PICICA: "O cenário da luta pelo poder ocorre também e talvez até antes de tudo
no campo semântico, da produção de sentidos. Os sentidos dominantes numa
sociedade são precisamente o daqueles que detém o poder. E o que é o
sentido? O sentido é simplesmente o que nos faz sentido, aquilo que
entendemos como importante em todas as dimensões da vida: o sentido do
amor, da religião, do trabalho, da política, da arte, da amizade, da
vida social, enfim.
Não existe, por outro lado, nada mais impalpável que o sentido. Não o
vemos. Não é concreto e esfumaça-se no ar mal o lemos, ouvimos,
pensamos, sonhamos, produzimos, sem contar que nunca é coeso e puro,
razão por que não existe o sentido, mas aglomerados de sentidos, de
significações que são ao mesmo tempo políticas, subjetivas, econômicas,
ideológicas, impuras, contraditórias, errantes.
Esse aspecto escorregadio, difuso e imaterial dos sentidos nos coloca
diante das seguintes questões: onde está o sentido de algo? Está oculto
ou, pelo contrário, na superfície, à vista? A partir de onde buscar o
sentido de um texto literário, de uma manifestação de rua, de um filme?
Em Investigações filosóficas (1953), o filósofo austríaco
Wittgenstein (1889-1951) assim se posiciona sobre essas questões de
sentido: “É no estado civil das contradições e no seu estado no mundo
civil, eis o problema filosófico”, problema de sentido."
KAFKA & GUIMARÃES ROSA
A sociedade do controle soberano
Por Luís Eustáquio Soares em 20/08/2013 na edição 760
O cenário da luta pelo poder ocorre também e talvez até antes de tudo
no campo semântico, da produção de sentidos. Os sentidos dominantes numa
sociedade são precisamente o daqueles que detém o poder. E o que é o
sentido? O sentido é simplesmente o que nos faz sentido, aquilo que
entendemos como importante em todas as dimensões da vida: o sentido do
amor, da religião, do trabalho, da política, da arte, da amizade, da
vida social, enfim.
Não existe, por outro lado, nada mais impalpável que o sentido. Não o vemos. Não é concreto e esfumaça-se no ar mal o lemos, ouvimos, pensamos, sonhamos, produzimos, sem contar que nunca é coeso e puro, razão por que não existe o sentido, mas aglomerados de sentidos, de significações que são ao mesmo tempo políticas, subjetivas, econômicas, ideológicas, impuras, contraditórias, errantes.
Esse aspecto escorregadio, difuso e imaterial dos sentidos nos coloca diante das seguintes questões: onde está o sentido de algo? Está oculto ou, pelo contrário, na superfície, à vista? A partir de onde buscar o sentido de um texto literário, de uma manifestação de rua, de um filme? Em Investigações filosóficas (1953), o filósofo austríaco Wittgenstein (1889-1951) assim se posiciona sobre essas questões de sentido: “É no estado civil das contradições e no seu estado no mundo civil, eis o problema filosófico”, problema de sentido.
A sociedade da soberania
Sob o ponto de vista de Wittgenstein, se quisermos, pois, entender o sentido de qualquer coisa não existe outro lugar para procurá-lo que as contradições de um dado presente histórico. A sociedade se organiza e se desorganiza nas relações de poder, que são relações de produção, relações de força. Estas instituem os sentidos dominantes, os sentidos dominados e também os sentidos que podem romper, em processo, com a estrutura semântica de uma dada época, destituindo-a de sentidos constituídos, dominantes.
O modelo produtivo-semântico de uma dada sociedade constitui, pois, o eixo de sua produção sem fim de sentidos dominantes, dominando-nos. A humanidade, no decorrer de sua história, produziu três grandes modelos de sociedade, megamáquinas de produção de sentidos, a saber: a sociedade da soberania, a sociedade disciplinar e a sociedade do controle. Cada modelo produziu e produz sentidos dominantes, dominados e alternativos.
Vejamos caso por caso.
A principal marca da sociedade da soberania é a polarização entre o soberano e os súditos, polarização que se dá também no campo da transcendência e da imanência, da vida e da morte, do modelo de produção econômica, no campo do direito, em todas as dimensões sociais, portanto. A sociedade da soberania produz sentidos polarizados e vive deles, através deles, impondo-os ao conjunto da população.
Na prática, o grande eixo de sentido de uma sociedade de tipo soberana é entre a morte e a vida. O soberano o é cada vez mais quanto mais impõe seu direito de morte sobre os súditos; quanto mais, enfim, mata. A morte é a semântica fundamental da sociedade da soberania, não sendo circunstancial que Michel Foucault, em Vigiar e punir (1976), assim descreva o ritual do sacrifício em praça pública imposto ao condenado Damiens, em 1757:
Quando o súdito encarna a transcendência
A semântica soberana ritualiza, com requintes de crueldade, a morte do súdito de tal maneira que quanto mais este sofre mais o soberano faz valer seu poder. A mortalidade do súdito, exposta em praça pública, inscreve a imortalidade do soberano, que vive de sequestrar a produção econômica comum a partir mesmo da morte do comum. Tudo, inclusive a economia, na sociedade da soberania, é literalmente arrancado da vida, gera morte e vive de mortes. Tudo é sacrificado e apresentado como oferta aos deuses. Tudo é enfim cordeiro de Deus.
O súdito é exposto em sua mortalidade, visivelmente, razão pela qual a polaridade fundada na relação entre visibilidade e invisibilidade é extremamente importante para a manutenção da sociedade da soberania. A visibilidade da mortalidade do súdito, o sacrificado, é a garantia da invisibilidade transcendental do poder soberano. Quanto mais visível for o ritual de sua morte mais o soberano aparecerá como divino, invisível e inacessível aos mortais.
Todas as sociedades soberanas funcionam, pois, semanticamente de forma polarizada, especialmente tendo em vista a vida e a morte, a transcendência e a imanência, o invisível e o visível, o segredo e o revelado, na suposição de que o soberano é na verdade o senhor dos segredos, o feiticeiro das transcendências, num contexto em que o súdito é simplesmente o revelado, o dissecado, o exposto.
A síntese das polaridades da sociedade soberana, por sua vez, é a seguinte: homem divinizado, homem-deus, síntese encarnada na figura do soberano, que a alcança quanto mais consegue fazer valer o sistema de polaridade entre a vida e a morte, o invisível e o visível, a transcendência e a imanência.
Por outro lado, sob o ponto de vista do súdito, tal síntese se alcança quando o sistema semântico de polarização soberana entre em curto-circuito, situação que ocorre basicamente quando os polos da polaridade se encontram; quando o próprio súdito, enfim, consegue encarnar a transcendência, fazendo ricochetear nele mesmo a vida e a morte, a transcendência e a imanência, invisibilidade e a visibilidade.
A sociedade disciplinar
Cristo é um exemplo fulgurante do curto-circuito da sociedade de tipo soberana. Como filho, ele encarna a polaridade pai/filho, que ecoa a polaridade soberano/súdito, invisibilidade/visibilidade, transcendência/imanência. A larga tradição messiânica que atravessa a história da humanidade, especialmente na periferia do sistema-mundo, nada mais é que o retorno sem fim do curto-circuito entre o soberano e o súdito, a transcendência e a imanência, Deus e o homem.
Antônio Conselheiro (1830-1897), no Brasil, o líder carismático da Guerra de Canudos (1897), é o nosso exemplo mais evidente, dramático.
Formada ou arranjada no contexto da modernidade capitalista, principalmente a que tem como epicentro sísmico a Segunda Revolução Industrial. Seu traço principal, para disciplinar corpos produtivos, é o confinamento em blocos institucionais, como o familiar, o hospitalar, o prisional, o escolar, o fabril, num contexto em que cada instituição confinada e confinante produz disciplinas corporais, que são também segmentações confinadas de gênero, étnicas, de classe, epistemológicas.
A sociedade disciplinar tem um duplo desafio: disciplinar de forma individual e coletiva. Trata-se de um duplo desafio extremamente difícil, porque o disciplinamento individual nem sempre é ou redunda em coletivo, sob o ponto de vista da força de trabalho social, por exemplo. Alguma coisa pode dar errado no caminho e tudo se desmoronaria. Para evitar tal desmoronamento, as múltiplas instituições disciplinares que a constituem tornam-se, no conjunto, extremamente eficientes, pois, se tal ou tal pessoa não é tomada pela família, poderá ser pelo trabalho, ou pela Igreja, ou pelo dinheiro, ou pelo casamento, pelo saber.
A multiplicidade institucional da sociedade disciplinar é, na verdade, multiplicidade de iscas com o objetivo de tomar os corpos individuais, a fim de que cumpram funções coletivas favoráveis ao sistema de produção do capital, à mais-valia, razão pela qual esta, na sociedade disciplinar, dá-se como mais-valia de disciplina, inclusive para o burguês, que também deve ser disciplinado, tomado pelo esforço confinado e concentrado de produção de riquezas.
A sociedade do controle
As duas principais instituições da sociedade disciplinar são a cadeia e o hospício. No limite, se o sujeito não é disciplinado pela família, pelo saber, o trabalho, o casamento provavelmente terá como destino ou o hospício ou a cadeia, razão pela qual potencialmente, no contexto de uma sociedade disciplinar, todos somos colocados em suspeição permanente em conformidade com a seguinte premissa: qualquer pessoa, a mais aparentemente normal, pode de repente revelar-se louca ou criminosa. O suspeito, portanto, é ou um oculto louco ou um dissimulado criminoso – qualquer um e antes de tudo as alteridades étnicas, de gênero, de classe.
A síntese fundamental, por sua vez, da sociedade disciplinar é a seguinte: homem-homem, por ser o primeiro modelo social que se assume como fundamentalmente histórico, laico.
Esta vem à tona após a Segunda Guerra Mundial e tem como marca a inserção de metamórficos artefatos técnico-científicos no cotidiano coletivo e individual dos povos, entendendo-se por “metamórficos artefatos técnico-científicos” a polimorfa função que cumprem, no contemporâneo. Como exemplo, foquemos na televisão, por se constituir como o caso mais evidente e inaugural de sociedade do controle. A televisão é um artefato técnico-científico que serve para entreter, informar, domesticar, massificar, expandir sem cessar as necessidades individuais e coletivas, direcionando-as, via publicidade, à fugacidade sem fim de produção de mercadorias ou de novos artefatos técnico-científicos, num contexto em que tudo é estímulo sexual canalizado para a mercantilização da liberdade de escolha, rendendo-a à globalizada relação de compra e venda, como princípio libidinal por excelência da sociedade do controle.
Na sociedade do controle, a televisão continua a cumprir o importante papel de mediadora axial das mediações de tipo in/out dos novos artefatos técnico-científicos que surgem sem cessar no mercado mundial dominado por corporações elas mesmas metamórficas, como a Microsoft, para citar apenas a de maior onipresença. A relação in/out se torna cada vez mais o fundamento pós-humano dos contatos entre o humano e as máquinas, de tal sorte que não sabemos mais quem conecta e quem está conectado, de forma ao mesmo tempo molecular, com o uso, por exemplo, de celulares e computadores individuais; e também de maneira cosmológica, se considerarmos os satélites diversos que circulam o planeta, entrelaçando forças diversas, humanas e não humanas, através de um sistema global de conexões ininterruptas, in/out, em tempo real.
A dimensão anacrônica não acaba nunca
Dizer que a relação in/ou constitui o fundamento da sociedade do controle é o mesmo que dizer que sua síntese não é mais a de deus-homem, como a sociedade da soberania, nem a de homem-homem, como a sociedade da disciplina, mas a relação entre homem e a máquina: é homem-máquina ou mais especialmente homem e artefatos tecnológicos, homens/técnicas, de modo que o in/out nada mais é que o dentro e o fora, num contexto em que o homem deixa de ser o dentro, que passa ser ocupado pela máquina, como a do PC em que neste momento escrevo – in para a máquina, um computador, por exemplo, e out para o homem, que é conectado nas máquinas de controle, controlado por elas, num sistema que Deleuze e Guattari, no quinto volume de Mil Platôs, descrevem como submissão maquínica.
Em diálogo com aportes teóricos fornecidos sobretudo por Félix Guattari, Gilles Deleuze e Michel Foucault, os três romances de Franz Kafka se constituem, esta hipótese deste artigo, como tramas ou enredos ficcionais de três modelos sociais, respectivos, de estado de exceção: um primeiro, O castelo (1922), correspondente à sociedade da soberania; um segundo, O processo(1914), diz respeito à sociedade disciplinar; e um terceiro, América (1910), relacionado com a sociedade do controle. Tudo no romance O Castelo é sociedade da soberania. O simples fato de a narrativa se passar apenas na vila, sem nunca aparecer o soberano, fisicamente, indicia a relação entre o invisível e o visível, razão por que apenas a vila é o espaço do visível, logo da narrativa, pois é o vulnerável lugar onde se vive para tornar onipresente o invisível poder da soberania. Já o romance O processo é a ficção da sociedade disciplinar. Kafka usou, para escrevê-lo, o recurso da mistura de blocos de confinamentos, como o familiar e o jurídico, o artístico, o sexual, produzindo estranhos efeitos híbridos, que não deixam de ser extremamente cômicos. América, por sua vez, é uma visionária ficção da sociedade do controle não apenas porque os espaços da narrativa ocorrem nos Estados Unidos da América, mas também porque, principalmente tendo em vista o último capítulo, é o próprio desejo humano que vira motivo de ficção, num cenário não mais de confinamentos, mas de aberturas cósmicas, intuindo de forma extremamente antecipada a situação contemporânea, na quale através da qual a própria Terra está confinada, tomada que está por cósmicos satélites que a tudo esquadrinha , enfeixa, mapeia, em todas as escalas possíveis.
Grande sertão veredas, diante desse imbróglio, desempenha precisamente o papel de coringa. Publicado em 1956, no interior já da sociedade do controle, é um romance da sociedade da soberania, na periferia do sistema-mundo, o que nos suscita as seguintes interrogações: por que uma ficção sobre a sociedade da soberania, escrita e publicada nos começos da sociedade do controle? Seria Grande Sertão: veredas um romance anacrônico? A resposta para tais perguntas é simples: a anacronia de Grande Sertão: veredas é, na verdade, a evidência de que a dimensão anacrônica não acaba nunca, no interior da longa história da tradição do oprimido, razão pela qual a sociedade da soberania não se esfumou nem com o advento da sociedade disciplinar, nem com o surgimento da sociedade do controle.
Soberania, disciplina, controle
Se Grande Sertão: veredas constitui o romance do anacrônico mundo da sociedade da soberania é porque sua verdade ficcional está intensamente vinculada à frase inicial de O Processo, “Alguém havia caluniado Joseph K. (KAFKA, 2003, p. 07)”, pois toda acusação à priori contra qualquer vida nua o é antes de tudo contra a potência de anacronia que se inscreve no corpo sacrificado de toda alteridade, razão por que penso ser possível afirmar que a vida nua pode ser definida como aquela que carrega em si o estigma de todos os estados de exceção, afirmação que me remete ao seguinte trecho do livro Os espectros de Marx (1994), de Jacques Derrida:
Grande Sertão: veredas é um romance da anterioridade e da
dissimetria da vida nua, entendida também como a periferia do
sistema-mundo. É nesse sentido que, com Derrida, é possível dizer que,
nele, “a anacronia faz a lei... (DERRIDA, 1994, p.22)”: a lei ao mesmo
tempo sobre a vida nua e a lei da vida nua, porque, se todos os estados
de exceção inscrevem a trágica história de seus poderes no corpo da vida
nua, esta também traz em si a potência anacrônica de superação das
marcas acumuladas na e da tradição do oprimido. A função coringa de Grande Sertão: veredas
diz respeito, portanto, ao fato, ainda que hipotético, de que é uma
singular obra de ficção da sociedade do controle integrado, tendo como
foco narrativo inconsciente a anterioridade absoluta e anacrônica da
vida nua, no seu devir jagunço, no sertão anacrônico de Minas Gerais.
Sua função de coringa do amálgama soberania, disciplina e controle constituiu-se como um oportuno liame teórico-estético a ser vinculado polifonicamente à literatura de Kafka, sobretudo considerando o argumento de que o escritor checo produziu um romance para cada modelo de estado de exceção.
Reside aí, pois, o motivo do título deste artigo: Kafka e Rosa: a sociedade do controle integrado, fundamentado pelo argumento de que um modelo de sociedade não termina com o advento de outro, razão por que a sociedade disciplinar foi ao mesmo tempo disciplinar e soberana; e, a atual, a do controle, é soberana e disciplinar. Tudo ao mesmo tempo agora, sem contradição alguma, em consonância com a forma de Marx para definir o capital, D-M-D, através da qual todas as combinações, as mais absurdas, são possíveis.
A longa história da tradição do oprimido não elimina nada, porque amalgama tudo. O único privilégio de um modelo de sociedade é o de gerir, administrar e articular o conjunto social, em conformidade com os desafios dos estados de exceção de cada época e lugar. Eis porque, no interior da sociedade disciplinar, cabia aos blocos disciplinares de confinamento a gestão do amálgama disciplina-soberania, assim como, na atualidade, cabe às tecnologias de controle a gerência do amálgama constituído pela série soberania, disciplina, controle.
O controle despótico da máquina
A ideia de sociedade de controle integrado, portanto, diz respeito a um modelo de estado de exceção, ao mesmo tempo soberano e disciplinar, donde é possível concluir que, para cada modelo de sociedade, tem-se um correlato modelo de estado de exceção: o estado de exceção da sociedade da soberania, o da sociedade disciplinar soberana e o atual, o da sociedade do controle integrado.
A questão de base deste artigo é, portanto, esta: estamos numa sociedade do controle integrado, razão por que por todos lados o que vemos é a polaridade da sociedade da soberania, os confinamentos da sociedade disciplinar, sob o domínio da tecnologia de poder da sociedade do controle, o in/out a partir do qual o homem torna-se o próprio súdito da máquina e esta se torna o soberano por excelência da atualidade, não sendo circunstancial nossa reverência aos artefatos tecnológicos que circulam em nosso cotidiano com o nome corporativo de iPod isso, smartphone aquilo, iPad aquilo outro.
O cenário, por sua vez, mais aterrador da sociedade do controle integrado é o que já estamos vivendo: o casamento “feliz” entre a sociedade do controle e da sociedade da soberania, com a disciplina cumprindo um papel secundário, passivo, de bastidores; diria de telespectadores. Por todos os lados o que temos assistido, a partir do ponto de vista da disciplina, é o mundo sendo tomado pela relação indiscernível entre a sociedade da soberania, cuja semântica fundamental é a polaridade entre a vida e a morte, a transcendência e a imanência, o alto e o baixo; e a sociedade do controle, que também pode ser definida como a sociedade tecnológica.
Esse cenário é tanto mais evidente quanto mais a relação in/out, máquina/homem, estiver determinada pela máquina, a soberana, num contexto em que o homem não passa de mero súdito. A indústria cultural, especialmente a anglo-saxônica, está na bélica linha de frente no trabalho planetário de submissão da vida humana ao controle soberano, despótico, da máquina, das tecnologias de controle, figurando como o epicentro da produção de uma sociedade fundamentalmente de base controle-soberana, os dois extremos de modelos de sociedade que a humanidade produziu como tecnologia de dominação das maiorias.
A transformação da humanidade em súdita das tecnologias
O sistema corporativo americano (e a Inglaterra também, sem esquecer a elite sionista, os regimes monárquicos do Golfo Pérsicos, evidentemente soberanos) protagoniza a imposição, em tempo real, da sociedade soberana do controle, forçando-a, através de guerras ao mesmo tempo marcadas por estratégicas tecnologias de controle e por táticas formas soberanas, ao planeta todo.
Nada evidencia de forma mais funesta esse despótico modelo social, in/ou, em que o homem é o absoluto súdito da máquina, que os drones, os aviões não tripulados, zangão que incorpora as tecnologias mais avançadas, as espaciais, as bélicas, as comunicativas, com o objetivo principal de impor o inferno sobre comunidades humanas atacadas por objetos voadores invisíveis, que das alturas celestiais impõem o pior inferno que a vida humana jamais sofreu, como se o próprio Deus do Antigo Testamento estivesse agindo, implacavelmente, contra os pecadores, cujo pecado básico é o de serem humanos, mortais, súditos, não sendo circunstancial que sejam acusados de terrorismo porque, bem entendido, terrorista, na sociedade do controle soberana, é, como suspeita, a humanidade inteira e muito especialmente a que se encontra alojada nos lugares do planeta que detém recursos minerais que alimentam e mesmo concretizam os artefatos tecnológicos da sociedade do controle.
Por ser um modelo ao mesmo tempo em gestação e em realização, a sociedade do controle soberana (a que transforma os artefatos tecnológicos em soberanos e a humanidade em súdita), tem muito especialmente a infância e a adolescência como foco, razão por que produz sem cessar narrativas literárias e fílmicas voltadas especialmente para esse perfil de públicos, com o objetivo claro de sedimentar para o presente e para o futuro uma humanidade afeita ao poder soberano das máquinas de controle.
Shrek (2001), filme dirigido por Andrew Adamson e Vicky Jenson, é talvez o exemplo mais acabado de uma narrativa soberana do controle, pela razão mais óbvia possível: todo o enredo do filme retrata um ambiente típico de uma sociedade da soberania, com fábulas, reis, príncipes e súditos. As tecnologias de controle, inclusive as de distribuição mundial, o produziram cumprindo, consciente ou não, a demanda mais fundamental das táticas e estratégicas anglo-saxônicas, no contemporâneo: adaptar-nos a um mundo do controle soberano, administrado por corporações, soberanas invisíveis, que, através das tecnologias de controle, inclusive as bélicas, tem como objetivo claro a transformação da humanidade toda em súdita das tecnologias de poder da sociedade do controle.
Uma humanidade crente
As manifestações populares que tomaram as ruas das grandes cidades brasileiras em junho fundamentalmente devem ser analisadas no contexto de uma sociedade do controle integrado e muito especialmente tendo em vista o que está em jogo no contemporâneo: a produção de uma sociedade do controle soberano.
O caso atual do Egito não é exceção, pelo contrário, é regra geral. A brutalidade das forças armadas egípcias, protagonistas de um planejado golpe de estado, não é uma realidade circunscrita ao Oriente Médio e muito menos especificamente egípcia, mas um projeto para a humanidade toda, sujeita ao risco de uma ditadura planetária das tecnologias de controle.
Como este artigo não tem o objetivo de estimular niilismos e medos, que fique claro que o autor não é contra as manifestações populares, pelo contrário. O Brasil está rendido à ditadura invisível do capital financeiro, que sequestra parasitariamente mais da metade do PIB – aí está a mãe despótica de todas as corrupções e antes de tudo a verdadeira razão da vida difícil, adversa, miserável, da maior parte da população brasileira e também do empobrecimento das classes médias.
Na época das tecnologias de poder da sociedade do controle integrado não existe mais espaço para romantismos e, querendo ou não, a geopolítica tornou-se um conhecimento fundamental. As oligarquias do controle soberano querem submissão integral ao projeto de uma humanidade submetida, refém da soberania das máquinas de controle. Não é possível mais, se é que foi algum dia, revoltas populares circunscritas às fronteiras nacionais, tendo como interlocutores antes de tudo o Estado, o súdito-mor de uma economia planetária neoliberal, fundamentalmente marcada pelo poder soberano das corporações e muito especialmente das corporações financeiras.
Voltemos, a propósito, ao caso do Egito. As revoltas populares conhecidas como Primavera Árabe derrubaram um ditador, Mubarak e finalmente conseguiram realizar eleições “livres”. A população votou em massa na Irmandade Mulçumana, uma fundamentalista instituição religiosa soberana, cuja polaridade é simplesmente esta: Deus/crente. Aparentemente não existiria motivo algum para um golpe de estado no Egito. A oligarquia da sociedade do controle soberana, anglo-saxônica, sionista e saudita, conseguiu colocar no poder, uma fatia do poder, a Irmandade Mulçumana, a escolhida para levar adiante, em todo o grande Oriente Médio, o projeto planetário de uma humanidade submetida a uma ordem de controle soberano anglo-saxônica. Por que então o golpe de estado? Por uma “sutil” questão geopolítica: o eleito presidente Mursi não se submeteu cem por cento à geopolítica da sociedade do controle soberano, pois se atreveu a estabelecer relações com Hamas, na Palestina, com Irã, com o presidente da Síria.
Para a oligarquia planetária comprometida com o projeto de imposição mundial de uma sociedade do controle soberano, Mursi tinha que ser derrubado. As revoltas populares foram estimuladas em massa com o objetivo claro de destroná-lo do poder. Os revoltosos caíram como peixe na armadilha porque estão tomados por uma agenda local, extremamente legítima, mas confinada à dimensão nacional, incapaz de escolher os verdadeiros interlocutores: o poder dos bancos e a submissão da humanidade às máquinas da sociedade do controle, num contexto ainda mais complicado porque as revoltas são combinadas precisamente nas redes sociais, tecnologia de controle absolutamente dominada por Estados Unidos.
Temos todos os motivos do mundo para nos revoltarmos, mas nenhum é mais urgente e necessário do que a revolta contra a sociedade do controle soberano, protagonizada por uma oligarquia soberanamente invisível que usa as tecnologias de controle para submeter a humanidade inteira, tornando-se especialista em estimular românticas revoltas motivadas por agendas nacionais, sem relação alguma com uma perspectiva geopolítica bem fundamentada.
Nesse cenário, nossos principais inimigos são: a elite bélica, financeira e corporativa anglo-saxônica, sequestrada pela elite soberana sionista, parceira de convicção das monarquias do Golfo Pérsico. Essa é a oligarquia que usa a indústria cultural e as tecnologias de comunicação da era do controle para impor ao planeta o pior tipo de sociedade possível: a do controle soberano, na qual e através da qual a humanidade toda deve estar totalmente submetida às máquinas, desde que estas estejam sob o restrito domínio deles.
Como a primeira das batalhas ocorre no plano semântico, na luta pelos sentidos da própria luta, além da exigência geopolítica, da compreensão do que está em jogo no contexto planetário, a produção de uma humanidade do controle soberano, temos como nunca que democratizar as mídias da sociedade do controle, os ciberespaços, pois são elas, incluindo ainda a televisão, o rádio, a imprensa escrita (as velhas mídias) que nos impõem os sentidos, em todos os sentidos da vida atual, na era da sociedade do controle integrado.
Nossa luta será inevitavelmente derrotada se não nos revoltarmos claramente contra a ditadura semântica das mídias corporativas, sobretudo as anglo-saxônicas, que brincam, jogam e embaralham todos os sentidos, inclusive os revolucionários, com o objetivo claro de render a humanidade inteira à lógica religiosa de uma sociedade do controle soberano, cuja polaridade fundamental é: a invisibilidade divina dos verdadeiros donos do mundo versus a visibilidade vulnerável, ainda que revoltosa, de uma humanidade submetida ao poder das tecnologias do controle, ainda que crente que as controla, porque fundamentalmente o que importa é isto: uma humanidade crente.
***
Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes)
Fonte: Observatório da Imprensa
Não existe, por outro lado, nada mais impalpável que o sentido. Não o vemos. Não é concreto e esfumaça-se no ar mal o lemos, ouvimos, pensamos, sonhamos, produzimos, sem contar que nunca é coeso e puro, razão por que não existe o sentido, mas aglomerados de sentidos, de significações que são ao mesmo tempo políticas, subjetivas, econômicas, ideológicas, impuras, contraditórias, errantes.
Esse aspecto escorregadio, difuso e imaterial dos sentidos nos coloca diante das seguintes questões: onde está o sentido de algo? Está oculto ou, pelo contrário, na superfície, à vista? A partir de onde buscar o sentido de um texto literário, de uma manifestação de rua, de um filme? Em Investigações filosóficas (1953), o filósofo austríaco Wittgenstein (1889-1951) assim se posiciona sobre essas questões de sentido: “É no estado civil das contradições e no seu estado no mundo civil, eis o problema filosófico”, problema de sentido.
A sociedade da soberania
Sob o ponto de vista de Wittgenstein, se quisermos, pois, entender o sentido de qualquer coisa não existe outro lugar para procurá-lo que as contradições de um dado presente histórico. A sociedade se organiza e se desorganiza nas relações de poder, que são relações de produção, relações de força. Estas instituem os sentidos dominantes, os sentidos dominados e também os sentidos que podem romper, em processo, com a estrutura semântica de uma dada época, destituindo-a de sentidos constituídos, dominantes.
O modelo produtivo-semântico de uma dada sociedade constitui, pois, o eixo de sua produção sem fim de sentidos dominantes, dominando-nos. A humanidade, no decorrer de sua história, produziu três grandes modelos de sociedade, megamáquinas de produção de sentidos, a saber: a sociedade da soberania, a sociedade disciplinar e a sociedade do controle. Cada modelo produziu e produz sentidos dominantes, dominados e alternativos.
Vejamos caso por caso.
A principal marca da sociedade da soberania é a polarização entre o soberano e os súditos, polarização que se dá também no campo da transcendência e da imanência, da vida e da morte, do modelo de produção econômica, no campo do direito, em todas as dimensões sociais, portanto. A sociedade da soberania produz sentidos polarizados e vive deles, através deles, impondo-os ao conjunto da população.
Na prática, o grande eixo de sentido de uma sociedade de tipo soberana é entre a morte e a vida. O soberano o é cada vez mais quanto mais impõe seu direito de morte sobre os súditos; quanto mais, enfim, mata. A morte é a semântica fundamental da sociedade da soberania, não sendo circunstancial que Michel Foucault, em Vigiar e punir (1976), assim descreva o ritual do sacrifício em praça pública imposto ao condenado Damiens, em 1757:
“(...) sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos,
braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca
com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às
partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo
fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a
seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus
membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas
lançadas ao vento” (FOUCAULT, 2009,p. 9).
A semântica soberana ritualiza, com requintes de crueldade, a morte do súdito de tal maneira que quanto mais este sofre mais o soberano faz valer seu poder. A mortalidade do súdito, exposta em praça pública, inscreve a imortalidade do soberano, que vive de sequestrar a produção econômica comum a partir mesmo da morte do comum. Tudo, inclusive a economia, na sociedade da soberania, é literalmente arrancado da vida, gera morte e vive de mortes. Tudo é sacrificado e apresentado como oferta aos deuses. Tudo é enfim cordeiro de Deus.
O súdito é exposto em sua mortalidade, visivelmente, razão pela qual a polaridade fundada na relação entre visibilidade e invisibilidade é extremamente importante para a manutenção da sociedade da soberania. A visibilidade da mortalidade do súdito, o sacrificado, é a garantia da invisibilidade transcendental do poder soberano. Quanto mais visível for o ritual de sua morte mais o soberano aparecerá como divino, invisível e inacessível aos mortais.
Todas as sociedades soberanas funcionam, pois, semanticamente de forma polarizada, especialmente tendo em vista a vida e a morte, a transcendência e a imanência, o invisível e o visível, o segredo e o revelado, na suposição de que o soberano é na verdade o senhor dos segredos, o feiticeiro das transcendências, num contexto em que o súdito é simplesmente o revelado, o dissecado, o exposto.
A síntese das polaridades da sociedade soberana, por sua vez, é a seguinte: homem divinizado, homem-deus, síntese encarnada na figura do soberano, que a alcança quanto mais consegue fazer valer o sistema de polaridade entre a vida e a morte, o invisível e o visível, a transcendência e a imanência.
Por outro lado, sob o ponto de vista do súdito, tal síntese se alcança quando o sistema semântico de polarização soberana entre em curto-circuito, situação que ocorre basicamente quando os polos da polaridade se encontram; quando o próprio súdito, enfim, consegue encarnar a transcendência, fazendo ricochetear nele mesmo a vida e a morte, a transcendência e a imanência, invisibilidade e a visibilidade.
A sociedade disciplinar
Cristo é um exemplo fulgurante do curto-circuito da sociedade de tipo soberana. Como filho, ele encarna a polaridade pai/filho, que ecoa a polaridade soberano/súdito, invisibilidade/visibilidade, transcendência/imanência. A larga tradição messiânica que atravessa a história da humanidade, especialmente na periferia do sistema-mundo, nada mais é que o retorno sem fim do curto-circuito entre o soberano e o súdito, a transcendência e a imanência, Deus e o homem.
Antônio Conselheiro (1830-1897), no Brasil, o líder carismático da Guerra de Canudos (1897), é o nosso exemplo mais evidente, dramático.
Formada ou arranjada no contexto da modernidade capitalista, principalmente a que tem como epicentro sísmico a Segunda Revolução Industrial. Seu traço principal, para disciplinar corpos produtivos, é o confinamento em blocos institucionais, como o familiar, o hospitalar, o prisional, o escolar, o fabril, num contexto em que cada instituição confinada e confinante produz disciplinas corporais, que são também segmentações confinadas de gênero, étnicas, de classe, epistemológicas.
A sociedade disciplinar tem um duplo desafio: disciplinar de forma individual e coletiva. Trata-se de um duplo desafio extremamente difícil, porque o disciplinamento individual nem sempre é ou redunda em coletivo, sob o ponto de vista da força de trabalho social, por exemplo. Alguma coisa pode dar errado no caminho e tudo se desmoronaria. Para evitar tal desmoronamento, as múltiplas instituições disciplinares que a constituem tornam-se, no conjunto, extremamente eficientes, pois, se tal ou tal pessoa não é tomada pela família, poderá ser pelo trabalho, ou pela Igreja, ou pelo dinheiro, ou pelo casamento, pelo saber.
A multiplicidade institucional da sociedade disciplinar é, na verdade, multiplicidade de iscas com o objetivo de tomar os corpos individuais, a fim de que cumpram funções coletivas favoráveis ao sistema de produção do capital, à mais-valia, razão pela qual esta, na sociedade disciplinar, dá-se como mais-valia de disciplina, inclusive para o burguês, que também deve ser disciplinado, tomado pelo esforço confinado e concentrado de produção de riquezas.
A sociedade do controle
As duas principais instituições da sociedade disciplinar são a cadeia e o hospício. No limite, se o sujeito não é disciplinado pela família, pelo saber, o trabalho, o casamento provavelmente terá como destino ou o hospício ou a cadeia, razão pela qual potencialmente, no contexto de uma sociedade disciplinar, todos somos colocados em suspeição permanente em conformidade com a seguinte premissa: qualquer pessoa, a mais aparentemente normal, pode de repente revelar-se louca ou criminosa. O suspeito, portanto, é ou um oculto louco ou um dissimulado criminoso – qualquer um e antes de tudo as alteridades étnicas, de gênero, de classe.
A síntese fundamental, por sua vez, da sociedade disciplinar é a seguinte: homem-homem, por ser o primeiro modelo social que se assume como fundamentalmente histórico, laico.
Esta vem à tona após a Segunda Guerra Mundial e tem como marca a inserção de metamórficos artefatos técnico-científicos no cotidiano coletivo e individual dos povos, entendendo-se por “metamórficos artefatos técnico-científicos” a polimorfa função que cumprem, no contemporâneo. Como exemplo, foquemos na televisão, por se constituir como o caso mais evidente e inaugural de sociedade do controle. A televisão é um artefato técnico-científico que serve para entreter, informar, domesticar, massificar, expandir sem cessar as necessidades individuais e coletivas, direcionando-as, via publicidade, à fugacidade sem fim de produção de mercadorias ou de novos artefatos técnico-científicos, num contexto em que tudo é estímulo sexual canalizado para a mercantilização da liberdade de escolha, rendendo-a à globalizada relação de compra e venda, como princípio libidinal por excelência da sociedade do controle.
Na sociedade do controle, a televisão continua a cumprir o importante papel de mediadora axial das mediações de tipo in/out dos novos artefatos técnico-científicos que surgem sem cessar no mercado mundial dominado por corporações elas mesmas metamórficas, como a Microsoft, para citar apenas a de maior onipresença. A relação in/out se torna cada vez mais o fundamento pós-humano dos contatos entre o humano e as máquinas, de tal sorte que não sabemos mais quem conecta e quem está conectado, de forma ao mesmo tempo molecular, com o uso, por exemplo, de celulares e computadores individuais; e também de maneira cosmológica, se considerarmos os satélites diversos que circulam o planeta, entrelaçando forças diversas, humanas e não humanas, através de um sistema global de conexões ininterruptas, in/out, em tempo real.
A dimensão anacrônica não acaba nunca
Dizer que a relação in/ou constitui o fundamento da sociedade do controle é o mesmo que dizer que sua síntese não é mais a de deus-homem, como a sociedade da soberania, nem a de homem-homem, como a sociedade da disciplina, mas a relação entre homem e a máquina: é homem-máquina ou mais especialmente homem e artefatos tecnológicos, homens/técnicas, de modo que o in/out nada mais é que o dentro e o fora, num contexto em que o homem deixa de ser o dentro, que passa ser ocupado pela máquina, como a do PC em que neste momento escrevo – in para a máquina, um computador, por exemplo, e out para o homem, que é conectado nas máquinas de controle, controlado por elas, num sistema que Deleuze e Guattari, no quinto volume de Mil Platôs, descrevem como submissão maquínica.
Em diálogo com aportes teóricos fornecidos sobretudo por Félix Guattari, Gilles Deleuze e Michel Foucault, os três romances de Franz Kafka se constituem, esta hipótese deste artigo, como tramas ou enredos ficcionais de três modelos sociais, respectivos, de estado de exceção: um primeiro, O castelo (1922), correspondente à sociedade da soberania; um segundo, O processo(1914), diz respeito à sociedade disciplinar; e um terceiro, América (1910), relacionado com a sociedade do controle. Tudo no romance O Castelo é sociedade da soberania. O simples fato de a narrativa se passar apenas na vila, sem nunca aparecer o soberano, fisicamente, indicia a relação entre o invisível e o visível, razão por que apenas a vila é o espaço do visível, logo da narrativa, pois é o vulnerável lugar onde se vive para tornar onipresente o invisível poder da soberania. Já o romance O processo é a ficção da sociedade disciplinar. Kafka usou, para escrevê-lo, o recurso da mistura de blocos de confinamentos, como o familiar e o jurídico, o artístico, o sexual, produzindo estranhos efeitos híbridos, que não deixam de ser extremamente cômicos. América, por sua vez, é uma visionária ficção da sociedade do controle não apenas porque os espaços da narrativa ocorrem nos Estados Unidos da América, mas também porque, principalmente tendo em vista o último capítulo, é o próprio desejo humano que vira motivo de ficção, num cenário não mais de confinamentos, mas de aberturas cósmicas, intuindo de forma extremamente antecipada a situação contemporânea, na quale através da qual a própria Terra está confinada, tomada que está por cósmicos satélites que a tudo esquadrinha , enfeixa, mapeia, em todas as escalas possíveis.
Grande sertão veredas, diante desse imbróglio, desempenha precisamente o papel de coringa. Publicado em 1956, no interior já da sociedade do controle, é um romance da sociedade da soberania, na periferia do sistema-mundo, o que nos suscita as seguintes interrogações: por que uma ficção sobre a sociedade da soberania, escrita e publicada nos começos da sociedade do controle? Seria Grande Sertão: veredas um romance anacrônico? A resposta para tais perguntas é simples: a anacronia de Grande Sertão: veredas é, na verdade, a evidência de que a dimensão anacrônica não acaba nunca, no interior da longa história da tradição do oprimido, razão pela qual a sociedade da soberania não se esfumou nem com o advento da sociedade disciplinar, nem com o surgimento da sociedade do controle.
Soberania, disciplina, controle
Se Grande Sertão: veredas constitui o romance do anacrônico mundo da sociedade da soberania é porque sua verdade ficcional está intensamente vinculada à frase inicial de O Processo, “Alguém havia caluniado Joseph K. (KAFKA, 2003, p. 07)”, pois toda acusação à priori contra qualquer vida nua o é antes de tudo contra a potência de anacronia que se inscreve no corpo sacrificado de toda alteridade, razão por que penso ser possível afirmar que a vida nua pode ser definida como aquela que carrega em si o estigma de todos os estados de exceção, afirmação que me remete ao seguinte trecho do livro Os espectros de Marx (1994), de Jacques Derrida:
“[...] este algum outro espectral nos olha; sentimo-nos olhados por
ele, fora de toda sincronia, antes mesmo e para além de qualquer olhar
de nossa parte, segundo uma anterioridade ( que pode ser da ordem da
geração, de mais de uma geração) e uma dissimetria absolutas, segundo
uma desproporção absolutamente incontroláveis. A anacronia faz a lei
aqui” (DERRIDA, 1994, p.22).
Sua função de coringa do amálgama soberania, disciplina e controle constituiu-se como um oportuno liame teórico-estético a ser vinculado polifonicamente à literatura de Kafka, sobretudo considerando o argumento de que o escritor checo produziu um romance para cada modelo de estado de exceção.
Reside aí, pois, o motivo do título deste artigo: Kafka e Rosa: a sociedade do controle integrado, fundamentado pelo argumento de que um modelo de sociedade não termina com o advento de outro, razão por que a sociedade disciplinar foi ao mesmo tempo disciplinar e soberana; e, a atual, a do controle, é soberana e disciplinar. Tudo ao mesmo tempo agora, sem contradição alguma, em consonância com a forma de Marx para definir o capital, D-M-D, através da qual todas as combinações, as mais absurdas, são possíveis.
A longa história da tradição do oprimido não elimina nada, porque amalgama tudo. O único privilégio de um modelo de sociedade é o de gerir, administrar e articular o conjunto social, em conformidade com os desafios dos estados de exceção de cada época e lugar. Eis porque, no interior da sociedade disciplinar, cabia aos blocos disciplinares de confinamento a gestão do amálgama disciplina-soberania, assim como, na atualidade, cabe às tecnologias de controle a gerência do amálgama constituído pela série soberania, disciplina, controle.
O controle despótico da máquina
A ideia de sociedade de controle integrado, portanto, diz respeito a um modelo de estado de exceção, ao mesmo tempo soberano e disciplinar, donde é possível concluir que, para cada modelo de sociedade, tem-se um correlato modelo de estado de exceção: o estado de exceção da sociedade da soberania, o da sociedade disciplinar soberana e o atual, o da sociedade do controle integrado.
A questão de base deste artigo é, portanto, esta: estamos numa sociedade do controle integrado, razão por que por todos lados o que vemos é a polaridade da sociedade da soberania, os confinamentos da sociedade disciplinar, sob o domínio da tecnologia de poder da sociedade do controle, o in/out a partir do qual o homem torna-se o próprio súdito da máquina e esta se torna o soberano por excelência da atualidade, não sendo circunstancial nossa reverência aos artefatos tecnológicos que circulam em nosso cotidiano com o nome corporativo de iPod isso, smartphone aquilo, iPad aquilo outro.
O cenário, por sua vez, mais aterrador da sociedade do controle integrado é o que já estamos vivendo: o casamento “feliz” entre a sociedade do controle e da sociedade da soberania, com a disciplina cumprindo um papel secundário, passivo, de bastidores; diria de telespectadores. Por todos os lados o que temos assistido, a partir do ponto de vista da disciplina, é o mundo sendo tomado pela relação indiscernível entre a sociedade da soberania, cuja semântica fundamental é a polaridade entre a vida e a morte, a transcendência e a imanência, o alto e o baixo; e a sociedade do controle, que também pode ser definida como a sociedade tecnológica.
Esse cenário é tanto mais evidente quanto mais a relação in/out, máquina/homem, estiver determinada pela máquina, a soberana, num contexto em que o homem não passa de mero súdito. A indústria cultural, especialmente a anglo-saxônica, está na bélica linha de frente no trabalho planetário de submissão da vida humana ao controle soberano, despótico, da máquina, das tecnologias de controle, figurando como o epicentro da produção de uma sociedade fundamentalmente de base controle-soberana, os dois extremos de modelos de sociedade que a humanidade produziu como tecnologia de dominação das maiorias.
A transformação da humanidade em súdita das tecnologias
O sistema corporativo americano (e a Inglaterra também, sem esquecer a elite sionista, os regimes monárquicos do Golfo Pérsicos, evidentemente soberanos) protagoniza a imposição, em tempo real, da sociedade soberana do controle, forçando-a, através de guerras ao mesmo tempo marcadas por estratégicas tecnologias de controle e por táticas formas soberanas, ao planeta todo.
Nada evidencia de forma mais funesta esse despótico modelo social, in/ou, em que o homem é o absoluto súdito da máquina, que os drones, os aviões não tripulados, zangão que incorpora as tecnologias mais avançadas, as espaciais, as bélicas, as comunicativas, com o objetivo principal de impor o inferno sobre comunidades humanas atacadas por objetos voadores invisíveis, que das alturas celestiais impõem o pior inferno que a vida humana jamais sofreu, como se o próprio Deus do Antigo Testamento estivesse agindo, implacavelmente, contra os pecadores, cujo pecado básico é o de serem humanos, mortais, súditos, não sendo circunstancial que sejam acusados de terrorismo porque, bem entendido, terrorista, na sociedade do controle soberana, é, como suspeita, a humanidade inteira e muito especialmente a que se encontra alojada nos lugares do planeta que detém recursos minerais que alimentam e mesmo concretizam os artefatos tecnológicos da sociedade do controle.
Por ser um modelo ao mesmo tempo em gestação e em realização, a sociedade do controle soberana (a que transforma os artefatos tecnológicos em soberanos e a humanidade em súdita), tem muito especialmente a infância e a adolescência como foco, razão por que produz sem cessar narrativas literárias e fílmicas voltadas especialmente para esse perfil de públicos, com o objetivo claro de sedimentar para o presente e para o futuro uma humanidade afeita ao poder soberano das máquinas de controle.
Shrek (2001), filme dirigido por Andrew Adamson e Vicky Jenson, é talvez o exemplo mais acabado de uma narrativa soberana do controle, pela razão mais óbvia possível: todo o enredo do filme retrata um ambiente típico de uma sociedade da soberania, com fábulas, reis, príncipes e súditos. As tecnologias de controle, inclusive as de distribuição mundial, o produziram cumprindo, consciente ou não, a demanda mais fundamental das táticas e estratégicas anglo-saxônicas, no contemporâneo: adaptar-nos a um mundo do controle soberano, administrado por corporações, soberanas invisíveis, que, através das tecnologias de controle, inclusive as bélicas, tem como objetivo claro a transformação da humanidade toda em súdita das tecnologias de poder da sociedade do controle.
Uma humanidade crente
As manifestações populares que tomaram as ruas das grandes cidades brasileiras em junho fundamentalmente devem ser analisadas no contexto de uma sociedade do controle integrado e muito especialmente tendo em vista o que está em jogo no contemporâneo: a produção de uma sociedade do controle soberano.
O caso atual do Egito não é exceção, pelo contrário, é regra geral. A brutalidade das forças armadas egípcias, protagonistas de um planejado golpe de estado, não é uma realidade circunscrita ao Oriente Médio e muito menos especificamente egípcia, mas um projeto para a humanidade toda, sujeita ao risco de uma ditadura planetária das tecnologias de controle.
Como este artigo não tem o objetivo de estimular niilismos e medos, que fique claro que o autor não é contra as manifestações populares, pelo contrário. O Brasil está rendido à ditadura invisível do capital financeiro, que sequestra parasitariamente mais da metade do PIB – aí está a mãe despótica de todas as corrupções e antes de tudo a verdadeira razão da vida difícil, adversa, miserável, da maior parte da população brasileira e também do empobrecimento das classes médias.
Na época das tecnologias de poder da sociedade do controle integrado não existe mais espaço para romantismos e, querendo ou não, a geopolítica tornou-se um conhecimento fundamental. As oligarquias do controle soberano querem submissão integral ao projeto de uma humanidade submetida, refém da soberania das máquinas de controle. Não é possível mais, se é que foi algum dia, revoltas populares circunscritas às fronteiras nacionais, tendo como interlocutores antes de tudo o Estado, o súdito-mor de uma economia planetária neoliberal, fundamentalmente marcada pelo poder soberano das corporações e muito especialmente das corporações financeiras.
Voltemos, a propósito, ao caso do Egito. As revoltas populares conhecidas como Primavera Árabe derrubaram um ditador, Mubarak e finalmente conseguiram realizar eleições “livres”. A população votou em massa na Irmandade Mulçumana, uma fundamentalista instituição religiosa soberana, cuja polaridade é simplesmente esta: Deus/crente. Aparentemente não existiria motivo algum para um golpe de estado no Egito. A oligarquia da sociedade do controle soberana, anglo-saxônica, sionista e saudita, conseguiu colocar no poder, uma fatia do poder, a Irmandade Mulçumana, a escolhida para levar adiante, em todo o grande Oriente Médio, o projeto planetário de uma humanidade submetida a uma ordem de controle soberano anglo-saxônica. Por que então o golpe de estado? Por uma “sutil” questão geopolítica: o eleito presidente Mursi não se submeteu cem por cento à geopolítica da sociedade do controle soberano, pois se atreveu a estabelecer relações com Hamas, na Palestina, com Irã, com o presidente da Síria.
Para a oligarquia planetária comprometida com o projeto de imposição mundial de uma sociedade do controle soberano, Mursi tinha que ser derrubado. As revoltas populares foram estimuladas em massa com o objetivo claro de destroná-lo do poder. Os revoltosos caíram como peixe na armadilha porque estão tomados por uma agenda local, extremamente legítima, mas confinada à dimensão nacional, incapaz de escolher os verdadeiros interlocutores: o poder dos bancos e a submissão da humanidade às máquinas da sociedade do controle, num contexto ainda mais complicado porque as revoltas são combinadas precisamente nas redes sociais, tecnologia de controle absolutamente dominada por Estados Unidos.
Temos todos os motivos do mundo para nos revoltarmos, mas nenhum é mais urgente e necessário do que a revolta contra a sociedade do controle soberano, protagonizada por uma oligarquia soberanamente invisível que usa as tecnologias de controle para submeter a humanidade inteira, tornando-se especialista em estimular românticas revoltas motivadas por agendas nacionais, sem relação alguma com uma perspectiva geopolítica bem fundamentada.
Nesse cenário, nossos principais inimigos são: a elite bélica, financeira e corporativa anglo-saxônica, sequestrada pela elite soberana sionista, parceira de convicção das monarquias do Golfo Pérsico. Essa é a oligarquia que usa a indústria cultural e as tecnologias de comunicação da era do controle para impor ao planeta o pior tipo de sociedade possível: a do controle soberano, na qual e através da qual a humanidade toda deve estar totalmente submetida às máquinas, desde que estas estejam sob o restrito domínio deles.
Como a primeira das batalhas ocorre no plano semântico, na luta pelos sentidos da própria luta, além da exigência geopolítica, da compreensão do que está em jogo no contexto planetário, a produção de uma humanidade do controle soberano, temos como nunca que democratizar as mídias da sociedade do controle, os ciberespaços, pois são elas, incluindo ainda a televisão, o rádio, a imprensa escrita (as velhas mídias) que nos impõem os sentidos, em todos os sentidos da vida atual, na era da sociedade do controle integrado.
Nossa luta será inevitavelmente derrotada se não nos revoltarmos claramente contra a ditadura semântica das mídias corporativas, sobretudo as anglo-saxônicas, que brincam, jogam e embaralham todos os sentidos, inclusive os revolucionários, com o objetivo claro de render a humanidade inteira à lógica religiosa de uma sociedade do controle soberano, cuja polaridade fundamental é: a invisibilidade divina dos verdadeiros donos do mundo versus a visibilidade vulnerável, ainda que revoltosa, de uma humanidade submetida ao poder das tecnologias do controle, ainda que crente que as controla, porque fundamentalmente o que importa é isto: uma humanidade crente.
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Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes)
Fonte: Observatório da Imprensa
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