PICICA: "O black bloc transfigura a violência de
classe, naturalizada e generalizada, na figura de um amor brutal. Não é
tanto guiado pelo ódio… bem menos do que se pensa. Horda odiosa você vê
na repressão indiscriminada, em prazer sádico, por que o que move o
protesto é o amor. Um amor que usa preto e calça botas, nada
complacente. É um amor pela rua, a rua à espreita no interior da gente, o
nosso próprio primitivismo. Afeta a gente ali, no limiar
subdesenvolvido onde perdemos a “naturalidade” dos gestos, das muitas
pequenas resignações ao cotidiano, das tantas culpas. É no limiar de
onde saímos que nem um “bando de malucos” pela cidade, uma matilha
querendo outra coisa e muito. É o limiar onde o medo se converte em
determinação, a culpa em sentimento de poder e ação coletiva.
Determinados a existir, a existir, além da situação de isolamento
controlado, com que a nova sociedade pretende, com seu imaginário e seus
remédios, modular a vida e o trabalho.
A eztetyka da revolução não é bonitinha e
é bom que não seja. Não esperem marchas anódinas de 200 cupinchas com
bandeiras vermelhas. Não aguardem procissões corporativistas comandadas
por carros-de-som pedindo salário. Nem pessoas distribuindo flores em
nome da redenção pela paz.
Por muito tempo, as elites brasileiras
exploraram a cultura dos pobres repondo no lugar de sua alegria e
vitalidade usurpadas o signo do horror. Só assim puderam reconhecer a
força dessa cultura, demonizando-a. Hoje, novamente, o horror e o
escândalo servem às caricaturas decadentes atrás da alta sociedade de
sucesso, enquanto os “horríveis” vestem máscara. Não são mais anônimos.
Amarildo finalmente tem um nome, e vive."
NA RUA: OS HORRÍVEIS VESTEM MÁSCARA
– 29/08/2013
Você caminha no meio do black bloc e vê de tudo. Tem gente que se define anarquista, socialista, anticapitalista, autonomista, anarcocomunista, anarcoinsurrecional… longo etcétera. Tem também quem diga: “Eu? eu sou favela”. Ou “Eu sou Amarilda”, partilhando a indignação pelo sumiço de tantos Amarildos e Amarildas nas mãos do estado. Ou ainda, eu já ouvi, “Eu sou ninguém”. Estão unidos menos por uma causa ou bandeira do que por uma ética. Uma ética que também é uma estética. A revolução, já dizia Gláuber, é uma eztetyka.
É a ética da recusa radical: vou pra rua
pra protestar e enfrento quem quer que tente me impedir. Finco pé e
mando às favas. Protestar não funciona sem incômodo, sem transtorno, sem
repor o inconveniente diluído no cotidiano em um ato direto, um
propósito inequívoco. Sem transtorno você não prova sequer a sua
existência.
Quem vê o black bloc passando sabe que
eles não vão embora pra casa sem alguma intervenção. Dá pra sentir isso,
essa iminência, especialmente quando começam os gritos de “sem
violência”. Sente a excitação ventando de rosto em rosto, uma
comunicação silenciosa à moda das formigas. Eles afirmam uma abundância,
uma velocidade. Vão arrastando, pelo transe, pras ações precariamente
planejadas. É outra experiência de cidade, correndo e bloqueando vias,
dispersando e reagrupando, fugindo, mas fugindo com um sorriso no rosto.
Uma experiência que parecia definitivamente enterrada pelo trânsito e
seu magma sonoro, o grande protagonista do espaço urbano.
A grande imprensa, seus intelectuais
orgânicos e sobretudo os partidos políticos só conseguem ver um bando de
malucos quebrando tudo, sem nenhum objetivo senão uma autoafirmação
irresponsável. Ou são “políticos” demais, porque manipulados por
ideologias e grupelhos anacrônicos. Ou são despolitizados demais, porque
sem liderança, voluntaristas e desprogramados. Insistem
despudoradamente, sabe-se lá por qual pesquisa-relâmpago, que não passa
de minoria sem respaldo da população. Tascam uma ou outra entrevista sob
medida no noticiário, uma ou outra fala de especialista, para frisar:
“manifestação sim, vandalismo não”. Não olham e quando olham não vêem.
Se vêem, não enxergam. Em todo caso não entendem. Ou melhor: entendem
que algo de visceralmente novo no Brasil está surgindo que eles não
entendem, e isso dá medo.
O protesto é expressão de condições
econômicas e sociais. O novo Brasil com chances pra todos propiciou à
maioria da população o que ela não tinha: um futuro. Pensar um futuro.
Os pobres conquistaram uma passagem para o futuro, em vez de existirem
“presos” ao presente. Puderam livrar-se da lei da sobrevivência, que
impunha a necessidade do aqui-agora. Agora, podem estudar, ter carreira,
planejar as férias, projetar os filhos. Contudo, na medida em que o
sucesso se torna acessível, o fracasso também vem a reboque. Na nova
realidade brasileira, preciso fazer mil e uma coisas, me qualificar
permanentemente, me produzir empreendedor, criativo, sustentável, para
alcançar o cobiçado sucesso. E se não me esforçar e conseguir… terei
fracassado. O acesso ao futuro me lança no jogo da vida entre o sucesso e
o fracasso. O novo Brasil nasce com uma montanha de cobranças,
expectativas e exigências de adaptação. Quanto medo do fracasso, da
vergonha, quanta culpa acumulada! Esse o fardo da “nova classe média” ou
“Classe C”, conclamada a participar do moinho satânico do mercado
atual, de trabalho ou consumo.
No Brasil ascendente de hoje, ser bem
sucedido é uma obrigação. Toda a publicidade das empresas, a psicologia
motivacional, a pressão familiar e os slogans dos governos tentam te
convencer disso. No Brasil desenvolvido, você já nasce devendo o
sucesso, já brota sem direitos que não o de pagar por eles. Se está no
ônibus atritando e disputando centímetros com a carne alheia, a culpa é
sua, por não ter sido bem sucedido em comprar o conforto de um carro. Se
o filho está na escola pública sem aulas, você deveria ter sido bem
sucedido o suficiente para poder pagar a particular. Se está na fila do
hospital com um familiar, humilhado e esperando o atendimento que nunca
chega, a culpa é sua por não conseguir bancar um plano de saúde. A
responsabilidade é sempre sua, nunca do sistema de transportes, da
educação, da saúde. Somos concitados a um empenho individual hercúleo
para pagar carro, plano de saúde e escola particular. Imagine se esses
empenhos individuais, em geral inglórios, fossem reunidos num esforço
coletivo para abrir as caixas pretas dos sistemas de transportes,
hospitais e escolas públicos?
Eis as manifestações, o descarrego
multitudinário das culpas. Uma revolta contra o “sucesso” de uma
sociedade, contra um projeto civilizatório de mentes e afetos.
Quando o Black bloc ataca os
símbolos do poder, não está fazendo mais do que contestando uma ordem
social que naturalizou a violência. A ponto de disfarçar-se de sucesso,
desenvolvimento, pacificação, com a maior boa consciência de telejornal.
Mas a baderna nunca deixou de ser um dos preços da democracia, e um dos
menores. Thomas Jefferson, que não era nenhum anarquista, escreveu que
não poderá haver regeneração das instituições democráticas “sem uma
rebeliãozinha de vez em quando”. Que conquistas de direitos, afinal, se
deram historicamente na base do consenso? Essa “violência” atribuída às
manifestações é minúscula, desprezível, se comparada não somente com os
sumiços e homicídios praticados pelas polícias e milícias contra a
juventude negra e pobre, como também ao colossal acúmulo de violência
impregnado no sistema de saúde, transporte e educação.
Não fosse o interesse da grande mídia no
abafamento de uma revolta que lhe ameaça os anéis e os dedos,
certamente as coberturas teriam outras prioridades e preocupações. A
pergunta certa não é porque se indignam com tanta ênfase. Mas, sim, como
não se indignariam, quando sequer o básico é garantido, enquanto a
cidade se transforma num playground exclusivo de rico? Como não se
indignar o tempo todo? Quando violentam camelôs, sem tetos, estudantes,
favelados e manifestantes, para que um punhado de rostos soberbos possa
brindar ao triunfo da vontade modernizadora e suas grandes obras?
O black bloc transfigura a violência de
classe, naturalizada e generalizada, na figura de um amor brutal. Não é
tanto guiado pelo ódio… bem menos do que se pensa. Horda odiosa você vê
na repressão indiscriminada, em prazer sádico, por que o que move o
protesto é o amor. Um amor que usa preto e calça botas, nada
complacente. É um amor pela rua, a rua à espreita no interior da gente, o
nosso próprio primitivismo. Afeta a gente ali, no limiar
subdesenvolvido onde perdemos a “naturalidade” dos gestos, das muitas
pequenas resignações ao cotidiano, das tantas culpas. É no limiar de
onde saímos que nem um “bando de malucos” pela cidade, uma matilha
querendo outra coisa e muito. É o limiar onde o medo se converte em
determinação, a culpa em sentimento de poder e ação coletiva.
Determinados a existir, a existir, além da situação de isolamento
controlado, com que a nova sociedade pretende, com seu imaginário e seus
remédios, modular a vida e o trabalho.
A eztetyka da revolução não é bonitinha e
é bom que não seja. Não esperem marchas anódinas de 200 cupinchas com
bandeiras vermelhas. Não aguardem procissões corporativistas comandadas
por carros-de-som pedindo salário. Nem pessoas distribuindo flores em
nome da redenção pela paz.
Por muito tempo, as elites brasileiras
exploraram a cultura dos pobres repondo no lugar de sua alegria e
vitalidade usurpadas o signo do horror. Só assim puderam reconhecer a
força dessa cultura, demonizando-a. Hoje, novamente, o horror e o
escândalo servem às caricaturas decadentes atrás da alta sociedade de
sucesso, enquanto os “horríveis” vestem máscara. Não são mais anônimos.
Amarildo finalmente tem um nome, e vive.
OS HORRÍVEIS VESTEM MÁSCARA, pelo viés de Bruno Cava*
*Bruno é autor do site Quadrado dos Loucos
Fonte: Revista O viés
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