PICICA: "Elite corporativista teme que mudança do foco no atendimento abale o sistema mercantil de saúde"
Operação Médica Brasil Cuba
Pedro Porfirio
Elite corporativista teme que mudança do foco no atendimento abale o sistema mercantil de saúde
A virulenta reação do CFM (Conselho Federal de Medicina) contra a vinda de 6 mil médicos cubanos para
trabalhar em áreas absolutamente carentes do país é muito mais do que
uma atitude corporativista: expõe o pavor que uma certa elite da classe
médica tem diante dos êxitos inevitáveis do modelo adotado na ilha, que
prioriza a prevenção e a educação para a saúde, reduzindo não apenas os
índices de enfermidades, mas sobretudo a necessidade de atendimento e os
custos com a saúde.
Essa não é a primeira investida radical do CFM e da AMB (Associação
Médica Brasileira) contra a prática vitoriosa dos médicos cubanos entre
nós. Em 2005, quando o governador de Tocantins não conseguia médicos
para a maioria dos seus pequenos e afastados municípios, recorreu a um
convênio com Cuba e viu o quadro de saúde mudar rapidamente com a
presença de apenas uma centena de profissionais daquele país.
A reação das entidades médicas de Tocantins, comprometidas com a baixa
qualidade da medicina pública que favorece o atendimento privado, foi
quase de desespero. Elas só descansaram quando obtiveram uma liminar de
um juiz de primeira instância determinando em 2007 a imediata “expulsão”
dos médicos cubanos.
No Brasil, o apego às grandes cidades
Neste
momento, o governo da presidente Dilma Rousseff só está cogitando
trazer os médicos cubanos, responsáveis pelos melhores índices de saúde
do continente, diante da impossibilidade de assegurar a presença de
profissionais brasileiros em mais de um milhar de municípios, mesmo com a
oferta de vencimentos bem superiores aos pagos nos grandes centros
urbanos.
[Dos 371 mil médicos brasileiros, 260 mil estão nas regiões Sul e Sudeste]
E isso não acontece por acaso. O próprio modelo de formação de
profissionais de saúde, com quase 58% de escolas privadas, é voltado
para um tipo de atendimento vinculado à indústria de equipamentos de
alta tecnologia, aos laboratórios e às vantagens do regime híbrido, em
que é possível conciliar plantões de 24 horas no sistema público com
seus consultórios e clínicas particulares, alimentados pelos planos de
saúde.
Mesmo com consultas e procedimentos pagos segundo a tabela da AMB, o
volume de clientes é programado para que possam atender no mínimo dez
por turnos de cinco horas. O sistema é tão direcionado que na maioria
das especialidades o segurado pode ter de esperar mais de dois meses por
uma consulta.
Além disso, dependendo da especialidade e do caráter de cada médico, é
possível auferir faturamentos paralelos em comissões pelo direcionamento
dos exames pedidos como rotinas em cada consulta.
Sem compromisso em retribuir os cursos públicos
Há no Brasil uma grande “injustiça orçamentária”: a formação de médicos
nas faculdades públicas, que custa muito dinheiro a todos os
brasileiros, não presume nenhuma retribuição social, pelo menos enquanto
não se aprova o projeto do senador Cristóvam Buarque, que obriga os
médicos recém-formados que tiveram seus cursos custeados com recursos
públicos a exercerem a profissão, por dois anos, em municípios com menos
de 30 mil habitantes ou em comunidades carentes de regiões
metropolitanas.
Cruzando informações, podemos chegar a um custo de R$ 792 mil para o
curso de um aluno de faculdades públicas de Medicina, sem incluir a
residência. E se considerarmos o perfil de quem consegue passar em
vestibulares que chegam a ter 185 candidatos por vaga (UNESP), vamos nos
deparar com estudantes de classe média alta, isso onde não há cotas
sociais.
Um levantamento do Ministério da Educação detectou que na medicina os
estudantes que vieram de escolas particulares respondem por 88% das
matrículas nas universidades bancadas pelo Estado. Na odontologia, eles
são 80%.
Em faculdades públicas ou privadas, os quase 13 mil médicos formados
anualmente no Brasil não estão nem preparados, nem motivados para
atender às populações dos grotões. E não estão por que não se habituaram
à rotina da medicina preventiva e não aprenderam como atender sem as
parafernálias tecnológicas de que se tornaram dependentes.
Os chanceleres Bruno Parrilla (à esq.), de Cuba, e o brasileiro Antonio Patriota, na coletiva que anunciou o acordo
Concentrados no Sudeste, Sul e grandes cidades
Números oficiais do próprio CFM indicam que 70% dos médicos brasileiros
concentram-se nas regiões Sudeste e Sul do país. E em geral trabalham
nas grandes cidades. Boa parte da clientela dos hospitais municipais do
Rio de Janeiro, por exemplo, é formada por pacientes de municípios do
interior.
Segundo pesquisa encomendada pelo Conselho, se a média nacional é de
1,95 médicos para cada mil habitantes, no Distrito Federal esse número
chega a 4,02 médicos por mil habitantes, seguido pelos estados do Rio de
Janeiro (3,57), São Paulo (2,58) e Rio Grande do Sul (2,31). No extremo
oposto, porém, estados como Amapá, Pará e Maranhão registram menos de
um médico para mil habitantes.
A pesquisa “Demografia Médica no Brasil” revela que há uma forte
tendência de o médico fixar moradia na cidade onde fez graduação ou
residência. As que abrigam escolas médicas também concentram maior
número de serviços de saúde, públicos ou privados, o que significa mais
oportunidade de trabalho. Isso explica, em parte, a concentração de
médicos em capitais com mais faculdades de medicina. A cidade de São
Paulo, por exemplo, contava, em 2011, com oito escolas médicas, 876
vagas — uma vaga para cada 12.836 habitantes — e uma taxa de 4,33
médicos por mil habitantes na capital.
Mesmo nas áreas de concentração de profissionais, no setor público, o
paciente dispõe de quatro vezes menos médicos que no privado. Segundo
dados da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), o número de
usuários de planos de saúde hoje no Brasil é de 46,6 milhões e o de
postos de trabalho em estabelecimentos privados e consultórios
particulares, 354 mil.Já o número de habitantes que dependem
exclusivamente do SUS (Sistema Único de Saúde) é de 144 milhões de
pessoas, e o de postos ocupados por médicos nos estabelecimentos
públicos, 281 mil.
A falta de atendimento de saúde nos grotões é um dos fatores de
migração. Muitos camponeses preferem ir morar em condições mais
precárias nas cidades, pois sabem que, bem ou mal, poderão recorrer a um
atendimento em casos de emergência.
A solução dos médicos cubanos é mais transcendental pelas
características do seu atendimento, que mudam o seu foco no sentido de
evitar o aparecimento da doença. Na Venezuela, os Centros de
Diagnósticos Integrais espalhados nas periferias e grotões, que contam
com 20 mil médicos cubanos, são responsáveis por uma melhoria radical
nos seus índices de saúde.
Cuba é reconhecida por seus êxitos na medicina e na biotecnologia
Em sua nota ameaçadora, o CFM afirma claramente que confiar populações
periféricas aos cuidados de médicos cubanos é submetê-las a
profissionais não qualificados. E esbanja hipocrisia na defesa dos
direitos daquelas pessoas.
Não é isso que consta dos números da OMS (Organização Mundial de Saúde).
Cuba, país submetido a um asfixiante bloqueio econômico, mostra que
nesse quesito é um exemplo para o mundo e tem resultados melhores do que
os do Brasil.
Graças à sua medicina preventiva, a ilha do Caribe tem a taxa de
mortalidade infantil mais baixa da América e do Terceiro Mundo — 4,9 por
mil (contra 60 por mil em 1959, quando do triunfo da revolução) —
inferior à do Canadá e dos Estados Unidos. Da mesma forma, a expectativa
de vida dos — 78,8 anos (contra 60 anos em 1959) — é comparável a das
nações mais desenvolvidas.
Com um médico para cada 148 habitantes (78.622 no total) distribuídos
por todos os seus rincões que registram 100% de cobertura, Cuba é,
segundo a OMS, a nação melhor dotada do mundo neste setor.
Segundo a New England Journal of Medicine, “o sistema de saúde
cubano parece irreal. Há muitos médicos. Todo mundo tem um médico de
família. Tudo é gratuito, totalmente gratuito. Apesar do fato de que
Cuba dispõe de recursos limitados, seu sistema de saúde resolveu
problemas que o nosso [dos EUA] não conseguiu resolver ainda. Cuba
dispõe agora do dobro de médicos por habitante do que os EUA”.
O Brasil forma 13 mil médicos por ano em 200 faculdades: 116 privadas,
48 federais, 29 estaduais e 7 municipais. De 2000 a 2013, foram criadas
94 escolas médicas: 26 públicas e 68 particulares.
Formando médicos de 69 países
Em 2012, Cuba, com cerca de 13 milhões de habitantes, formou em suas 25
faculdades, inclusive uma voltada para estrangeiros, mais de 11 mil
novos médicos: 5.315 cubanos e 5.694 de 69 países da América Latina,
África, Ásia e inclusive dos Estados Unidos.
Atualmente, 24 mil estudantes de 116 países da América Latina, África,
Ásia, Oceania e Estados Unidos (500 por turma) cursam uma faculdade de
medicina gratuita em Cuba.
Entre a primeira turma de 2005 e 2010, 8.594 jovens doutores saíram da
Elam (Escola Latino-Americana de Medicina). As formaturas de 2011 e 2012
foram excepcionais com cerca de oito mil graduados. No total, cerca de
15 mil médicos se formaram na Elam em 25 especialidades distintas.
Isso se reflete nos avanços em vários tipos de tratamento, inclusive em
altos desafios, como vacinas para câncer do pulmão, hepatite B, cura do
mal de Parkinson e da dengue. Hoje, a indústria biotecnológica cubana
tem registradas 1.200 patentes e comercializa produtos farmacêuticos e
vacinas em mais de 50 países.
Presença de médicos cubanos no exterior
Desde 1963, com o envio da primeira missão médica humanitária à Argélia,
Cuba trabalha no atendimento de populações pobres no planeta. Nenhuma
outra nação do mundo, nem mesmo as mais desenvolvidas, teceu semelhante
rede de cooperação humanitária internacional. Desde o seu lançamento,
cerca de 132 mil médicos e outros profissionais da saúde trabalharam
voluntariamente em 102 países.
No total, os médicos cubanos trataram de 85 milhões de pessoas e
salvaram 615 mil vidas. Atualmente, 31 mil colaboradores médicos
oferecem seus serviços em 69 nações do Terceiro Mundo.
No âmbito da Alba (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América),
Cuba e Venezuela decidiram lançar em julho de 2004 uma ampla campanha
humanitária continental com o nome de Operação Milagre, que consiste em
operar gratuitamente latino-americanos pobres, vítimas de cataratas e
outras doenças oftalmológicas, que não tenham possibilidade de pagar por
uma operação que custa entre cinco e dez mil dólares. Esta missão
humanitária se disseminou por outras regiões (África e Ásia). A Operação
Milagre dispõe de 49 centros oftalmológicos em 15 países da América
Central e do Caribe. Em 2011, mais de dois milhões de pessoas de 35
países recuperaram a plena visão.
Quando se insurge contra a vinda de médicos cubanos, com argumentos
pueris, o CFM adota também uma atitude política suspeita: não quer que
se desmascare a propaganda contra o regime de Havana, segundo a qual o
sonho de todo cubano é fugir para o exterior. Os mais de 30 mil médicos
espalhados pelo mundo permanecem fiéis aos compromissos sociais de quem
teve todo o ensino pago pelo Estado, desde a pré-escola e de que, mais
do que enriquecer, cumpre ao médico salvar vidas e prestar serviços
humanitários.
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