agosto 29, 2013

"Introdução à vida não fascista- Michel Foucault" (Resistências e Resiliências)

PICICA: "Como se introduz o desejo no pensamento, no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve despender suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de mudança da ordem estabelecida?"

Introdução à vida não fascista- Michel Foucault

[Prefácio à edição americana do Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari [trad. F. Durand Bogaert, N. York, Viking Press, 1977]. Republicado em M. Foucault Dits et Écrits, vol III (1976-1979). Paris: Gallimard, 1994. Extraído de Carlos Henrique de Escobar (org), Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon Editorial, 1991. Tradução de Carmem Bello a partir do texto editado na revista Magazine Littéraire , n. 257, septembre, 1988.]
               Michel Foucault
     

Durante os anos 1945-65 (penso na Europa), havia uma maneira correta de pensar, um certo estilo de discurso político, uma certa ética do intelectual. Era preciso estar na intimidade com Marx, não deixar seus sonhos vagabundear muito longe de Freud, e tratar os sistemas dos signos - o significante - com o maior respeito. Tais eram as três condições que tornavam aceitável esta ocupação singular que é o fato de escrever e de enunciar uma parte da verdade sobre si mesmo e sua época.


Depois viriam cinco breves anos, apaixonados, cinco anos de júbilo e de enigma. Às portas do nosso mundo, o Vietnã, evidentemente, e o primeiro grande golpe levado aos poderes constituídos. Mas aqui, no interior dos nossos muros, o que se passava exatamente? Uma amálgama de política revolucionária e anti-repressiva? Uma guerra levada em duas frentes - a exploração social e a repressão psíquica? Uma elevação da libido modulada pelo conflito de classes? É possível. Seja o que for, é por esta interpretação familiar e dualista que se pretendeu explicar os acontecimentos destes anos. O sonho que, entre a I Guerra Mundial e o acontecimento do fascismo, havia tido sob seu charme as frações mais utopistas da Europa - a Alemanha de Wilhem Reich e a França dos surrealistas - havia retornado para abarcar a própria realidade: Marx e Freud iluminados pela mesma incandescência.

 Mas foi bem isso que se passou? Tratou-se de uma retomada do projeto utópico dos anos 30, desta vez à escala da prática histórica? Ou houve, ao contrário, um movimento em direção às lutas políticas que não se conformavam mais com o modelo prescrito pela tradição marxista? Em direção a uma experiência e uma tecnologia do desejo que não eram mais freudianas? Certamente brandiram-se os velhos estandartes, mas o combate se deslocou e ganhou novas zonas.

O Anti-Édipo mostra, em primeiro lugar, a extensão do terreno coberto. Mas é preciso muito mais. Ele não se dissipa no denegrimento dos velhos ídolos, mesmo se ele se diverte muito com Freud. E,sobretudo, nos incita a ir mais longe.

Seria um erro ler o Anti-Édipo como a nova referência teórica (essa famosa teoria que se nos anunciaram tantas vezes: essa que vai tudo englobar, aquela que é absolutamente totalizante e tranqüilizadora, aquela que nos asseguram da qual “temos tanta necessidade” nesta época de dispersão e de especialização, de onde a “esperança” desapareceu). Não é preciso procurar uma “filosofia” nesta profusão extraordinária de noções nova e de conceitos-surpresa. O Anti-Édipo não é um Hegel escandaloso. A melhor maneira, creio eu, de ler o Anti-Édipo é abordando-o como uma “arte”, no sentido em que se fala de “arte erótica”, por exemplo. Apoiando-se sobre noções aparentemente abstratas de multiplicidades, de fluxo, de dispositivos e de alternativas, a análise da relação do desejo com a realidade e com a “máquina” capitalista contribui para responder a questões concretas.

Questões que se preocupam menos com o «porquê» das coisas que com seu «como». Como se introduz o desejo no pensamento, no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve despender suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de mudança da ordem estabelecida? Ars erótica, ars theoretica, ars política.
Daí os três adversários com os quais o Anti-Édipo se encontra confrontado. Três adversários que não têm a mesma força, que representam graus diversos de ameaça, e que o livro combate por diferentes meios.

1- Os ascetas políticos, os militantes morosos, os terroristas da teoria, aqueles que queriam preservar a ordem pura da política e do discurso político. Os burocratas da revolução e os funcionários da verdade.

2- Os deploráveis técnicos do desejo - os psicanalistas e semiólogos que registram cada signo e cada sintoma, e que querem reduzir a organização múltipla do desejo à lei binária da estrutura e da falta.

3- Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (já que a oposição de O Anti-Édipo a seus outros inimigos constitui antes um engajamento tático): o fascismo. E não apenas o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini - que soube tão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas - mas também o fascismo que está em todos nós, que assombra nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa mesma que nos domina e nos explora.

Eu diria que O Anti-Édipo (que seus autores me perdoem) é um livro ético, o primeiro livro de ética que foi escrito na França desde há muito tempo (é talvez a razão pela qual o seu sucesso não se limitou a um «leitorado» particular: ser anti-Édipo tornou-se um estilo de vida, um modo de pensamento e de vida). Como fazer para não vir a ser fascista mesmo quando (sobretudo quando) se crê ser um militante revolucionário? Como desembaraçar nossos discursos e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como caçar o fascismo que se incrustou em nosso comportamento? Os moralistas cristãos procuravam os traços da carne que estavam alojados nas dobras da alma. Deleuze e Guattari, por sua parte, vigiam os traços mais ínfimos do fascismo no corpo.

Rendendo uma modesta homenagem a S. Francisco de Salles [Homem da igreja do séc. XVII, que foi cardeal de Genebra. É conhecido por sua Introdução à vida devota], poder-se-ia dizer que o Anti-Édipo é uma introdução à vida não-fascista.

Esta arte de viver, contrária a todas as formas de fascismo, quer estejam já instaladas ou próximas do ser, se faz acompanhar de um certo número de princípios essenciais, que eu resumiria como se segue,se tentasse fazer deste grande livro um manual ou um guia da vida cotidiana:

- Libere a ação política de toda a forma de paranóia unitária e totalizante.

- Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, antes que por submissão e hierarquização piramidal.

- Libere-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna) que o pensamento ocidental por tanto tempo manteve sagrado enquanto forma de poder e modo de acesso à realidade. Prefira o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os agenciamentos móveis aos sistemas, considere que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade.

- Não imagine que precise ser triste para ser militante, mesmo se a coisa que combatemos é abominável. É o elo do desejo à realidade (e não sua fuga nas formas da representação) que possui uma força revolucionária.

- Não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política para desacreditar um pensamento, como se ele não fosse senão pura especulação. Utilize a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política.

- Não exija da política que ela restabeleça os «direitos» do indivíduo, tais como a filosofia os definiu.O indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é «desindividualizar» pela multiplicação e pelo deslocamento, pelo agenciamento de combinações diferentes. O grupo não deve ser o elo orgânico que une indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de «desindividualização».

- Não se apaixone pelo poder.

Poder-se-ia mesmo dizer que Deleuze e Guattari gostam tão pouco do poder que procuraram neutralizar os efeitos de poder ligados a seu próprio discurso. Daí os jogos e armadilhas que se encontram um pouco em todo o livro, e que fazem de sua tradução uma verdadeira prova de força. Mas não são as armadilhas familiares da retórica, aquelas que procuram seduzir o leitor sem que ele esteja consciente da manipulação, e acabam por ganhá-lo para a causa dos autores contra sua vontade. As armadilhas de O Anti-édipo são aquelas do humor: tantos convites a se deixar expulsar, a autorizar o adeus ao livro em fechando a porta. O livro leva muitas vezes a pensar que ele não é senão humor e jogo lá onde, no entanto,qualquer coisa de essencial acontece, qualquer coisa que é da maior seriedade: a caça a todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos circundam e nos comprimem, até as formas pequenas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas.


Fonte: Resistências e Resiliências

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