PICICA: "Para
Ligia Giovanella, faltou pensamento estratégico e produção de consensos
e ampliação da base de apoio social: “a corporação médica declarou
‘guerra’. Mas o programa governamental não é uma declaração de guerra
contra os médicos. É uma iniciativa legítima e em boa parte efetiva para
enfrentar um problema real”.
“Eu sou médica, e
é necessário reconhecer que, inegavelmente, o médico é o profissional
nuclear da atenção à saúde individual. Não existe atenção primária
efetiva sem atenção individual curativa, como, por vezes, argumentam
outras corporações profissionais da área da saúde. É muito positivo que o
SUS tenha se tornado um tema de debate político ampliado, sua
concretização com garantia de atenção universal tenha entrado na agenda
política. Pela primeira vez a corporação médica fala em carreira com
trabalho exclusivo no SUS. Este debate é uma grande oportunidade”,
finalizou Ligia Giovanella."
Por um SUS pra valer: plano de carreira e recursos garantidos
Crédito: Divulgação
De Ana Maria Costa (1)
As
recentes manifestações de insatisfação popular com os serviços
públicos, que deve ser celebrada como aprofundamento da democracia
nacional, como explicitado em Nota do Cebes (2), trouxe a saúde para a
agenda central dos governos, particularmente o federal. Na opinião de
Silvio Fernandes (3) estas manifestações populares fizeram com que a
saúde e o SUS saíssem da crônica condição de assunto de agenda setorial e
contra hegemônica que sempre foi levada à reboque dos interesses da
política macro econômica.
A precariedade da
assistência medica – ambulatorial ou de emergência – não está restrita a
pequenas cidades ou regiões especificas, mas constitui problema sério
em todo o país e a população sofre as consequências disso. Pressionado
pelos prefeitos, o Governo apresentou a proposta de ampliação do numero
de médicos com vistas a suprir a constatada deficiência destes
profissionais em municípios pobres, menores, sem qualquer recurso de
saúde. Dispor de equipes de saúde, com todos os profissionais em todos
os municípios brasileiros, é um antigo desafio para o SUS e para o
estado brasileiro, cuja Constituição promete o direito universal à saúde
sob a responsabilidade pública.
Rigorosamente
não se pode falar de escassez de médicos no país, entretanto a falta de
médicos se configura como grave problema pela persistente má
distribuição destes profissionais. Ela está caracterizada pelas enormes
lacunas territoriais com ausência de médicos. Esta situação de
desigualdade no acesso à assistência a saúde é intolerável e sua solução
é responsabilidade da sociedade e dos governos. A concentração de
médicos nas grandes cidades, aqui e em todo o mundo, decorre de uma
tendência dos profissionais de saúde em se fixarem em áreas onde existem
mais recursos tecnológicos e econômico-financeiros.
O
problema da distribuição de médicos e demais profissionais de saúde
também tem sido objeto da preocupação dos países e das organizações
internacionais. A migração destes em busca de melhores condições de vida
tem ocasionado um perverso desprovimento nos países de origem.
O
desafio é transformar em prática efetiva as recomendações formuladas
para a solução do problema da falta de médicos de demais profissionais
de saúde. Sob um ponto de vista pragmático das políticas de saúde, já
existem acúmulos suficientes para uma intervenção eficaz. Mas estas
intervenções devem contar com o espírito de compromisso e
responsabilidade social, prevalecimento dos interesses públicos de toda
sociedade brasileira, incluindo a categoria médica.
Para
Henrique Botelho (4), uma atitude corporativista fechada por parte de
instituições médicas brasileiras não contribui para solucionar o
problema. Ele relata que “aqui em Portugal já experimentamos
comportamentos semelhantes. Felizmente que actualmente a Ordem dos
Médicos e os sindicatos têm evoluído no sentido de saberem harmonizar os
interesses de classe com os direitos dos cidadãos e a defesa do nosso
serviço universalista de saúde. Talvez porque o nosso SNS esteja a ser
fortemente atacado pelas políticas neoliberais que desgraçadamente estão
a comprometer o denominado modelo social europeu".
Os
caminhos e alternativas para a interiorização dos profissionais de
saúde são sobejamente conhecidos e, nesse sentido, Ligia Giovanella (5)
lembrou um seminário (6) realizado no Equador em 2008, com a
participação de 13 países da América Latina e Europa, que debateu e
apresentou diversas estratégias e incentivos empregados para fixar
profissionais de saúde em áreas desfavorecidas e/ou remotas.
Uma
destas estratégias para a fixação de profissionais de saúde é a criação
de uma carreira profissional nacional para a atuação na Atenção
Primária à Saúde (APS), que incluísse incentivos para a permanência dos
profissionais de APS em zonas desfavorecidas, com estabilidade de
vínculo de trabalho e salário escalonado conforme e vulnerabilidade
social e incluindo a rotação por antiguidade.
Outra
medida proposta pelos especialistas diz respeito ao fortalecimento da
formação de profissionais da APS com oferta de programas de
desenvolvimento profissional continuo; educação permanente, residência,
especialização para profissionais de APS de zonas desfavorecidas e
Tele-saúde, como ocorre na Espanha, Inglaterra, Suécia.
A
proposta do exercício obrigatório das profissões de saúde em zonas
desfavorecidas, internato rural obrigatório e serviço civil há muitos
anos constam de recomendações deste grupo de especialistas e está
presente em documentos de organismos e fóruns nacionais e
internacionais, que tratam da questão dos recursos humanos de saúde.
Outro
aspecto recomendado é a necessidade de estabelecer processo de
remuneração diferenciado do pessoal de APS em áreas remotas e, ao mesmo
tempo, promover melhorias da infraestrutura e das condições de trabalho
para estes profissionais. A oferta de boas condições de vida e de
trabalho para os profissionais que trabalham em áreas desfavorecidas
deve ser considerada questão imprescindível para compor as iniciativas
governamentais.
Segundo Giovanella, o principal
problema da atual iniciativa governamental é a inexistência de carreira
e a precariedade do vínculo por meio de bolsa: “todas as críticas
sensatas ao programa, críticas de quem de fato está preocupado com a
garantia do direito universal de acesso aos serviços de saúde e a
concretização do SUS, salientam que, para atrair e fixar profissionais
em áreas remotas, e no SUS como um todo, é necessário, ademais de
salário razoável, o que já está contemplado no Mais Médicos: um vínculo
estável e estabelecer uma carreira com diretrizes nacionais e aplicação
estadual.
Nesta mesma direção o Cebes se
manifestou em nota e também estão alinhados entidades e integrantes do
movimento da reforma sanitária. Gastão Wagner (7) em artigo de opinião
divulgado recentemente (8) analisa que “as contratações precárias são um
dos principais problemas do SUS hoje” Nesse sentido ele propõe a
criação de uma carreira para os médicos da atenção básica:-Uma carreira
do SUS, com co-financiamento da União, estados e municípios. Fazer
concursos por estado da federação. Criar um interstício de cinco anos em
que o médico estaria obrigado a permanecer no posto. Depois, antes de
outro concurso, ele poderia escolher outra localidade ou outro posto.
Como ocorre com juízes e promotores. Há município sem juiz?, interroga
Gastão.
Pesquisas com jovens médicos têm
mostrado que vários fatores dificultam a fixação dos profissionais de
saúde em áreas remotas e de maior necessidade. Segundo Silvio Fernandes,
a remuneração mais atrativa é uma delas, mas não é a única e, em geral,
sequer a mais importante: “pesa muito a autoestima profissional, ou
seja, uma tendência forte observada na realidade brasileira de associar o
médico de atenção básica àquele que ‘não deu certo’ porque não
‘conseguiu’ ser especialista. Para reverter isso é necessário promover
uma carreira sólida ao médico de família, com perspectiva de ascensão e
continuidade na função”.
Sobre o programa Mais
Médicos, Luis Eugenio Portela (9), que acredita que o Programa Mais
Médicos contém medidas na direção correta, faz ressalvas: “se sua
aplicação for acompanhada da ampliação dos investimentos no SUS, com a
melhoria das condições de trabalho nos serviços de saúde, incluindo a
adequada supervisão pelas Universidades, provavelmente, seus resultados
serão positivos”.
Fernandes, entretanto,
analisa que o "Mais Médicos" deve considerar a experiência acumulada
acerca da fixação dos profissionais no interior. Nesse sentido, ele
comenta: “obviamente o sistema público de saúde não pode conviver com
centenas de municípios e milhões de pessoas sem acesso a médicos e
contar com milhares a mais. Mesmo que para isso seja preciso
complementar com médicos de outros países, é importante e urgente.
Questiono, no entanto, a forma de contratação, precária e por tempo
determinado. Atualmente a rotatividade dos médicos que atuam na rede
básica já é muito elevada e isso tem se mostrado prejudicial para a
qualidade do atendimento da população”.
Sobre a
ampliação da graduação para dois anos, ação também anunciada pelo
governo federal através da MP, Silvio Fernandes não acredita que ela
seja a melhor alternativa de integração com o SUS e de reforço à
formação: “concordo plenamente com a necessidade de que sejam
instituídas formas dos médicos, e também dos demais profissionais de
saúde, se integrarem mais com o sistema público. Mas penso que um ano de
serviço civil obrigatório, que, no caso dos médicos, poderia ser
cumprido associado ou não à residência médica e articulado com as
escolas de graduação ou programas de residência, talvez tivesse melhores
resultados. Além disso, as estratégias de mudança dos currículos de
medicina nessas últimas décadas tem sido tímidas”.
Para
Ligia Giovanella, faltou pensamento estratégico e produção de consensos
e ampliação da base de apoio social: “a corporação médica declarou
‘guerra’. Mas o programa governamental não é uma declaração de guerra
contra os médicos. É uma iniciativa legítima e em boa parte efetiva para
enfrentar um problema real”.
“Eu sou médica, e
é necessário reconhecer que, inegavelmente, o médico é o profissional
nuclear da atenção à saúde individual. Não existe atenção primária
efetiva sem atenção individual curativa, como, por vezes, argumentam
outras corporações profissionais da área da saúde. É muito positivo que o
SUS tenha se tornado um tema de debate político ampliado, sua
concretização com garantia de atenção universal tenha entrado na agenda
política. Pela primeira vez a corporação médica fala em carreira com
trabalho exclusivo no SUS. Este debate é uma grande oportunidade”,
finalizou Ligia Giovanella.
Segundo a Laura
Tavares Soares (10), a MP foi assumida para atender, de modo
emergencial, à pressão das ruas:“autoritária e pouco democrática? Sem
dúvida. Como profissionais de saúde, sabemos que as soluções
emergenciais são adotadas, em sua maioria, pela ausência de medidas
anteriores capazes de resolver, de modo estrutural, os determinantes dos
problemas de saúde”. “Nada será possível, no entanto, sem que o
financiamento da saúde seja revisto”, concluiu.
Enquanto
o debate se acirra no Congresso Nacional onde a MP recebeu mais de 200
emendas e as corporações pressionam pelo fim do "Mais Médicos", a
população espera pelo SUS de qualidade e resolutivo. Paralelo a todo
esse debate, mais de 2 milhões de pessoas apoiaram o projeto de lei de
iniciativa popular pela destinação de 10% das receitas brutas da União
para a Saúde. Este é o verdadeiro caminho que poderá fazer com que o SUS
retome seu curso como um sistema de atenção e de cuidado à saúde de
acordo às múltiplas e complexas dimensões que o setor exige. O processo
subsequente à entrega deste projeto de lei exigido pelo povo será o de
garantir sua aprovação pelo Congresso Nacional. E depois de aprovados os
recursos estáveis e adequados para o SUS, caberá ainda atuar junto aos
governos pela definição de qual SUS é capaz de responder aos anseios
populares. Esta sim, uma grande tarefa que precisará, outra vez, do
compromisso e esforço de todos nós.
(1) Presidente do Cebes.
(3) Silvio Fernandes, coordenador do Observatório Iberoamericano de Políticas e Sistemas de Saúde.
(4)
Médico Geral e Familiar em Portugal, dirigente de associação de classe e
colaborador do Observatório IberoAmericano de Saúde.
(5) Ligia Giovanella, pesquisadora titular da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.
(6)
Em 2008, seminário internacional sobre “FormacióndelProfesional de APS
y supermanenciaen zonas desfavorecidas urbanas y rurales” em Guayaquil
no Equador, com a participação de 13 países da América Latina e Europa:
Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Espanha, Honduras, Itália,
Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.
(7) Professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp.
(9) Presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
(10) Professora da Universidade Federal do RJ.
Fonte: Cebes
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