PICICA: "Se, como disse Deleuze, “não existe governo de esquerda”, e “ser de
esquerda é uma questão de percepção”, podemos dizer: neste momento, não
há sequer um partido de esquerda. No governo, o PT se transformou no
partido da ordem e do capitalismo cognitivo, como deixaram claro os
problemas em torno da relação com a rede Fora do Eixo e sua política de
exploração do comum. Os partidos à esquerda do governo e do PT vêm
cometendo sucessivos atos dirigistas e violentos contra as
manifestações. Com uma leitura absolutamente equivocada e dogmática da
realidade, engrossam o discurso de criminalização dos manifestantes.
Por outro lado, há outra esquerda que não consegue se livrar de um
moralismo excessivo e de uma postura puramente negativa, e que talvez
seja culpada por sua própria baixa popularidade. Nada disso, em nenhum
momento, pode ser considerado um ato de esquerda, não desta esquerda de
que nos fala Deleuze.
Sem partido de esquerda que possa atuar em conjunto com a multidão
das ruas nos sobrariam o caos e a direita oportunista? Não acredito
nesta avaliação. É preciso voltar um pouco para deixar claro o porquê."
A multidão e as assembleias populares
26/08/2013
Por Ricardo Gomes
“Uma prática teórica necessariamente política, já que não quer impor uma visão sobre o real, mas assumir-se real, e assim entrar num processo imanente de criação de signos revolucionários. Acreditamos que grande parte do que acontece hoje nas manifestações de rua no Brasil tem relação direta com o conceito de multidão. Um conceito vivo, uma prática aberta.”
Por Ricardo Gomes, no blogue PegaroSolComaMão
Se, como disse Deleuze, “não existe governo de esquerda”, e “ser de esquerda é uma questão de percepção”, podemos dizer: neste momento, não há sequer um partido de esquerda. No governo, o PT se transformou no partido da ordem e do capitalismo cognitivo, como deixaram claro os problemas em torno da relação com a rede Fora do Eixo e sua política de exploração do comum. Os partidos à esquerda do governo e do PT vêm cometendo sucessivos atos dirigistas e violentos contra as manifestações. Com uma leitura absolutamente equivocada e dogmática da realidade, engrossam o discurso de criminalização dos manifestantes.
Por outro lado, há outra esquerda que não consegue se livrar de um moralismo excessivo e de uma postura puramente negativa, e que talvez seja culpada por sua própria baixa popularidade. Nada disso, em nenhum momento, pode ser considerado um ato de esquerda, não desta esquerda de que nos fala Deleuze.
Sem partido de esquerda que possa atuar em conjunto com a multidão das ruas nos sobrariam o caos e a direita oportunista? Não acredito nesta avaliação. É preciso voltar um pouco para deixar claro o porquê.
Faremos um percurso que se inicia antes desta desastrada conjuntura (desastrada para os partidos, claro). Nossa tentativa será, ainda que de maneira rápida, procurar nos últimos anos como se constituíram as multidões que vemos hoje em várias cidades do Brasil, mas especialmente no Rio de Janeiro. Menos uma análise e mais uma descrição das relações, apropriações, uma prática teórica necessariamente política já que não quer impor uma visão sobre o real, mas assumir-se real, e assim entrar num processo imanente de criação de signos revolucionários. Acreditamos que grande parte do que acontece hoje nas manifestações de rua no Brasil tem relação direta com o conceito de multidão. Um conceito vivo, uma prática aberta.
A multidão é aquilo que existe quando um conjunto de singularidades se relaciona, sem que haja perda entre elas. Isto lhe confere legitimidade ontológica. A filosofia italiana da segunda metade do século passado rearticulou este ideia, tirada de uma junção ‘monstruosa’ entre Marx e Espinosa, com colaboração do chamado “pós-estruturalismo francês”.
O filósofo italiano Antonio Negri foi quem melhor traçou uma linha de fuga entre esses filósofos, fazendo do conceito uma articulação radical do problema em torno de um projeto absoluto, mas não total, que visa a construir outro mundo, pós-capitalista. Negri descreve de modo sucinto o conceito: “[uma] democracia real do governo de todos para todos, baseado em relações de igualdade e liberdade” (Por Uma Definição Ontológica da Multidão, em Lugar Comumn, n.ª 19-20, p .17). Podemos dizer que se trata do que Deleuze/Guattari chamam de acontecimento, com seus desdobramentos concretos e sua diferenciação interna constante, sua força virtual desviante e sua atualização problematizante.
Acontecimento é o nome de um ato dentro da história, mas para além dela. Ato excessivo que não se contém no estado atual de coisas reais, mas se abre necessariamente para o futuro. O fato da multidão ser ao mesmo tempo um acontecimento e um conceito permite que ela tenha uma extensão, que ela percorra um caminho e crie um complexo e concreto plano de consistência com outros conceitos e ações em diversos momentos distintos. A extensão do conceito de multidão se deve à elasticidade com que consegue renovar sua potência central, e sem entrar em nenhum processo de vulgarização factual. Ao mesmo tempo, sem deixar de ser peça real de uma máquina insurgente que só existe quando está no meio das lutas sociais concretas. É este plano de consistência que tentaremos seguir.
A multidão é a expansão e expressão da cooperação constituinte entre as singularidades como forma de vida, de enfrentamento e afirmação política. O que constitui as questões reais da multidão hoje está, por uma lado, num ganho concreto em relação à certa situação política anterior, o chamado “chão de fábrica”, onde supostamente ainda existiam identidades políticas reconhecíveis e seus interesses próprios. Hoje, não temos mais essas identidades ou sujeitos. O ‘proletariado’ e o ‘capitalista’ não passam de velhos simulacros que servem para o capital criar acenos nostálgicos e paralisantes. Por isso, é um erro criticar o nosso tempo por uma suposta perda de diretos, sem levar em consideração todo o horror necessário para a manutenção de tais direitos e, principalmente, sem levar em consideração que não há mais volta. Este novo momento é sinal da recusa por parte dos próprios trabalhadores, em relação ao estado de coisas em que se encontravam quando formularam as reivindicações e forjaram as condições para as mudanças, possibilitando assim a nossa organização social contemporânea.
Por outro lado, temos uma atuação efetiva contra as novas tentativas de assujeitamento e exploração, por parte dos poderes globais. Essa atuação se dá através da cooperação e expansão dos limites subjetivos para as modulações de poder. Temos, portanto, o atrito afirmativo contra tais modulações, e iniciativas descontínuas para criar espaços comuns, lugares onde a produção do real possa ser mais uma vez desenvolvida a partir de desejos autônomos. É importante dizer que a multidão não tenta impor uma visão ideal sobre as tensões e conjunturas, e sim ser uma nova articulação entre teoria e prática, onde o conceito efetiva um atletismo próprio aos acontecimentos e seus desejos. Fuga que faz fugir aquilo do qual se foge. Desejo coletivo de efetivar uma democracia radical onde a substancialização e o desenvolvimento das diferenças concretas sejam a medida imediata de outras formas de organização social. Por isso, afirmamos que a invenção, a construção e expressão da liberdade (o que é totalmente distinto da famigerada e conveniente ‘liberdade de expressão’) são sempre primeiras, e são elas que geram as novas conjunturas das lutas.
O que queremos fazer aqui, trazendo este conceito, é dizer como o que vem acontecendo nas ruas tem relação com um processo político que ocorreu nos últimos anos no Brasil.
Com todas as suas limitações a chegada ao poder do governo Lula trouxe uma série de novas invenções e tensões sociais, raciais, étnicas etc. Este governo se notabilizou por construir uma agenda social que não era pautada por um programa neoliberal e sua dogmática, onde a emancipação viria do emprego ‘tradicional’ e do desenvolvimento econômico (como nos mostra Guiseppe Cocco, em MundoBraz, essa visão neoliberal é compartilhada inclusive por boa parte da ‘esquerda’).
Obviamente, não podemos esquecer das especificidades que cercam cada manifestação. No Rio de Janeiro, por exemplo, onde nós iremos nos concentrar, devemos levar em consideração a forma como se organizou um estado de exceção. Projeto de segurança que atravessa toda a sociedade, utilizando o monopólio da violência por parte do estado, no controle das vidas. Aprofundamento da privatização dos últimos espaços onde a sociabilidade ainda podia correr solta, gerando remoções e quebrando uma série de regras e mecanismos de consultas populares, que evitariam estas remoções. A ligação entre grandes projetos, grandes obras e uma política de mobilidade que não leva em consideração formas de revitalizar o transporte coletivo de qualidade. O aumento dos preços dos aluguéis e alimentos, em todas as áreas, ajudando a forjar uma forma de vida elitista e excludente, a partir da formulação de subjetividades entrelaçadas pelos movimentos espirais do capital e seus investimentos sociais. Existem outras características que não precisamos citar agora.
Em nenhum dos exemplos, o estado deve ser responsabilizado sozinho. Nada disso ocorreria sem uma profunda efetivação do desejo do capital internacional e implementação de políticas que visam a fazer da produção do capital o único mediador social válido em todas as questões, desde o transporte até os programas sociais. Os governos funcionam como mediadores para o ‘bom’ comportamento do capital. O neoliberalismo não quer uma estado sem governo, quer um governo mínimo, um síndico para organizar as demandas do capitalismo internacional. É sintomático que seja assim que o próprio prefeito da cidade do Rio se intitula, síndico.
Ainda falando sobre este percurso da multidão, é importante levar em consideração que, com as novas transformações do capitalismo, é a própria vida que é investida pelo capital, dentro ou fora do trabalho. A vida foi absorvida para dentro dos fluxos da produção (e antiprodução). Estamos a todo momento entrelaçados em formas de criar produtos ou valores adicionais para outros produtos. Ao contrário deste panorama, o programa Bolsa Família acarretava o início de um projeto de renda básica universal, sem pré-requisitos, que empoderava uma parte da população que nunca havia tido tal possibilidade. Reconhecendo que as novas formas de exploração passam por todas as atividades humanas e viabilizando que a população que cria valor possa ser recompensada pela sua produção. Nas palavras de Giuseppe Cocco e Antonio Negri “A produção implica a mobilização da vida como um todo, uma mobilização que não é paga. Massificado, apesar de sua concepção originalmente neoliberal (condicionada e focada), o PBF se tornou o embrião de uma renda básica, um primeiro reconhecimento das dimensões produtivas da vida.” (Do Bolsa Família ao levante da multidão)
Mas não podemos nos ater somente às instituições e organismos oficiais. Ora, se foi possível a existência desse sistema, desse projeto, é porque houve certa constituição que lhe deu vida. O governo Lula foi um pé na porta dado pela multidão em alguns espaços institucionais e nas suas velhas organizações de poder no Brasil [Aqui sigo a intuição de Pedro Mendes].
Portanto, as novas configurações das tensões, enfrentamentos e aprofudanmentos democráticos se devem menos à chegada ao poder de um partido de esquerda, do que à sensibilidade deste partido em cercar-se de uma quantidade relevante de agentes sociais, populares e legítimos, que em outros partidos seriam enxotados ou dirigidos. Mas se deve, principalmente, à construção generosa e coletiva de forças insurgentes, que souberam aproveitar todas as brechas dadas para forçar os limites impostos e criar uma série de excessos absolutamente positivos. Em torno deles, se consolidaram avanços imanentes, a partir de antiquíssimas lutas travadas por diversos grupos no Brasil. Podemos citar o caso do MST, do movimento negro, das cotas raciais nas universidades públicas, do PROUNI etc.
Ora, é inegável que os processos foram empoderamentos de grupos que há muito tempo demandavam espaços para desenvolver suas potências coletivas (ainda que insuficientes). Assim, podemos dizer que em certo momento no Brasil se constituiu uma multidão e que ela soube atravessar um governo. Acreditamos que isso se deu na conjunção em torno (mais do que dentro) do governo Lula.
Governo Lula como uma brecha possível aberta pela multidão, Dilma claramente como um recuo. Os grandes eventos, as grandes obras, as grandes metas, o grande crescimento. A multidão que, pelas suas características não faz acordo, percebe que as brechas estão sendo fechadas e ataca, volta a fugir, criar atritos e estranhamentos, imagens inconcebíveis. Como os punks nos telhados do Palácio do Planalto, ou a retirada da PM-RJ na retomada dos índios na Aldeia Maracanã.
Nada disso se passa sem que haja a todo o momento o perigo da captura, de virada à direta, de utilização da população para projetos e pautas reacionárias pela mídia e demais corporações. Mas, até agora, é absolutamente inegável a inteligência com que a multidão tem conseguido conjugar radicalidade nas ações, assembleísmos nas deliberações e uma estética do improviso na hora dos recuos e dos avanços. Tudo isto, praticamente ao mesmo tempo, tem deixado todos perdidos. Todos! Inclusive militantes de rua de outros tempos. O perigo de captura tem sido combatido e derrotado nas ruas mais do que em qualquer outro lugar. Por isso, não se deve deixar de ir para as ruas por medo da captura. Ao contrário, utilizar o discurso do medo pode servir para imobilizar grupos e desejos que poderiam avançar no radical processo democrático que está começando a ser desenvolvido.
Voltemos aos ataques. As manifestações que hoje acontecem em todo o Brasil, aparentemente com mais constância e intensidade no Rio (o que não garante nada), tem relação direta com esta multidão que atravessou o governo Lula, que cresceu neste governo e criou novos enunciados e signos desestabilizadores da educação formal, barrou a naturalização de certa violência imposta pela fome, mexeu com o núcleo duro do capital cultural da elite brasileira de forma autônoma e alguns outros avanços. Certamente, houve retrocessos nesse governo, mas o que nos interessa aqui é deixar claro todo o trabalho produtivo e positivo feito pela multidão. Além disso, não podemos esquecer que houve outras tantas alianças com grupos que foram violentados por este mesmo governo, principalmente pelo atual. Falamos dos removidos pelas barragens, usinas. Os índios que estão sendo atacados pelo agronegócio com a complacência, para dizer o mínimo, do governo federal, e ainda muitos outros grupos que agora acharam uma conjuntura favorável para levantar suas demandas.
Aqui cabe um parêntese para falarmos mais de algo que serve tanto para caracterizar como para se aproximar da multidão. Entendemos que não pode haver separação entra ser e analisar multidão. Para nos aproximar da multidão das manifestações das ruas (que estão ligadas a outras singularidades que atravessam outras tantas lutas, como as que falamos acima, e todas essas conexões são ainda a multidão), não basta atravessar a consciência e ir até o indivíduo real, mas devemos ir até onde esse indivíduo real foi forjado como um momento de defasagem num initerrupto processo de produção do ser, da constituição múltipla das singularidades pré-individuais que, em seu processo de individuação, forjam bem mais do que indivíduos. A tese aqui (retirada de Gilbert Simondon) é de que não ter o indivíduo como princípio poderá nos ajudar a melhor percorrer e produzir com a multidão. Isto não implica, em nenhum momento, abrir mão dos processos concretos das lutas. Ao contrário, implica entender e vivenciar as múltiplas relações internas, criando com elas uma comunicação não mediada por categorias de sobrecodificação, ou seja, categorias que vão traçar limites e identidades e assim servir para enquadrar, cortar o devir.
Quando fazemos este pequeno percurso que recupera os movimentos recentes da multidão o que queremos é visulizar melhor seu devir potente e qual pode ser sua fraqueza autodestrutiva. Para que sigamos a pensar esta potencia entraremos agora em uma das formas mais eficazes e constantes de organização das multidão das ruas: as assembleias populares.
As assembleias populares se espalharam no Rio de Janeiro a partir da terceira grande manifestação de rua, no dia 20 de julho. Depois de responder a um chamado centralizado para uma assembleia dentro do IFCS, vários grupos insatisfeitos com a dinâmica de organização desta primeira grande assembleia criaram assembleias de bairros e uma no lado de fora do mesmo lugar onde esta primeira grande assembleia ocorrera. A insatisfação dos pessoas decorreu de vários fatores, os maiores foram a forma centralizada como a assembleia acontecia, o uso que alguns partidos tentaram fazer e o velho debate interno do marxismo paralisado, entre outros. Tudo isto afastou as pessoas da “Grande Assembleia Geral”, mas as pessoas continuaram seu desejo constituinte e efetivaram outras assembleias menores.
A Assembleia do Largo, que fica do lado de fora do IFCS, no Largo São Francisco, tem demonstrado força coletiva e organização, formalizando grupos autogestionários e ações autônomas para as manifestações. Agora, começamos a organizar debates e outros eventos em outros lugares, onde há coletivos insurgentes. Nesses coletivos, e também em outros que surgiram antes das manifestações, o assembleísmo tem sido de fundamental importância para a vivacidade dos grupos. Acreditamos que as assembleias serve, em primeiro lugar, como concentração e fortalecimento de grupos. Além disso, para uma melhor articulação entre os diversos desejos dispersos e táticas de atuação. Desta maneira, podem ser pontas de lança experimentais, para a formulação de instituições horizontais. Nestas, o desejo produtor do real não é desarticulado de sua produção, nem de quem o produz, de toda maquinaria do processo produtivo*. O caso é sempre saber que desejo atravessa quais grupos, não numa atitude reflexiva, mas sim para o bom governo de si e da sua força. Elas carregam e muitas vezes efetivam a possibilidade de conjugar os fluxos livres, que percorrem os espaços em busca de sua propagação, em busca do aumento de sua potência. Praticando uma ética minuciosa. Uma ética da composição de elementos díspares, em prol da alegria e da invenção. Os elementos entram nos processos de individuação, de que falamos um pouco acima, e formam coletividades, nunca indivíduos. Eles estão aquém e além, antes e depois da formação do sujeito como unidade de sentido autodeterminável que, ironicamente, recebe esta auto determinação de algum tipo de transcendência, que diga quem ele é e o que deve fazer, seja Deus, o estado, o partido, o programa utópico ou científico…
As singularidades, ao contrário, são uma legião necessariamente rebelde. Microcomposições são formadas, grupos mais bem delineados se esparramam por outras formas, logo percebemos que se trata mais de uma tática do que uma identidade. Podemos ver esta dinâmica justamente no debate travado sobre a desmilitarização das polícias. Se, num primeiro momento, tínhamos poucas ideias sobre o assunto, ou uma maneira de ver que estava carregada de velhos preconceitos, agora já desenvolvemos não somente novas ideias, mas sobretudo formas de ser em que o desejo policialesco é combatido. Não é mais algo exterior a nós, do qual falamos com certa distancia. Agora queremos uma forma prática e popular de invenção coletiva de uma nova polícia, sem as ilusões liberais que tantas vezes se voltam contra nós. Uma polícia efetivamente de todos. Não do estado, não da ordem, da multidão.
Das lutas, das táticas, das experimentações, surgem rascunhos de corpos inorgânicos, cidadelas provisórias, pautas coletivas que abraçam outras pautas: certas ideias gerais (‘noções comuns’?) apontam horizontes concretos. Muitas das questões começam a emperrar em problemas vizinhos: a falta de uma radicalização democrática na segurança pública, nos transportes, na educação detonam tanto o discurso falso e elitista/tecnicista que só especialistas devem participar de certas decisões, quanto o desdém com o qual os poderes estabelecidos têm tratado todas as instâncias mínimas de democratização.
Hoje, no estado de exceção amplamente instalado no Rio de Janeiro, se chegou a um nível tão profundo de afastamento dos desejos reais que nem os mecanismos que foram forjados nas aberturas criadas pelos antigos movimentos sociais para representar os desejos reais (e assim mediar, pacificar, acalmar) estão sendo respeitados. E aqui não falo só dos partidos, sindicatos e etc, mas, sobretudo dos mecanismos legais abertos, que serviram para prestar consultas técnicas e/ou populares. Estes mecanismos geralmente criados em governos progressistas foram muito rapidamente enfraquecido ou aparelhado, além de, como já dissemos, abertamente desrespeitados.
Cabe a pergunta, até que ponto devemos ser legalistas ‘nesta altura do campeonato’? Até que ponto devemos nós, os que sofrem na mão das relações de poder, respeitar cegamente à interpretação dogmática que o poder constituído confere à Lei, nos casos em que ela não passa de retórica conveniente nas mãos do poder. Já está bastante claro que não é à “democracia” neoliberal a que devemos recorrer, pois foi ela que nos levou a todo este terrível problema, ela é que está sempre pronta a destruir o outro utilizando uma suposta universalidade dos direitos ou do que seja.
Como nos diz de forma lapidar Deleuze e Guattari: “Quem pode manter e gerar a miséria, e a desterriotrialização e reterritorialização das favelas, salvo polícia e exércitos poderosos que coexistem com as democracias? Que social democracia não dá a ordem de atirar quando a miséria sai do seu território ou gueto? (…) Os direitos do homem não dizem nada sobre os modos de existência imanente dos homens desprovidos de direitos. E a vergonha de ser um homem, nós não a experimentamos somente em situações extremas (…) mas nas condições insignificantes, ante a baixeza e a vulgaridade da existência que impregnão as democracias, ante a propagação destes modos de existência e de pensamento-para-o-mercado…” (Gilles Deleuze e Felix Guattari, O que é Filosofia páginas e 140) .
Portanto, não se trata de correr atrás de um legalismo onde o legalismo é abertamente manipulável. Por isso, também quando é quebrada uma vidraça, isto não é uma violência simbólica, ela é real, por que ela se opõe ao conjunto de coisas em sua estrutura, causando efeitos reais.
Se hoje é óbvio o estado de exceção em que vivemos, ele é antes de tudo efeito de outras lutas e outros deslocamentos. Por isso, não devemos ter nenhuma nostalgia em relação a um passado que foi de todo modo indesejado. Devemos radicalizar este processo, entrar para disputar a exceção. Por que somos excessivos, por que criamos espaços onde multiplicidades abertas podem formar e compor outras multiplicidades, na instauração de uma democracia global e radical que não seria possível antes. Nós somos a exceção por fora do estado, porque queremos mais, mais e mais, até romper o nível de controle que o capital, este grande corpo abstrato que perpassa todas as composições e marca os corpos, seja consumido.
No Brasil, o excesso que nos constitui, a pura e desenfreada afirmação da vida em cada esquina, às vezes, é posta em contraste com a violência brutal das cidades. Mas se trata de uma velha tentativa de encerrar tudo numa dicotomia, que parte do não reconhecimento do poder ante o ato de resistir e exceder dos pobres. Nossa constituição histórica, nossa deformação social, nos permite viver uma vida miserável e farta ao mesmo tempo. Viramos a mesa e afirmamos a vida porque é isso que nos ensina a potência dos pobres e sua constante fuga e reinvenção, sua geografia monstruosa**. Não devemos abrir mão da potência que nos atravessa, a potência que constituiu os devires menores, as forças vivas que fizeram do Brasil um lugar privilegiado para pensar um mundo onde as diferenças são desdobradas em todas as suas problemáticas e possíveis potencias. A antropofagia, a favela, as cotas, os monstros todos, hybris híbridos de que somos feitos.
Por tudo isto, acreditamos que se trata de uma novidade monstruosa, de uma outra forma de organização social, mestiçagem potente que se articula a partir da horizontalidade, cooperação e dissensos produtivos, das assembleias e outras organizações sociais populares. Estas são produções de um desejo constituinte, de uma sociabilidade para além da queda de um ou outro governante. Talvez um comunismo selvagem, libertário e internacional que estas organizações (como as assembleias populares) potencializam.
O comunismo é um termo, conceito ou ideia que tem uma enorme variabilidade de definição. Primeiro, o próprio Marx caminhou do humanismo do Manifesto comunista, quando diz que o comunismo é uma ideia que diz respeito ao destino da humanidade, até o seu materialismo histórico, em A ideologia alemã, onde ele define “o comunismo não é para nós um estado de coisas que deve ser estabelecido, um ideal pelo qual a realidade terá de se regular. Chamamos comunismo o movimento real que supera o atual estado das coisas” (Karl Marx, A ideologia alemã p. 43). Esta ultima definição do Marx parece ser muito útil e oportuna para a questão que queremos estamos discutindo.
Ela começa com algumas negativas fundamentais. Ele diz que não é algo a ser estabelecido em bloco, não é um sistema fechado que irá se impor, não é a submissão do real a uma idealidade normativa, nem um estado ideal a que se deve chegar. Aqui, nos opomos diretamente a Alain Badiou, que diz: “Para usar uma expressão de Kant, trata-se de uma ideia com função reguladora, e não de um programa” (Alain Badiou, A hipótese comunista). Temos aí uma pequeno ensejo, ainda negativo, da força do movimento comunista, um atalho para as construções coletivas, descentralizadas. Lugar de onde se parte sem finalidades que não seja a de sua próprias possibilidades, Problema que traz suas próprias soluções e soluções que não finalizam o problema
Chegamos no núcleo positivo da definição, “Chamamos comunismo o movimento real que supera o atual estado das coisas”. O comunismo é feito de lutas, a partir delas, do movimento real (é bom não confundir aqui real com objetivo, o real não é oposto a subjetivo, os dois são reais e têm sua objetividade específica), destruição total, negação radical que se nega, deixando entrever uma afirmação pura, ontológica. Afirmação da multidão, de um aprendizado e uma construção irredutível ao estado de coisas que ele visa a destruir. Portanto, podemos dizer, acrescentando mais uma definição, mesmo ela não sendo absolutamente nova, que comunismo selvagem é aquilo que se cria na expansão imanente às instituições, nos corpos saídos dos movimentos das lutas, uma prática de compor com quem intensifica esta força.
Tudo isso tem se fortalecido com as manifestações. Por isso, acreditamos que devemos continuar, não é o momento para acordos e concessões, muito menos para disseminar o medo das ruas. As assembleias também devem levar isso em consideração. A burocracia é extremamente brochante. As voltas constantes nas regras e suas discussões intermináveis, e em muitos momentos irreais, são maneiras de autossabotagem. Não será o bom funcionamento de nenhuma assembleia que irá garantir a viabilidade de nossas pautas e desejos mais radicais. Não podemos em nenhum momento esquecer o quanto o caos bem conjugado com um desejo produtivo de outro mundo está sendo fundamental em todas as pequenas mas relevantes vitórias que tivemos. Este caos não pode em nenhum momento se ausentar de uma assembleia que quer ser mobilização e espaço para o outro.
Uma certeza, ‘nossos planos são muito bons’!!!
——
Ricardo Gomes é filósofo e militante
*Quando falamos de máquinas não estamos usando metáforas, trata-se de entender o funcionamento daquilo que existindo conjuga os mais diversos objetos dando-lhes uma serventia produtiva. Elas fazem algo, isto que eles fazem é o real, ou melhor, todo real é feito assim. Polícia-grande mídia, maquina fascista de destruição e identificação ou, coletivos-mil celulares transmitindo ao vivo, máquina de guerra, contrainformação e cooperação, pela vida e pela continuidade dos desejos da manifestação para além das ruas, ou black block-professores-máquina que pode gerar outra educação e outras formas de militâncias dentro de velhos movimentos sociais, e e e… .
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