agosto 20, 2013

"Acabou a magia: uma intervenção sobre o Fora do Eixo e a mídia NINJA (2ª parte) (Passa Palavra)

PICICA: " O empreendimento midiático dos Ninjas nem de longe deve ser compreendido como continuador dos anseios que permeavam e continuam permeando os fazedores de mídia livre ou independente, mas como a própria deturpação dos princípios que nortearam aqueles anseios."

Acabou a magia: uma intervenção sobre o Fora do Eixo e a mídia NINJA (2ª parte)

20 de agosto de 2013  


O empreendimento midiático dos Ninjas nem de longe deve ser compreendido como continuador dos anseios que permeavam e continuam permeando os fazedores de mídia livre ou independente, mas como a própria deturpação dos princípios que nortearam aqueles anseios. Por Passa Palavra
Felipe Altenfelder, membro do Fora do Eixo, escreveu no Facebook
em 19 de agosto de 2013:
“Pedimos direito de resposta ao Artigo do Alvaro Pereira Junior e a Matéria de ontem na Folha de SP. E estamos protocolando amanhã o pedido de resposta a Carta Capital. Estamos com um núcleo jurídico avaliando todo o debate e em breve anunciaremos algumas medidas contra a difamação e as calunias que temos recebido na ultima semana. Quem quiser colaborar tamo junto!”
Leia a 1ª parte deste artigo.
5. Mídia NINJA como novidade?

O que a Mídia NINJA tem apresentado como algo inédito não nasceu agora e tampouco foi criado pelo Fora do Eixo. A ideia de estabelecer canais de comunicação geridos pelos próprios militantes e capazes de transmitir suas próprias lutas é algo que acompanha toda história das lutas operárias da virada do século XIX e XX.

Essa reflexão sempre esteve presente nas práticas que tentavam organizar a cultura produzida para e pela classe trabalhadora. A título de ilustração, com a própria ampliação da imprensa escrita, um número cada vez maior de leitores começou a escrever, em princípio, para as seções jornalísticas comumente chamadas de “Cartas dos leitores”. Segundo as observações de Benjamin, “o mundo do trabalho” – naquele momento – “toma a palavra”, de modo que saber escrever sobre o universo da produção passaria a fazer parte das habilitações necessárias para executar o trabalho, uma formação que não se adquiria na educação especializada, mas se constituía como uma “coisa de todos.” Com o surgimento dos outros meios de comunicação não foi diferente. Quando nasceu o rádio, Brecht foi um dos que indicou as potencialidades daquele grande instrumento de comunicação, uma vez que ele “podia não somente emitir, mas também receber; não apenas deixava o ouvinte escutar, mas fazê-lo falar; e não isolá-lo, mas colocá-lo numa relação”; ou seja, o ouvinte poderia ser também fornecedor, produtor de informação.

 

E o desejo de se comunicar, organizar e construir os instrumentos de comunicação dos próprios trabalhadores foi ganhando fôlego renovado ao longo do tempo. A exemplo disso, temos os jornais-instrumentos surgidos a partir da experiência de maio de 1968. Mas para refletirmos sobre as experiências atuais, nada mais emblemático do que a criação da Rede Indymedia entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Os Centros de Mídia Independentes (CMI), como ficaram conhecidos no Brasil, surgiram a partir da necessidade dos ativistas envolvidos na Ação Global dos Povos (AGP) criarem seus canais de comunicação para, naquele momento, se oporem à cobertura que as grandes corporações de mídia faziam dos Dias de Ação Global. Essa ferramenta inaugurou a forma colaborativa de se produzir notícias através da internet, o que mais tarde – e hoje em dia tão em voga – tornar-se-ia o grande paradigma, “mais democrático”, para todo tipo de comunicação em rede. Algo inclusive praticado por grandes órgãos da imprensa, em que o espectador é estimulado a participar enviando suas pautas, notícias e pontos de vista em nome de um jornalismo mais comprometido. Com isso, é bom dizer, as empresas de comunicação podem alargar suas margens de lucro dispensando funcionários, diminuindo as coberturas de rua e conseguindo informações voluntárias que enriquecem e legitimam seus órgãos de imprensa.

A grande diferença, porém, da prática de construção coletiva e independente de comunicação feita pelos CMIs das que podemos ver hoje praticadas tanto pelas grandes empresas de comunicação como pelos ditos blogs alternativos e, principalmente, pela própria Mídia NINJA, é que aqueles ativistas que criaram os CMIs estavam diretamente inseridos nas lutas sociais e resolveram criar seus canais de comunicação pela necessidade da própria luta. Foi assim que o CMI nasceu, como necessidade direta da AGP e, portanto, enquanto iniciativa radicalmente diferente da de uma empresa de comunicação externa ao movimento e sua luta; em suma, como um porta-voz dos reais acontecimentos transmitidos em direto das ruas. Observemos melhor essa diferença.

Há mais de uma década as novas tecnologias de informação vêm permitindo que as lutas sejam transmitidas online, e essa transmissão propicia que reflexões sobre essas mesmas lutas sejam realizadas de forma muito mais rápida. Por sua vez, a cobertura das lutas feita a partir de dentro delas contribui para que pessoas inicialmente não organizadas consigam se aglomerar em torno de práticas e organizações que de fato potencializam as lutas, ao invés de se tornarem reféns de estruturas burocratizadas e hierarquizadas.

Claro que George Orwell, ao cobrir a Guerra Civil na Espanha, ou até mesmo os primeiros coletivos do CMI, não possuíam celulares nem qualquer outro tipo de tecnologia de que agora os ninjas dispõem de forma fácil e relativamente barata. A possibilidade de comunicar através de imagens – e de que essas imagens possam ser capturadas por qualquer um – traz às lutas, e também à repressão delas, novos dilemas e possibilidades. Mas não é o uso das novas tecnologias que, em si, dá a esse momento o ar da novidade.

Se a potencialidade desse momento está na ampliação do ativismo em torno da divulgação das lutas, possibilitando que o que vem das ruas chegue cada vez mais rápido aos que ainda não estão nelas, e que as pessoas tenham outras fontes de informação para além dos meios tradicionais de comunicação, igualmente os perigos não devem ser descartados.


Voluntário do Indymedia, Brad Will foi assassinado a mando do governo numa barricada em Oaxaca (2006)

Há o elemento mais imediato, que é o fato óbvio de que esses materiais estão sendo utilizados por todos. Isso inclui a polícia, que tem agora parte de seu trabalho de repressão facilitado. Mas há outros igualmente sérios, que merecem também reflexões profundas. E aí voltamos à comparação com a atuação dos Centros de Mídia Independente. O fato do comunicador não estar mais necessariamente vinculado às lutas, por exemplo. Em experiências como a do CMI, os militantes que comunicavam as lutas eram parte delas, havia o compromisso em potencializá-las. A contra-informação era não somente uma forma de se contrapor à mídia tradicional ou a simples ação de criar novas fontes de informação, mas sobretudo um compromisso de evitar a assimilação das lutas pelas organizações contrárias a elas.

A divulgação das lutas era parte delas, feita de dentro, expressava a linguagem e os acúmulos produzidos naquele momento; decidia pelas referências que deveriam ser tomadas, estabelecia contatos com as lutas que de fato eram afins e delimitava o que poderia e o que não poderia ser divulgado com antecedência, como as táticas de ação direta, por exemplo. Já agora as lutas nascem com o risco de não se concretizarem por terem suas comunicações perdidas, porque terceirizadas, deixadas a cargo de uma empresa com seus objetivos definidos a priori.

E aqui é importante reforçar as diferenças. Primeiramente, os esforços de construção de plataformas comunicativas para/dos ativistas nunca reivindicou qualquer renovação do conceito e da prática jornalística em seu sentido profissional. Não havia qualquer intenção de inaugurar um “novo modo de fazer Jornalismo” (com “J” maiúsculo, enquanto ofício ou campo de atuação especializado), tal como Bruno Torturra e Pablo Capilé tentaram fazer parecer. A legitimidade decorria da própria necessidade das lutas e não exatamente de regras e novos protocolos acadêmicos. Do ponto de vista das lutas sociais, é completamente estéril a discussão sobre a autenticidade de um “jornalismo feito em primeira pessoa”, sem edição, corte ou coisa do tipo.

Em segundo lugar, e mais decisivo, nessas experiências recentes que conhecemos como Mídia Independente, o adjetivo independente não consta apenas para decorar um novo produto, de modo a torná-lo atrativo a um nicho de mercado particular. Independência aqui traduzia-se – e traduz-se – em dispensar qualquer tentativa de obter recursos via editais públicos ou, menos ainda, por financiamento de empresas privadas. Isso pela simples convicção de que a dependência econômica compromete irreparavelmente a independência política.

Nesse sentido, o empreendimento midiático dos Ninjas nem de longe deve ser compreendido como continuador dos anseios que permeavam e continuam permeando os fazedores de mídia livre ou independente, mas como a própria deturpação dos princípios que nortearam aqueles anseios. A passagem da palavra de ordem “seja a mídia” para “ocupe a mídia”, por exemplo, apesar de aparentemente casual, esconde a tentativa de recuperação capitalista dessas iniciativas. A primeira exprime como objetivo estratégico (ainda que não muito claramente) o estabelecimento de plataformas comunicativas paralelas que caminham em sintonia com os movimentos sociais anticapitalistas e terminantemente recusam a vincular-se às instituições da ordem. A segunda poderia representar uma atitude mais radical se o “ocupe” da expressão dissesse respeito à tomada dos grandes aparatos de comunicação, como fizeram os insurgentes de Oaxaca em 2006, por exemplo. Mas não. “Ocupe a mídia” limita-se a iniciativas nascidas autônomas no âmbito das políticas públicas, ou a passar o pires e reivindicar uma distribuição mais justa das verbas publicitárias do governo federal.

Há ainda outro elemento: os ativistas que estão aderindo voluntariamente à Mídia NINJA. Ninguém além do Fora do Eixo sabe de maneira exata o perfil de cada um desses militantes. Mas somando a atuação de um aqui com a de outro lá, porque as lutas se comunicam para além e muito antes da existência da Mídia NINJA, podemos perceber que essa rede é formada por pessoas dos mais diversos níveis de comprometimento com as lutas. Enquanto em alguns locais os Ninjas são ativistas do Fora do Eixo, em outros pessoas de dentro das próprias lutas – e respondendo mais a elas do que ao Fora do Eixo – é que fazem o trabalho de transmissão online. E ainda há aqueles que caem de paraquedas, só respondendo a si mesmos.

 

Ante esse dilema, dois caminhos despontavam ao Fora do Eixo: dissolver-se dentro do Mídia NINJA e de dentro cooptar esses “perdidos” vinculados às lutas locais para a sua lógica empresarial de atuação; ou subordinar hierarquicamente ao Fora do Eixo os novos militantes, transformando a Mídia NINJA em mais um projeto do seu portfólio. A entrevista no Roda Viva do início do mês deixou claro o caminho escolhido. O Fora do Eixo optou pela estratégia de diversificação de produto e de mercado, uma clássica decisão empresarial. Decisão arriscada, porém, para quem tem uma estrutura interna sob questionamentos.

O passo maior que as pernas dado pelo Fora do Eixo ao expor o Mídia NINJA como seu projeto no programa Roda Viva ajudou a clarear a situação. O que antes era apenas uma obscura relação entre a Mídia NINJA e o Fora do Eixo transformou-se em uma evidente relação de subordinação do primeiro ao segundo. De parceiros, entre muitas outras possíveis parcerias, passaram a ser tudo a mesma coisa.
O Fora do Eixo já conta com uma década de atuação e a experiência prática permitiu que a crítica aparecesse não só com a densidade dos dois últimos relatos (Beatriz e Laís), mas também através de uma enxurrada de críticas tanto dos meios militantes quanto dos meios artísticos. Mas ao contrário do Fora do Eixo, os Ninjas – não Capilé e Torturra (ou alguém já os viu na rua nesses dias, com celulares nas mãos, correndo o mesmo risco que seus repórteres?) – mas aqueles que voluntariamente resolveram doar o seu ativismo à marca NINJA, esses não tiveram voz ainda. O que não deixa de ser irônico.

O que pensam esses Ninjas, agora que sabem que não são mais simples voluntários das lutas, mas colaboradores de uma empresa? O que pensam esses Ninjas agora que, após fazerem “vaquinhas” para comprar materiais e equipamentos ou para recuperar aqueles perdidos nas lutas, descobriram que há um caixa “coletivo” cujo acesso jamais foi disponibilizado a eles? O que farão esses Ninjas ao saberem que foram usados para fazer números frente a negociações com empresas, partidos e governos, sendo muitos desses governos os mesmos que eles combateram nas ruas?

6. Novos truques

Se a resposta à repressão do Estado não foi a dispersão, mas a adesão de mais e mais manifestantes – um processo que se verificou em muitas das cidades –, a resposta às tentativas de enquadramento dos meios de comunicação tampouco foi insignificante. Os jornais tradicionais, que antes legitimaram a repressão, tentaram – e conseguiram, em grande parte – determinar a dinâmica e as pautas de boa parte do movimento de rua. Numa situação em que a classe trabalhadora enquanto massa desorganizada ocupa as ruas com 50 mil, 100 mil pessoas, ditaram a pauta aqueles que melhor utilizaram as técnicas do marketing e da propaganda.

A resposta a isso, por sua vez, não tardou e no Brasil inteiro sucederam-se cenas de carros de imprensa incendiados e de repórteres sendo expulsos das manifestações. Diante desse cenário restou à imprensa tradicional acompanhar os protestos de helicóptero ou por detrás de barreiras policiais. Foi nesse contexto que a Mídia NINJA se colocou como uma alternativa real de empresa midiática. E aí aparece o novo Jornalismo, com J maiúsculo, aquele que entra onde os outros falharam. Conforme apontou Pablo Capilé, há mais de um mês, em uma mesa sobre a cobertura dos protestos na Flip:
“Se você não está dentro, não consegue perceber o que está acontecendo. A imprensa passa por uma crise de intermediário pela qual a música passou há dez, quinze anos” […] A presidente Dilma não está entendendo o que está acontecendo”.
Esse olhar por dentro é o produto realmente novo que o Fora do Eixo vem oferecer aos governos, empresários e público em geral. Por meio desse olhar por dentro, “engajado”, os Ninjas têm acesso a dinâmicas e fatos que sempre escaparam aos meios tradicionais de comunicação. Como propagandeou Capilé antes da magia acabar, até o famigerado Black Bloc dava entrevista para a Mídia NINJA. Trata-se de um produto que só se obtém emulando as práticas da antiga mídia independente de colaboração voluntária, por engajamento, com a construção de redes militantes de confiança – mas que só é rentável sendo isso mesmo: uma emulação, um simulacro. E não pode deixar de ser um simulacro enquanto o objetivo for não a solidariedade militante, mas a conquista de audiência e a autoconstrução do veículo de comunicação.

 

E aí entra a demonstração em números da viabilidade econômica desse “novo produto”: as transmissões dos protestos obtiveram enorme audiência. Audiência significa, no final do mês, apresentar o número de visualizações obtidas, a capacidade de “atrair olhares”, de “construir narrativas”, de “dar furos na imprensa tradicional”. Mas apresentar a quem? Aos novos patrocinadores da nova mídia, é claro.

Basicamente existem duas fontes de financiamento dos projetos ditos sociais. A primeira, com maior volume de recursos, é a estatal, realizada através de editais; a segunda, mediante parcerias com empresas privadas. Quanto ao mercado de editais, já em suas primeiras críticas ao Fora do Eixo, o Passa Palavra havia denunciado que os vencedores de editais costumam ser exatamente aqueles que definem os seus critérios, através daquilo que o Fora do Eixo chama “hackear o Estado”. Infiltrar-se nas estruturas de poder e, de lá, elaborar as políticas que deverão beneficiar as suas próprias organizações. É como se a empresa que tivesse interesse em receber recursos do Estado para executar uma obra ou serviço, usando aqui como referência uma licitação pública, criasse no Estado tal demanda e definisse os critérios de uma forma que só ela pudesse sair vencedora da suposta concorrência.

No caso dos meios privados, as parcerias se dão de forma mais livre, porque as empresas têm mais liberdade para contratar os serviços disponíveis, sem atender a nenhum critério público e escolhendo sempre aqueles que lhes trarão maiores lucros. Além disso, hackear uma empresa é mais difícil do que hackear o Estado, por isso as parcerias são o único caminho.

Entretanto, quer no mercado de editais quer nas parcerias com empresas, as organizações da sociedade civil, como ficaram conhecidas as ONGs e demais iniciativas similares, precisam oferecer uma contrapartida. Essa contrapartida quase nunca é em dinheiro, mas em outros tipos de ativos. Disponibilizam-se, por exemplo, as instalações físicas, as habilidades específicas dos recursos humanos, a rede de contatos e apresentam-se como lastro para esses ativos as realizações pretéritas ou as inovações, mesmo que essas últimas só ocorram no plano da linguagem.

Por tais ativos intangíveis serem de difícil mensuração, mas de fácil extrapolação da realidade, o Estado, sob pressão dos seus próprios órgãos de controle, vem reduzindo as possibilidades de contrapartida, para somente permitir contrapartidas concretas, isto é, possíveis de serem mensuradas financeiramente (por exemplo, 10% do projeto tem que ser financiado pelo próprio requerente do recurso). Tal ação tem gerado lamúrias generalizadas entre as ONGs. Entretanto, nos meios privados esses ativos despertam maior interesse e servem inclusive de respaldo para criar diferencial competitivo, testar novos produtos e descobrir novos mercados. Além, é claro, de valorizar a marca junto a certos grupos de consumidores, quando não criá-los. Percebe-se a maestria do Fora do Eixo em não somente sobrevalorizar os ativos intangíveis, mas também em criar dependência em relação a eles.

Somando o hackeamento do Estado, as parcerias com as empresas privadas e a capacidade de criar valor através da exploração de uma mão-de-obra que até ontem nem se imaginava enquanto tal, o Fora do Eixo desponta como protótipo dessa “Revolução 2.0”: uma nova dinâmica de acumulação capitalista, para sermos mais precisos.

7. Relações políticas com partidos, instituições estatais e parceiros integrados

 

Ainda no que se refere ao ato de hackear o Estado, é necessário refletir sobre o papel que o Fora do Eixo e também a Mídia NINJA podem oferecer como contrapartida. O grande feito da turbulência política desencadeada pelas manifestações contra o aumento das tarifas do transporte público, e principalmente pela ação do Movimento Passe Livre de São Paulo (MPL-SP), foi ter liberado os conflitos e insatisfações sociais das amarras dos aparelhos de consenso que caracterizam os governos petistas: ministérios, fóruns, conselhos, audiências públicas etc. Se antes os conflitos se resolviam única e exclusivamente nesses espaços institucionais pré-estabelecidos – onde os descontentes se tornam dóceis e facilmente administráveis –, as batalhas de junho puseram os conflitos de volta às ruas, ao solo original das contradições. Não causa espanto assim que os meios de comunicação oficiais e as lideranças políticas institucionais chamem a isso que simplesmente está fora de sua alçada de controle de baderna e vandalismo.

Nada poderia incomodar mais as instâncias governativas do que as ações políticas operadas por fora e para fora dos seus mecanismos de pacificação e controle. A engenhoca pacificadora que parecia andar muito bem de repente se deparou com a existência de peças que não se encaixavam na sua engrenagem. Rapidamente foram tomadas medidas políticas orquestradas, com tarefas específicas bem distribuídas e a finalidade de canalizar, induzir ou interferir no rumo das manifestações. São os agentes da reconstrução do consenso, bem aludidos neste artigo.

Alguns desses agentes atuam sob orientações superiores, outros o fazem espontaneamente, por excesso de governismo introjetado, e outros ainda por mero oportunismo. A participação do líder do Fora do Eixo na reunião do dia 22 de junho com o ex-presidente Lula e o alto grau de envolvimento na Secretaria de Cultura da capital paulista, que tem como chefe de Gabinete Rodrigo Savazoni, declarado colaborador e entusiasta do Fora do Eixo, por exemplo, não deixam dúvidas de que o coletivo-empresa se enquadra no primeiro grupo e carrega também muitos elementos do terceiro. Na citada reunião, o ex-presidente e principal articulador político do Partido dos Trabalhadores, conforme atestam vários depoimentos de representantes de entidades que estiveram presentes, orientou que os movimentos mais ligados à juventude adentrassem nos movimentos de rua e procurassem determinar os seus caminhos por dentro. A instrução política se pautava pelo seguinte: se os movimentos de rua acontecem por fora e para fora da institucionalidade, é preciso que a institucionalidade abarque as mobilizações já na própria rua; não é a voz das ruas que prevalece sobre os gabinetes, mas é o gabinete que se estende para as ruas.

Não é de espantar que depois desse encontro surgissem manifestações cujo foco de reivindicação fosse a luta contra os monopólios dos meios de comunicação, notadamente a Rede Globo e demais grandes corporações do setor. Em um momento em que a chamada grande mídia atacou diretamente os movimentos sociais, pedindo inclusive em editoriais a repressão aberta às manifestações de rua e apresentando imagens que eram utilizadas para criminalizar movimentos sociais e seus participantes, a luta contra os grandes monopólios foi adotada internamente por grande parte dos manifestantes. Não estamos afirmando aqui que os participantes dessas manifestações estavam ao lado de uma proposta governista, mas que é necessário pensar tais manifestações e a proposta de ocupar a mídia em um momento em que a crítica às grandes corporações do setor dá suporte também a um ponto estratégico no programa das organizações governistas para romper com a desvantagem que levam nestes grandes meios, em muitos sentidos hostis ao Partido. A orientação política de Lula de se determinarem caminhos por dentro dos movimentos deve ser refletida também nesse aspecto.

 

Assim, a proposta de estruturação da Mídia NINJA, que busca ser financiada também por recursos públicos, deve contribuir para a suposta renovação do jornalismo e para o fortalecimento de jovens veículos de informação que irão auxiliar na constituição de novos monopólios comunicativos. Mas dessa vez favoráveis à hegemonia petista, ou à de qualquer outro partido com os quais o Fora do Eixo, a Mídia NINJA e seus colaboradores estejam ligados. Ficou clara a afirmação de Bruno Torturra de que está empenhado na construção da Rede, o novo partido cuja líder principal é Marina Silva. Como não há ingenuidade entre os quadros da política – e os que se aproximam deles perdem-na rapidamente –, é necessário lembrar da intervenção do presidente do PT, Rui Falcão, também no programa Roda Viva (dia 15 de julho de 2013), de que os grandes blogueiros e os já estabelecidos, como Luís Nassif, Paulo Henrique Amorim, Renato Rovai e Luiz Carlos Azenha são militantes do Partido, como também o seria o próprio companheiro Pablo Capilé (veja aqui). Os ditos bloqueiros progressistas já foram analisados em outro artigo publicado pelo Passa Palavra.

Assim, o elemento novo que aparece no momento atual é o papel que a Mídia NINJA pode exercer no projeto de comunicação das forças governistas. Resta refletir sobre como os Ninjas poderão se relacionar com os movimentos sociais e quais consequências esse relacionamento pode acarretar aos movimentos.

8. Fim do espetáculo?

Que existe um problema sério nos novos movimentos sociais, e também nos velhos, quanto à produção e difusão de informação referente à luta e à comunicação interna dos movimentos, garantindo que todas as informações cheguem a todos os participantes, é uma situação auto-evidente. Só que essa iniciativa empresarial do Fora do Eixo não resolve esse problema, pelo contrário, aprofunda-o.

Nos “novos” movimentos sociais incipientes cria-se uma ilusão de “fácil envolvimento” com os outros setores da sociedade por meio da publicidade de uma máquina de divulgação já pronta. A internet e as várias redes sociais garantem que o conteúdo gerado pelos movimentos tenha um alcance de divulgação amplo, sendo acessível a grupos sociais que dificilmente teriam acesso aos materiais produzidos, caso não estivessem em contato com o próprio movimento ou membros deste. O fato de haver uma rede de trabalhadores que passa a laborar na divulgação das transmissões ao vivo das manifestações ou no compartilhamento de fotos, textos e vídeos referentes às lutas dá um poder enorme aos especialistas da divulgação nas redes sociais, que nesse momento tendem a ser do Fora do Eixo. Por outro lado, retira a responsabilidade sobre a construção de práticas coletivas consistentes, cotidianas, para além das ações na rua e que envolvam os participantes no importante trabalho de criar os conteúdos de informações que são produzidos em todo o processo de luta.

É sabido que existem grupos que se encarregam apenas da comunicação de um movimento e esse fato é ainda tão central que a prática de controlar o setor de comunicações de uma luta é o primeiro passo para controlar a luta toda. Se um grupo específico, dentro de um movimento, controla as informações referentes à luta, ele controla também as possibilidades de tomada de decisão de todos os demais participantes. Há ainda outro agravante relacionado ao controle das informações. Enquanto os embates internos se dão, abre-se a possibilidade de o inimigo externo dispor de um tempo maior para utilizar outras estratégias para acabar com as mobilizações. Um exemplo emblemático do que está por vir, oriundo da incapacidade das lutas criarem seus próprios meios de comunicação, é o que aconteceu em junho, quando, percebendo este vácuo nas mobilizações que eclodiram, a televisão passou a definir a pauta das ruas, suas clivagens internas (patriotas x vândalos), e para isso usaram, inclusive, das imagens geradas pela Mídia NINJA.

 

As lutas ocorridas nos últimos meses e os problemas referentes à comunicação interna dos novos movimentos sociais permitem delinear a reprodução de uma divisão do trabalho, com alguns grupos se tornando especialistas da informação e preocupados apenas com a sua função de produtores de conteúdos de comunicação, alheios aos outros aspectos da luta que divulgam. Como possibilita também que esses mesmos grupos passem a comercializar as imagens e demais produtos de comunicações relacionados aos movimentos e às lutas nas quais estão realizando as coberturas.

Por outro lado, a relação entre a Mídia NINJA e o Fora do Eixo com os “velhos” movimentos sociais passa por uma estrutura já cristalizada de relacionamento entre a direção e a base. O problema da falta de difusão interna de informações, que ocorre diante da burocratização e hierarquização dos próprios movimentos, passa a ser tratado como tendo uma solução técnica, sem envolver os participantes e sem resolver o problema da organização interna. O que ocorre é uma tendência do diálogo entre os grupos de comunicações externos e os movimentos sociais ocorrer predominantemente com as direções e não com os militantes de base dos movimentos, pois são as direções os contatos mais acessíveis, com mais disposição de tempo para as negociações, além de serem mais habilidosos no trato com meios de comunicação, em decorrência de uma experiência já adquirida com essas tarefas. Esse tipo de relacionamento proporciona ainda a garantia de que as direções conseguirão filtrar as informações difundidas, principalmente as que coloquem em questionamento as práticas decorrentes da ocupação das funções de controle e poder. A preocupação que nos leva a pontuar tal questão não está relacionada diretamente ao fato de a Mídia NINJA já estabelecer relações com os “velhos” movimentos sociais, mas sim pelo fato de o Fora do Eixo estabelecer tais tipos de relações – como, por exemplo, com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) – e passar a oferecer mais um dos serviços disponíveis em seu portfólio empresarial.

Qual seria uma solução possível para o problema da comunicação dos movimentos sociais? A difusão de várias plataformas de comunicação, o aprendizado coletivo e igualitário das práticas de comunicação por parte dos envolvidos nas lutas, a construção participativa de novas formas de comunicação e interação? Seria o CMI uma experiência a ser repensada neste novo momento de lutas sociais? As questões ainda estão em aberto e as possibilidades de criação de novos mecanismos de comunicação nos movimentos sociais estão para ser construídas, seja na prática anticapitalista, seja na prática empresarial do Fora do Eixo/Mídia NINJA. O resultado dependerá de todos nós, de um lado e do outro.

Fonte: Passa Palavra

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