PICICA: Desde 2003 sonhava em trazer Ana Marta Lobosque ao Amazonas. Nem como Coordenador de Saúde Mental do Estado do Amazonas, tampouco como Pro-Reitor de Extensão da Universidade do Estado do Amazonas consegui por em prática a intenção. Dez anos depois devo ao Juiz Luis Carlos Valois, da Escola de Magistratura do Amazonas (ESMAM), a materialização do desejo de por meus conterrâneos em contato com uma das mais brilhantes intelectuais da Luta Antimanicomial brasileira. Meu profundo agradecimento ao Juiz Luiz Carlos, extensivo ao Dr. Flávio Pascarelli, atual titular da ESMAM. À Ana Marta um carinhoso abraço deste militante antimanicomial, e a gratidão por disponibilizar generosamente o texto da sua conferência.
Loucura e civilização
O homem, estranho animal
O título desta conferência - Loucura
e civilização - foi escolhido para propor-nos a seguinte questão: o que
seria uma maneira civilizada de lidar com a loucura? Noutras palavras, como
seria uma civilização onde a loucura pudesse encontrar algum cabimento, sem
reagirmos a ela através de seu silenciamento e de sua exclusão? Esta é uma
questão essencial para o movimento antimanicomial.
Contudo, antes de chegar ao tema do movimento,
começaremos nossa exposição por algumas notas sobre a civilização e a loucura.
A civilização, ou a cultura,
é uma construção humana, muito diferente das associações que encontramos
entre os animais. Das formigas aos búfalos, numerosas espécies animais levam
uma vida associativa. O que veio a instituir, porém, a crucial diferença entre
as associações animais e a civilização humana, e como tal civilização chegou
até o ponto em que hoje se encontra?
Certamente, o fato de que o ser
humano tenha um cérebro muito mais desenvolvido do que os de outros seres vivos
contribui de forma decisiva para esta diferença. Entretanto, o cérebro de um
homem da Idade da Pedra Polida não era mais complexo do que o de um homem
moderno - e, no entanto, que enorme distância existe entre as primeiras
civilizações e esta em que vivemos!
Quando pensamos nas características
primeiras da civilização, e na direção de seu caminho, geralmente enfatizamos
as conquistas tecnológicas: da coleta à caça, das pequenas aldeias às
grandes cidades, do trabalho braçal ao emprego da máquina. Sem dúvida, a
espécie humana passou por um longo e significativo desenvolvimento cognitivo
que transformou e ampliou enormemente o seu mundo, com a produção crescente de
novos utensílios, produtos, objetos e bens. Todavia, como vimos,
não é a um progresso da composição neuronal humana que devemos
atribuir as causas de tão drásticas mudanças. A evolução intelectual do homem
está intimamente associada não à constituição de laços sociais que lhe
são próprios. E estes laços, por sua vez, dependem de algo que é também
exclusivo da espécie humana: a saber, a constituição de um conjunto de
regras e proibições a obedecer.
Estas regras e proibições, por
primitivas que sejam, impedem que os homens sigam aquilo que seus instintos
lhes ditam naturalmente. Mesmo em associações animais que nos impressionam pela
sua organização - pensemos, por exemplo, nas abelhas - a ação de cada indivíduo
se faz de forma tal que cada um deles não faz senão o que lhes determinam os
seus instintos. O mesmo vale tanto para uma manada de antílopes como para a
vida social de um galinheiro.
No caso do homem, a
diferença é visível. Aquilo que não se pode fazer e aquilo que se
deve fazer não é determinado pelo instinto puro, e sim por um sistema de
regras, que a própria espécie não escolheu deliberadamente, mas, por assim
dizer, inconscientemente inventou. Abordaremos aqui dois pensadores que se
interessaram pelo surgimento dessas regras já nos os primórdios da civilização:
Nietzsche e Freud.
O adiamento e a restrição da
satisfação dos instintos é indispensável para a civilização, nos diz Nietzsche:
só assim o homem deixa de ser um “prisioneiro do instante” para adquirir uma
“memória do futuro”, instalando-se na dimensão temporal do projeto e do
empreendimento.Desta maneira, ou seja, impondo limites aos próprios apetites, é
que ele aprende a prever, calcular, comparar, medir: a aquisição das
capacidades intelectuais humanas está, portanto, ligada à instituição de algo
que é da ordem de um “não pode”, imposto não pela natureza, mas pela cultura.
Sempre segundo Nietzsche, quando as
tribos humanas passam a viver num regime pacífico e sedentário, a satisfação
pulsional dos indivíduos encontra limites muito severos. O filósofo aborda em
especial as vicissitudes sofridas pelo instinto agressivo. Embora impedido de
obter uma descarga direta, nem por isso este instinto deixa de exercer pressão
para descarregar-se; necessita, pois, de encontrar formas indiretas e
subterrâneas de satisfação. Um passo indispensável para tal teria sido, em
primeiro lugar, uma inversão da direção do instinto, através da qual o
indivíduo toma-se a si mesmo como objeto da própria agressividade. Uma vez
feita essa inversão, o homem já não habita seu próprio corpo com a naturalidade
de um animal: sofre de si, torna-se descontente consigo mesmo. Incorporando em
si próprio as exigências inicialmente impostas por outrem, ele agora, cada vez
mais, sentirá um inconsciente desgosto por si mesmo não só quando não as
cumpre, mas também por supor que jamais estará à altura de cumpri-las
devidamente. Prepara-se assim o terreno para um elemento constitutivo de nossa
civilização, qual seja, o sentimento inconsciente de culpa.
Ora, para que o homem incorpore
ordens e limites em si mesmo, é preciso que ele se construa um “dentro” antes
inexistente: um "dentro" psíquico. Dataria daí, portanto, segundo
Nietzsche, o surgimento do espaço interior que chamamos de psiquismo, mente ou
alma, onde se desenrolam esses peculiares processos da repressão dos instintos
e da auto-punição. O homem, que antes vivia por assim dizer à flor da pele,
cava um buraco em si mesmo; adquire uma vida interior, rudimentar a princípio,
mas que se alarga e se aprofunda à medida em que a civilização avança. Este
psiquismo, observe-se bem, será sempre, em sua quase totalidade inacessível ao
nosso auto- conhecimento; apenas na sua superfície cria-se uma delgada camada
de consciência e razão, que erroneamente identificamos com a totalidade da
nossa vida mental.
Contudo, algo de problemático para
os rumos tomados pela civilização encontra sua origem aí. O problema não reside
tanto nessa inversão primeira na direção do instinto agressivo, pois, na sua
ausência, jamais introjetaríamos certas interdições essenciais à vida
civilizada.. Reside, sobretudo, na exploração que certos ideais morais,
religiosos jurídicos, farão futuramente dessa inversão: irão utilizá-la para
fazer do homem uma criatura atormentada por uma culpa sem reparação possível,
que se compraz na acusação: acusa-se a si mesmo, acusa os demais, acusa a existência,
extraindo ademais um prazer lascivo da dor que desta maneira se
inflige
Por este mesmo movimento em que os
homens instituem em si mesmo o embrião de uma “consciência moral”, o processo
civilizatório busca uniformizar os indivíduos, no sentido de fazê-los pensar,
desejar e agir segundo uma mesma e determinada maneira. Até certo ponto,
esse movimento de uniformização é culturalmente necessário, pois os homens
devem assemelhar-se entre si o suficiente para tornar possível qualquer realização
em comum. O problema, mais uma vez, é que esta imposição de uniformidade se faz
extrema, tornando penosa a condição daqueles indivíduos que, por excesso
de fraqueza ou força, não são facilmente uniformizáveis. Estes “originais”, que
não se inserem no lugar demarcado na ordem do grupo a que pertencem, são postos
à sua margem, seja como delinquentes ou santos, como loucos ou como
heróis.
Nietzsche, e também Freud, percebem
ainda que a imposição de prescrições e proibições crescentes ao homem
só é possível em virtude da enorme plasticidade de seus impulsos -
que guarda relação, diga-se de passagem, com a versatilidade quase infinita dos
objetos que produz e da linguagem em que habita. O instinto agressivo, por
exemplo, não só se volta contra o próprio indivíduo, mas pode sofrer
transmutações as mais diversas, sancionadas pelo grupo social. A agressividade
nua e crua pode satisfazer-se, por exemplo, através da prescrição socialmente
admitida dos castigos. O mesmo constatou Freud a partir do instinto sexual: a
vontade nua e crua de sugar e engolir, necessidade nutricional do bebê que logo
se erotiza ao mesclar-se à relação amorosa com o seio da mãe, pode, na criança
maior ou no adulto, satisfazer-se pela compulsão em comer; ou, pode também,
acoplada ao instinto agressivo, punir-se a si mesma através de uma anorexia. O
prazer sensual que a criança pequena encontra em brincar com seus excrementos
pode mudar-se em seu contrário, ou seja, em preocupação mais ou menos obsessiva
com a limpeza. O amor de cunho sexual que dirige aos seus primeiros objetos -
pais, irmãos, etc -, sendo proscrito, desvia-se para outras pessoas, inclusive,
como no caso do narcisismo, tomando por objeto o próprio eu; pode também ser
inibido em sua finalidade, transformando-se em laços de amizade e companheirismo
- e assim por diante. Embora não possamos aqui citar um grande número de
exemplos, podemos facilmente imaginar quão numerosas e variadas são as formas
pelas quais tantos gostos, hábitos e características de um indivíduo ou grupo
substituem, na verdade, instintos cujo objetivo inicial é bem mais grosseiro e
cru.
Nietzsche faz ainda uma constatação
muito curiosa sobre as proibições e prescrições: o seu conteúdo parece ser
secundário ao fato de sua existência mesma. A necessidade de leis é que é universal,
e não o conteúdo delas. Este conteúdo, afinal, varia extensamente, sendo
possível a maior diversidade entre os costumes, as regras, os valores morais,
segundo as diferentes épocas e culturas. Tampouco é um conteúdo ditado pela
racionalidade, pois as proibições não precisam ser razoáveis ou úteis, e muitas
vezes não o são. Os tabus, por exemplo, formas primitivas de interdição
frequentemente citados por Freud e Nietzsche, proíbem supersticiosamente coisas
que nos parecem inteiramente supérfluas: por exemplo, é vedado aos kachandalas,
sob pena de morte, limpar a neve de seus sapatos com uma faca... Em seus
primórdios, diz Nietzsche, a tradição não ordena o que é útil; ela simplesmente
ordena, mantendo, pelo seu próprio poder de ordenar e fazer-se obedecer, a
coesão do grupo e a uniformidade entre seus membros. Podemos supor que certas
proibições socialmente úteis, como o “não matarás”, não teriam surgido se não
fossem precedidas por outras, supersticiosas e irracionais, mas que adestram o
homem no exercício do auto-controle e da obediência. Portanto, na base da
aparente racionalidade dos nossos sofisticados sistemas morais e jurídicos,
encontra-se essencialmente uma disputa por mando e obediência - uma disputa de
poder.
Freud, todavia, destacou uma única
proibição de caráter universal, não mencionada por Nietzsche: a interdição do
incesto, presente em todas as culturas conhecidas, das mais primitivas às mais
avançadas. Paradoxalmente, porém, a universalidade única desta interdição
não fundamenta tampouco a sua racionalidade ou a sua utilidade. Não pode
ser explicada pela existência de uma aversão sexual natural entre os membros de
uma família, pois, ao contrário existe entre eles uma atração maior, que a
proibição do incesto, justamente, vem controlar. Tampouco se justifica pelos
riscos genéticos da endogamia: as tribos primitivas não teriam como perceber
estes riscos, constatáveis apenas, do ponto de vista epidemiológico, quando
temos por objeto uma população muito numerosa. Freud julga constatar os efeitos
desta proibição no âmbito da clínica, nos sonhos, nos sintomas, enfim nas
produções inconscientes, que guardariam a marca do famoso Complexo de Édipo
Lévi-Strauss, já em meados do século XX, irá abordar em profundidade, do ponto
de vista dos estudos antropológicos, a intrigante questão da proibição do
incesto, que obriga a cultura humana, e ela apenas, a constituir sistemas de
parentesco nos quais alguns intercâmbios sexuais são permitidos, e outros não.
Contudo, apesar das extensas investigações clínicas e antropológicas,
persiste o caráter enigmático dessa interdição que atinge a todos, embora não
se possa entender objetivamente qual o perigo representado por sua
transgressão.
Para concluir esta primeira parte,
recapitulemos: o homem é o único animal que necessita limitar e modificar a
forma natural de satisfação dos seus instintos: investindo esta enorme reserva
de energia em formas indiretas ou substitutivas de satisfação é que ele cria e desenvolve a sua
cultura. No movimento pelo qual a vida civilizada maneja a inversão da direção
da agressividade do homem contra si mesmo, e, ao mesmo tempo, exige uma
crescente uniformidade nos seus padrões de conduta, encontramos impasses que
desafiam o percurso da nossa civilização.
O mal estar da civilização: os
ideais e seus impasses
O último item mencionado na parte
anterior leva-nos a examinar a condição denominada por Freud como mal estar da
civilização.
Ao tratar desse mal estar, Freud
observa que o monumental progresso representado pelas conquistas da ciência não
nos tornou mais felizes. Das inúmeras fontes de sofrimento às quais estamos
sujeitos, tais conquistas nos protegem até certo ponto de algumas:
defendem-nos das catástrofes que vêm da natureza, das doenças que minam nosso
corpo; oferecem-nos mais segurança e mais conforto. Contudo, em nada amenizam
nossa maior fonte do sofrimento: as relações com os outros seres humanos. O
fato de que eu possa comunicar-me a qualquer momento com meu parceiro e com
meus amigos pela Internet ou pelo celular, ou de que possa transpor rapidamente
enormes distâncias para encontrá-los, não apara as arestas do nosso
convívio, nem aprimora a sua qualidade. A constituição de sofisticados sistemas
legais e jurídicos não impede a sua constante transgressão. Os Estados não
conseguem assegurar o direito a políticas públicas essenciais para seus povos,
nem o diálogo entre eles evita as guerras; o sistema econômico não impede a
exploração do trabalho nem a miséria; a constatação evidente da deterioração
ambiental não a impede, e assim por diante.
O que se passa, pois, nas relações
entre os homens, que a civilização cientificamente mais avançada não apenas não
resolve, mas parece antes agravar?
Para dar um sentido à renúncia
à satisfação instintual livre e direta que realizamos em seus
começo, a civilização, ao longo dos milênios, levou-nos a construir certos
ideais do que é bom e desejável para os indivíduos e os povos - construção que
é, também ela, caracteristicamente humana. Estes ideais, também eles diferentes
conforme os tempos e as culturas, de certa forma ditam os rumos que uma vida
civilizada deve seguir. Mais uma vez, a constituição de ideais em si mesma não
é um problema. O problema,
observa Freud, é que a repressão instintual exigida dos homens acaba por
tornar-se desmesurada, sem que as formas substitutivas de satisfação
encontradas mostrem-se suficientes para a sua compensação. Isso afeta
afeta não só as nossas possibilidades de realizarmos nossos ideais, mas também,
pode-se dizer, o próprio valor dos ideais que construímos.
Quanto ao uso e manejo das formas
indiretas ou substitutivas de satisfação, em nome da promoção de algum ideal,
temos pelo menos quatro limites. Um deles é que o instinto, apesar de sua
plasticidade quase infinita, exige, ao menos para a maioria dos homens, uma
taxa direta de satisfação. Eis por quê o mais equilibrado e dócil de nós pode
cometer, num momento dado, um assassinato; eis também por quê o mais austero e
casto pode entregar-se a estranhas práticas sexuais. Isto se dá não só a nível
dos indivíduos, mas dos povos e nações. A satisfação direta da agressividade
que nos proibimos retorna sob a forma bruta das guerras que executam
genocídios, exterminam civis, promovem torturas. A satisfação sexual que
procuramos regrar ressurge, por exemplo, no abuso sexual de seres mais fracos,
como crianças e mulheres.
O segundo limite é que, mesmo
quando os instintos aceitam satisfações indiretas, muitas delas podem ser
extremamente prejudiciais para a promoção de laços satisfatórios entre os seres
humanos. Dentre vários exemplos possíveis: um pai de família correto e
trabalhador vê no delinquente a encarnação do mal, merecedor do pior maltrato;
algumas pessoas investem sua libido na própria imagem, chegando aos extremos
mais degradantes de vaidade; as religiões, muitas vezes, impõem padrões morais
demasiadamente rígidos, que sobrecarregam os homens por sua impossibilidade de
cumpri-los; a obrigação do trabalho ocupa cada vez mais o tempo, e tem cada vez
menos sentido para aqueles que o executam. Resumindo, enfim: embora a
agressividade e a sexualidade possam encontrar formas inumeráveis de
satisfazer-se de forma disfarçada e sutil, muitas dessas formas são maléficas
para a cultura, no sentido de que perturbam a convivência já tão difícil por si
mesma dos seres humanos entre si. Certamente, formas substitutivas mais férteis
podem também operar. Todavia, as formas pelas quais um sujeito encontra suas
satisfações substitutivas não são escolhidas por ele próprio, mas determinadas,
de forma inconsciente, por sua constituição psíquica - que é, por sua vez, um
produto da forma vigente de civilização.
O terceiro limite consiste numa
operação constitutiva da cultura, já examinada, pela qual a agressividade
se volta contra o próprio sujeito. Até o momento, pelo menos, o manejo
dado a esta inversão levou-nos a interpretar a existência em termos de culpa,
acusação e castigo - como mostra o nosso arraigado costume de julgar, vigiar e
punir. As diferentes formas de sofrimento mental são exemplos do grau extremo a
que isto pode chegar, levando o sujeito, dentre outras condições,
à repetição mórbida dos mesmos fracassos, à impossibilidade de
distanciamento simbólico do outro necessária ao laço social, ao uso
descontrolado de substâncias que lhes fazem mal, ao suicídio, e assim por
diante. Contudo, também as pessoas consideradas normais estão frequentemente
insatisfeitas consigo, a acusar-se a si mesmas, consciente ou
inconscientemente: veja-se a culpa crônica das mães, que nunca se creem capazes
de atingir o terrível ideal de maternidade imposto pela nossa cultura. Ainda, a
culpa que o mais empedernido criminoso pode sentir não difere, em suas raízes,
daquela experimentada pela adolescente que não consegue emagrecer: em ambos os
casos, não cumpriram aquilo que deles se espera e que, pela expectativa da
cultura a qual pertencem, igualmente esperam de si mesmos.
Um quarto limite reside na extensão
e amplitude do movimento de uniformização. Embora seja até certo ponto,
como vimos, necessário à cultura, somos levados a radicalizá-lo, de forma a
cada vez mais a nos parecermos uns com os outros, sobretudo no que concerne a
desejar as mesmas coisas: somos levados sempre a querer os mais novos objetos
produzidos pelo movimento incessante do trabalho humano, sejam eles
computadores, celulares, roupas, carros... Ora, esta uniformidade imposta não
tem como ocultar, sem causar enorme sofrimento, a singularidade radical própria
a cada indivíduo. Como diz Freud ironicamente, nada nem ninguém pode induzir o
homem a transformar sua natureza na de uma térmita...
Recapitulando pois, os limites para
o emprego das formas substitutivas de satisfação pulsional: em primeiro lugar,
a maioria dos homens requer uma taxa direta de satisfação; em segundo,
numerosas formas indiretas de satisfação são nocivas à convivência entre os
homens; em terceiro, utilizamos de forma abusiva a agressividade que o homem
volta contra si para torná-lo cada vez mais culpado; em quarto, forçamos os
indivíduos a uma uniformização, que é essencialmente avessa à natureza singular
de cada um.
Eis, portanto, o impasse descrito
por Freud, que resulta no mal estar da civilização. Se abandonarmos todas as
formas de restrição instintual, se nos entregarmos livremente à satisfação
dos nossos impulsos, se não interiorizarmos certos limites e valores, se
rejeitarmos qualquer forma de ideal, regrediríamos ao estado de barbárie. Por
outro lado, se a exigência desta restrição se torna desmedida, sem encontrar
formas de compensação que propiciem um convívio mais suave entre os homens,
maltratamo-nos inevitavelmente uns aos outros e a nós mesmos, de uma
maneira tanto mais perversa quanto mais sutil.
Mencionamos algumas vezes, nos
últimos parágrafos, a palavra “ideal”: devemos agora refletir a seu respeito. A
construção de ideais para indivíduos e povos representa, certamente, uma
elevada conquista da civilização, talvez a mais elevada delas: mais do que a
ciência, mais do que a produção de bens e riquezas através do trabalho, é
crucial que o homem tenha uma meta mais alta para si mesmo, levando os indivíduos
e a humanidade a desejar ser diferentes e melhores do que são.
Todavia, ao longo da história
humana, construímos ideais aparentemente nobres e belos, que se
mostraram, todavia, mais perniciosos do que enriquecedores para a cultura.
Dentre outros motivos, isto se deva, talvez, à mendacidade presente em sua
origem: eles nos mentem, ao tornar incorporada por todos uma visão de mundo que
interessa apenas a alguns, mascarando as correlações de força pelas quais
certos valores tornam-se prevalentes em detrimento de outros.
Vamos restringir-nos aqui a dois
ideais políticos relativamente recentes na história, que dizem respeito à vida
pública, embora regulamentando também a vida privada. Entre eles, costuma-se
distinguir entre os ideais ditos liberais e os ideais ditos autoritários, que
abordaremos aqui de forma bastante simplificada.
Na origem dos ideais liberais
encontra-se a promoção dos valores de igualdade, liberdade e fraternidade, a
crença no poder da razão humana, que data da revolução francesa. São
belas palavras, sem dúvida - que entretanto, em última análise, disfarçaram a
evidência e o significado da substituição do poder da nobreza pelo da
burguesia, essencial ao capitalismo, levando a extremos a exploração do
trabalho e a desigualdade da distribuição de renda. Modernamente, este ideal
liberal, adaptado aos nossos tempos, preconiza os direitos do indivíduo, de
forma correlata ao livre mercado: todavia, o palavreado que pretende defendê-lo
não evita nossa imersão no mais grosseiro individualismo, no consumismo
desenfreado, na mais passiva indiferença pelo que acontece um pouco além do
círculo da nossa vida pessoal. Na grande maioria das ocasiões, termos como
liberdade, direitos do indivíduo e outras afins, são empregados apenas como
palavras sonoras e ocas, úteis para fazer com que os homens elejam governos
cooptados com o poderio econômico, se degradem com os trabalhos mais brutais,
ou se satisfaçam com os mais fúteis, se entreguem aos relacionamentos mais
superficiais. A tolerância se transforma em conivência e cumplicidade; o
cuidado de si, em puro narcisismo; os gestos de solidariedade, em esmolas
desdenhosas – e assim por diante.
Tomemos agora um segundo tipo de
ideais: os ideais autoritários ou conservadores. Temos o assombroso exemplo do nazismo,
em que o ideal da hegemonia de uma suposta raça pura veio justificar o
extermínio aberto e brutal de milhares de indivíduos. Tal exemplo, contudo, não
é senão a radicalização daquilo a que todos os ideais autoritários nos incitam.
Os sistemas políticos, as religiões, as morais, demasiadamente rígidos, ainda
que não o admitam expressamente, visam manter os homens em cega obediência, sem
questionar certas ordens que fazem apodrecer nossos laços sociais. Tomemos o
exemplo visto em filme recente sobre a filósofa judia Hannah Arendt:
acompanhando o julgamento de um nazista responsável pelos trens que enviavam
milhares de judeus aos campos de concentração, ele se justificava alegando que
simplesmente cumpria ordens de seus superiores. Longe de ser um monstro, uma
aberrante criatura do mal, constata Arendt, aquele homem era apenas um
burocrata estúpido e banal, semelhante a tantos outros na Alemanha do
nacionao-socialismo, cujo ideal tinha como valor supremo a obediência das
ordens vindas de cima. Naturalmente, isto não o isenta do que fez; mostra-nos,
contudo, até que ponto agir mal, muito mal, pode consistir essencialmente em
recusar-se a questionar o mérito e a pertinência das leis a que obedecemos.
Embora sejam distintos
politicamente, estes dois tipos de ideal podem ter em comum algumas causas e
efeitos muito semelhantes. Quanto à sua origem, já nos referimos
à falsidade que os constitui: procuram, ambos, como a grande maioria
dos ideais até hoje existentes, esconder dos homens o fato de que as
correlações de força e poder são aquilo que produz o mundo tal como é, e
convencê-los de que basta serem trabalhadores, bem comportados e cumpridores da
lei em sua vida privada, para que o mundo se torne melhor. Quanto aos seus
efeitos, alguns são também parecidos. A valorização extrema dos direitos
do indivíduo do ideal liberal, paradoxalmente, uniformiza cada vez mais os
homens, através de uma exigência de normalidade e adaptação aos padrões de
conduta vigentes; tal padronização pode ter feições bastante diferentes, mas um
fundo muito parecido com aquela também imposta pelo ideal autoritário. Mas,
sobretudo, tanto um como o outro têm o seu avesso, o seu refugo, por assim
dizer: deixam atrás de si, de forma mais ou menos óbvia, uma vasta gama de
exclusões e segregações, julgamentos e castigos – como veremos, mais adiante, a
respeito do tratamento preconizado à loucura.
No que concerne aos ideais, e ao mal
estar da civilização relacionado a eles, temos, portanto, um impasse. Certos ideais já se mostraram incapazes de
guiar-nos, pela enorme quantidade de lixos e restos que deixam atrás de si. Contudo,
o homem não pode viver sem ideal algum, sem algum projeto ético que dirija a
prodigiosa energia reprimida de seus instintos para outros fins. A cultura não
poderia convencê-lo, nem mesmo obrigá-lo a não agir pura e simplesmente como um
bárbaro, se não lhe oferecesse algum ideal, se não justificasse de alguma forma
o sentido de sua existência na busca de alguma coisa acima de si.
Entretanto, os ideais criados
até agora se mostraram incapazes de fazer prevalecer os valores que
apregoam - pelo contrário, fazem assomar, de uma forma ou de outra, a
irracionalidade e a barbárie que supostamente viriam combater. Portanto, como
final desta segunda parte, fica a questão: seria possível a invenção de
outros tipo de ideais, fundado numa transvaloração dos valores existentes? Como
poderíamos criar e sustentar ideais que, ao invés de ameaçar a nossa vida
civilizada, pudessem torná-la mais viva, mais promissora e mais fecunda?
Movimento antimanicomial: um
outro ideal possível?
As duas segundas partes trataram de
questões mais abstratas, aparentemente alheias ao tema deste seminário, que
versa sobre a política antimanicomial. Nesta terceira, pelo contrário, pretendo
abordar o tema proposto, começando por coisas bem concretas que vi e vivi
no contato com o sofrimento mental ao longo de muitos anos - para depois
tentar estabelecer algumas relações entre elas e aquilo de que tratamos s até
agora.
Pois bem: vi milhares de pessoas às
quais se atribuía o diagnóstico de algum transtorno mental trancadas em
hospitais psiquiátricos, sem qualquer outra possibilidade de vida e tratamento.
Vi seu abandono e sua solidão, vi sua vontade esmagada, seus gostos
ignorados, sua privacidade, proibida, suas palavras, silenciadas. Eu os vi sem
um momento para si mesmos, obrigados ao cotidiano imutável das refeições
insossas e escassas; dos banhos de mangueira ou em banheiros sem portas; ao
ócio em pátios malcheirosos; circulando apenas por alas estéreis e vazias
cercadas por muros, sem amigos, sem família, quase esquecidos do que é
andar pelas ruas e viver na cidade. Eram oitenta mil brasileiros vivendo
assim, no final dos anos 70. Contudo, cerca de 30 mil, ainda hoje, podem ser
vistos em condições que não são essencialmente distintas destas, nos hospitais
psiquiátricos ainda existentes no país.
Eu vi e vejo, ainda hoje, centenas
de crianças, adolescentes, adultos, que vivem em favelas e em ruas, usando de
forma descontrolada o álcool, a cocaína, o crack, despossuídos de quase tudo o
que é essencial à vida humana: moradia e alimentação decentes, presença
familiar e social, laços afetivos, inscrição na cultura. Eu os vejo brutalmente
retirados das ruas onde circulam em nome da limpeza da cidade, da moral e dos
bons costumes; também, em nome desse mesmo higienismo, levados à sua
revelia para instituições fechadas, que ferem seus direitos mais elementares, e
impõem pregações religiosas que pretendem convertê-los... mas convertê-los em
quê, senão em humildes servidores de uma civilização que os abomina e exclui?
Mas não vi apenas coisas tão
obviamente cruéis; há outras de crueldade idêntica, embora mais sutil. Vi e
vejo, também, em nome da ciência, milhares de pessoas diagnosticadas e
medicalizadas como portadoras de transtorno mental, quando não experimentam
senão aqueles problemas relacionados à dor de existir, sobretudo a certas
maneiras de existir: pessoas com histórias de vida dolorosas, mulheres
destratadas por seus maridos, gente que já não suporta mais o seu trabalho,
crianças que não se adaptam bem às regras da escola, todos eles rotuladas de
deprimidos, bipolares, hiperativos, submetidas a baterias de testes que avaliam
seu grau de “normalidade”, medicadas com fármacos de que não necessitam e lhes
fazem mal.
Ora, o que representam estas formas
ostensiva ou disfarçadamente cruéis de trato da diferença e do sofrimento
psíquico do outro, senão o avesso ou o refugo dos nossos ideais? Estes ideais revelam
a sua cegueira diante dos efeitos nefastos que geram; instituem as formas
socialmente aceitas, porém não menos nocivas, pelas quais as pessoas são
incitadas a exercer mais ou menos veladamente a sua crueldade, em nome do bem.
Entretanto, vi e vejo, também, o
fantástico movimento que vem subvertendo esta lógica do trato com a loucura, a
diferença e a exceção. Vi, e vejo, trabalhadores se recusarem a tratar as
pessoas desta maneira, lutando pelo tratamento humano dos portadores de
sofrimento mental. Vi, e vejo, os próprios usuários e seus familiares retomando
o exercício da palavra e da ação, tornando-se, também eles, protagonistas desta
luta. Viajei com caravanas de usuários, familiares e trabalhadores pelo Brasil
inteiro, para encontros, seminários, conferências - e lá os ouvi, novamente
investidos da própria dignidade, denunciando os maus tratos sofridos, e
exigindo os direitos que lhes cabem. Vi, e vejo, os poucos primeiros CAPS em
funcionamento e os quase dois mil existentes hoje; os centros de convivência;
as moradias protegidas, as cooperativas de trabalho, o atendimento ao portador
de sofrimento mental na atenção básica, os consultórios de rua. Vi e vivi os
efeitos inusitados promovidos pelo cuidado em liberdade, através da
singularização dos projetos de vida, do afeto, dos empreendimentos em comum. Vi
não apenas a criação de serviços novos, mas sua articulação em redes que se
difundem pelo território, para atender aos diversos momentos e necessidades da
trajetória do portador de sofrimento mental. Vi e vejo a luta árdua e
persistente pela implantação do Sistema Único de Saúde, através do qual, e
apenas através do qual, os princípios da Reforma Psiquiátrica podem gerar uma
política pública voltada para toda a população.
Vi e tenho visto muito mais coisas,
tristes e alegres, também inesquecíveis; mas não posso alongar-me recordando-as
aqui. Gostaria apenas de sublinhar, inicialmente, que todas estas lutas e todas
estas conquistas nascem e se nutrem de um movimento que se caracteriza por sua
condição de movimento social. Elas não foram criadas por nenhum governo,
nenhuma instituição, ainda que alguns governos e instituições tenham, em maior
ou menor grau, ajudado a promovê-las. Remetem-nos a um movimento essencialmente
desinstitucionalizado, horizontal, descencentralizado, combativo: o movimento
antimanicomial. E esses aspectos do movimento nos levam a um modo diferente de
pensar e fazer política, que guarda, talvez, relação com um certo e novo ideal.
O movimento antimanicomial tem uma
palavra de ordem muito cara aos seus militantes: “Por uma sociedade sem manicômios”.
Ora, quem sabe, esta palavra de ordem não nos remeta, em última análise, a um
ideal, um ideal de civilização - e convide-nos a apostar na possibilidade de
criar ideais essencialmente diferentes daqueles criticados na segunda parte
desta exposição.
De que maneira a palavra de ordem de
um determinado movimento social pode participar de um ideal para a civilização?
Não poderia fazê-lo caso pretendesse apenas o fechamento dos manicômios e a
garantia de uma assistência qualificada aos portadores de sofrimento mental:
este objetivo, por importante que seja, não tem o estatuto de um ideal
civilizatório. Contudo, a construção de uma sociedade sem manicômios, embora
pretenda, inegavelmente, não mais aprisionar os loucos em instituições
fechadas, nem medicalizá-los para que vivam em aparente liberdade, não se reduz
de forma alguma a isto. Pretende, sobretudo, desconstruir as relações
manicomiais que os homens estabelecem consigo mesmos e com os outros - ou seja,
aquelas relações pautadas pela tutela, pela normatização, pela culpabilização,
pela submissão, presentes, de uma forma ou outra, nos ideais que examinamos.
Embora em ruptura com aqueles que o
antecedem, este outro ideal talvez possível busca resgatar o poder de palavras
esvaziadas por aqueles as empregam sem nelas acreditar, ou seja, visa
realmente fundar na liberdade, na igualdade, na solidariedade, na generosidade,
um projeto distinto de civilização, cujos ideais não enganem os homens nem os
obriguem a enganar-se a si mesmos; que não disfarce ou denegue nossa condição
de animais, com instintos intensos e brutais, mas nos faça avançar a partir
dela, apesar de inevitáveis retrocessos; que, não sendo frouxo como o ideário
liberal individualista, nem implacável, como o ideal autoritário, mostre-se ao mesmo
tempo flexível, porém exigente.
Aqui, a liberdade
não é entendida no velho sentido do livre arbítrio, segundo o qual
somos livres em nossas escolhas e, por conseguinte, culpados por elas; afinal,
as escolhas aparentemente livres de cada indivíduo na verdade se inscrevem ma
longa série causal histórica, social, política, pessoal, que as determinam. A
igualdade não se confunde com a uniformidade de pensamentos e conduta. A
solidariedade não coincide com o mandamento absoluto do amor ao próximo como
a si mesmo. O valor da liberdade, tal como o entendemos, resulta da
percepção de que o julgamento moralizante, as imposições, a exigência de
subserviência e passividade, acabam sempre por mostrar-se inviáveis na promoção
do convívio. O valor da igualdade provém justamente do reconhecimento de que os
indivíduos são radicalmente diferentes entre si - e uma certa necessidade de
uniformização culturalmente necessária só pode operar bem ao preservar no
próprio seio da cultura a margem indispensável à singularidade de cada um. O
valor de solidariedade não pretende suprimir os sentimentos hostis que,
humanamente, muitas vezes sentimos uns pelos outros, mas convida-nos a
superá-los, colocando, na medida do possível, a força utilizada em seu domínio
a serviço dos laços de respeito e cuidado mútuos indispensáveis à cultura.
Nas referências a este novo ideal,
utilizamos sempre o advérbio “talvez”, pois nada nos garante a possibilidade de
criá-lo; somos formados por outros, cujo profundo enraizamento na civilização
pode eventualmente paralisar nossa capacidade de escapar a eles. Sustentamos,
porém, o desejo desta ruptura e a decisão dessa aposta.
Para tanto, é indispensável não
fingir desconhecer as correlações de força que constituem todo ideal. Este que
tentamos construir as reconhece, e toma partido em seu jogo: procura
identificar e favorecer as forças mais vivas e criadoras, combatendo aquelas
outras que nos engessam e apequenam. Neste sentido, a palavra de ordem “por uma
sociedade sem manicômios” aponta para um ideal que não é apenas
o do movimento antimanicomial, mas sim partilhado, creio eu, com outras
lutas políticas e culturais emancipatórias do nosso tempo.
Há ainda um outro aspecto a
mostrar-nos por quê este ideal talvez possível não é apenas o de um determinado
movimento social: a loucura nos interpela a todos de forma radical, quando se
trata de propor um convívio realmente civilizado entre os homens. Como tudo o
que provoca estranheza, ameaça os ideais que criticamos anteriormente, e neles
não encontra cabimento: podem tratá-la apenas através de uma dureza que mascara
o ódio, uma piedade que esconde o desdém, uma postura neutra que disfarça uma
superioridade suposta. Certamente, os loucos, quando em sofrimento mental
agudo, podem radicalizar, por assim dizer, a própria singularidade, de forma
insuportável para o laço social: há que haver algum ponto de contato, algo em
comum com o outro, alguma partilha, para que a convivência se torne possível.
Nós, que desejamos sua presença no espaço social, somos constantemente chamados
a inventar, junto com eles, esse ponto, essa ponte, essa travessia. Tal
invenção, embora por vezes difícil e dolorosa, mostra-se sempre fértil,
mostrando ser este o melhor caminho a trilhar.
Em suma: nós, seres humanos, estamos
sujeitos a restrições e regras que nos transformaram, e não podemos viver
civilizadamente sem obedecer a algumas delas, profunda e inconscientemente
arraigadas em nós - veja-se a enigmática interdição do incesto, que, embora
transgredida por alguns, vigora universalmente, apesar de sua ausência aparente
de razão. Nós, seres humanos, somos e não deixaremos jamais de ser estes
estranhos animais que pertencem à natureza, mas a modificam, e ao
modificá-la modificam também a si mesmos - e, neste processo, muitas vezes disparatamos,
perdemos o rumo, criamos para nós mesmos novas e desnecessárias fontes de
sofrimento.
Não podemos esperar que, algum dia,
alguma receita, alguma fórmula de validade geral, adotada por todos os países,
todos os povos, todas as culturas, solucione inteiramente os impasses inerentes
à nossa cultura, transformando-nos nos anjos que jamais seremos; menos
ainda, podemos conformar-nos com o retorno à barbárie, como demônios que
tampouco não somos. Nossa civilização jamais atingirá um ponto tal em que
desaparecerão as transgressões, as rupturas, os desvios; jamais encontraremos
fórmulas inteiramente eficazes para satisfazer de forma indireta nossa vida
instintual; a paz, a harmonia universal, a unanimidade, não são ideais
factíveis, nem mesmo desejáveis, talvez.
Mas poderemos talvez, pelo aprimoramento do gosto, pelo
refinamento da sensibilidade, pela apreciação do raro, pela ousadia do
singular, empregar de forma mais fecunda a poderosa força dos instintos que nos
movem.
Pois o homem, enfim, não é bom nem
mau: o homem é, em princípio, inocente, apesar de todo e qualquer pecado
original que lhe tenha sido imputado, Há sempre alguma inocência a ser
reencontrada em seu desamparo, em sua dor, em sua solidão; alguma inocência
presente em sua alegria, em seu amor, em seu atrevimento. Tratar a sua
inocência como mais poderosa do que a sua culpa pode ser um caminho - é este,
pelo menos, o arrojado caminho que buscam, ao lado de outros
companheiros, os militantes da luta antimanicomial.
Ana
Marta Lobosque
Belo
Horizonte, 20 de agosto de 2013
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