 1960 pra cá?”.
“Eu acho que tem a ver com uma palavra: conformismo. Existe muita coisa que são contrárias à opinião de todo mundo, das pessoas em geral, mas as pessoas se conformam com isso, com a maneira que é feita. Então a gente se deixa envolver pelo sistema, que não é de acordo com o que eu penso”.
“Como é esse sistema que você não concorda?”.
“É um sistema que não tá ligado, por exemplo, em energia sem poluição, eólica, células fotovoltaicas, carros elétricos… Nesse sentido a política tá um pouquinho falha, poderia ser feito algo, talvez até no sentido de vegetarianismo, pois eu tenho a impressão que o canino tem a ver com involução genética, a necessidade de matar pra comer…”.
“Outra coisa: para você, qual seria a função política e social da arte?”.
“De acordo ao que eu posso fazer, no sentido de política, a minha opinião é mais filosófica. O lado político deixa a desejar, porque não existe uma pessoa que inclua o meu modo de pensar na política, defendendo a eletricidade eólica, carros elétricos, vegetarianismo. E outra coisa: amplificadores valvulados. Eu tenho a impressão que a gente necessita de um líder. Embora o Gilberto Gil tenha sido ministro da Cultura, a gente não consegue”. Arnaldo ri, se lembrando de uma história. “Eu fui até ele pedir dinheiro prum livro que eu estava pensando em fazer e foi um de chute mais largo que as pernas, porque ele falou: ‘eu sou ministro, mas não sou o Ministério’. Nesse sentido, a arte política podia ser mais influente. Papai viveu 30 anos tentando fazer isso com o Adhemar de Barros [ex-prefeito e governador de São Paulo] e não conseguiu nada. Então tenho a impressão que a política é um tanto falha nesse sentido que está sendo feita. É uma coisa sem liderança, sem objetividade”.
“Você é militante da ANDA [Agência de Notícias de Direitos Animais]?”.
“Sou bastante, porque eu não gosto de comer carne, acho que é involução humana ter caninos quando a gente poderia ser herbívoro. Mas é um modo de ver que pode ser que seja esquisito. A gente lembra logo de Tigres Dente de Sabre e Tiranossauro Rex na evolução, que têm caninos, mas o ser humano é assim, eu também sou. Somos todos iguais”.
“Em um show do Tom Zé, ele dizia que, apesar das pessoas tentarem não se preocupar com as prisões na ditadura, sempre quando alguém era preso a dúvida era: será que sou o próximo? Rolava isso com você?”.
“Rolava um pouco. Embora eu nunca tenha entendido a razão das prisões. Tinha também aquele problema político, e o papai era secretário do Adhemar de Barros, andava com carro de chapa branca, então eles [da ditadura militar], de certa forma, respeitavam a gente. Já o Caetano é formado em filosofia, entende mais que eu essas coisas filosóficas e massivas, mas acho que ele se deixou levar, fazia discursos, ‘é essa a juventude que quer tomar o poder’, nessa época a juventude queria mudar o país… Então ele foi mais ou menos agressivo politicamente e foi muito rápido. Mas a gente sentia um pouco a pressão nesse sentido de ser preso”.
“Li uma vez, num livro do Michel Foucaut [1926-1984, pensador francês], que quando aparece alguém com pensamentos diferentes, geralmente, é considerado louco ou deus. No passado te tacharam de louco. Hoje, para a opinião pública, você acha que tá mais para deus que louco?”
“É, tem a ver com a razão, de que se eu defendo alguma coisa tem que ter um produto final. E Foucault foi muito importante em épocas que eu estudava astronomia. Nesse sentido foi bom perceber que temos uma recompensa e um recheio em tudo que a gente fala. Se uma pessoa é diferente, próxima a nós, tem uma recompensa. E isso é tão profundo… É bem foucaulizado. Eu posso dizer que agora eu tenho mais sensibilidade ao público. Embora não seja do jeito que eu quero, por causa do amplificador valvulado, eu tenho sido mais respeitado. E naquela época de Mutantes eu não era assim. Era esquisito, era muito diferente”.
“Por quê?”.
Ele se cala por uns segundos. Ouço sua respiração. Seus olhos parecem mergulhar numa viagem intergalactica. “Éramos novos…”.
Lembro que Arnaldo é louco por Bob Dylan e uma frase dele me ocorre. He not busy being born is busy dying [Quem não está ocupado nascendo, está ocupado morrendo]. Parece ter sido escrita para esse eterno Lóki que agora está a minha frente e que, agora, fala sobre espaçonaves, novas fontes de energia e viagem no tempo.
“Discos voadores eu já vi, eles ultrapassam a velocidade da luz e viajam no tempo e podem ter influenciado até na religião. Se eles ultrapassarem a luz eles veem a Terra há dois mil anos atrás e podem canalizar uma bomba pra lá”, reflete solene. “Isso é uma piração de extrema importância”. Já que ele falou em pirações importantes, tomo a liberdade e pergunto: e se fosse possível viajar no tempo, para que época ele gostaria de ir: passado ou futuro?
“Eu gostaria de… Muito importante… Eu tenho impressão que o futuro. Seria interessante para mim conhecer o futuro e ver se os amplificadores valvulados e os carros elétricos serão aceitos. Se a eletricidade eólica vai ser aceita. E, claro, se eu vou ser aceito também”.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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