PICICA: "No Brasil parece funcionar um
mecanismo bizarro em que os métodos, discursos, utopias, análises,
reflexões e perspectivas da esquerda são o modo mesmo com que a direita
realiza seu projeto."
“Você é burro, cara”: sobre a “arrogância” de Caetano Veloso e a mediocridade
18 de agosto de 2013
No Brasil parece funcionar um
mecanismo bizarro em que os métodos, discursos, utopias, análises,
reflexões e perspectivas da esquerda são o modo mesmo com que a direita
realiza seu projeto. Por Acauam Oliveira
Eis a entrevista
de Caetano Veloso no programa Vox Populi, de 1978, de onde saiu aquele
trecho que se tornou um meme de sucesso na internet, em que acompanhamos
a figura algo andrógena de Caetano, do alto da sua arrogância de pop
star, esbravejar ensandecido contra o jornalista da Veja Geraldo
Mairinque, que havia feito algumas críticas à postura de Caetano com
relação à imprensa. Arrogância destemperada? Sem dúvida, desde que
compreendamos bem o quanto dessa arrogância faz parte de um espectro bem
mais amplo que envolve a própria relevância do projeto estético do
cancionista. Caetano enxerga o mundo e suas contradições a partir de seu
próprio umbigo, demonstrando rara capacidade de estabelecer uma espécie
de homologia problemática entre experiência subjetiva e processo
social. Narcisismo pretensioso? Pode até ser, mas todo mundo que
assistiu ao Homem de Ferro sabe que tal postura só se torna
problemática quando não funciona. No caso de Caetano, fez dele uma das
figuras mais importantes da história da música popular, o personagem
decisivo a partir de onde podemos acompanhar, refletidas, suas
principais contradições. Diga-se de passagem, é importante lembrar que
também Drummond, que nem é dos mais pretensiosos dos nossos poetas, fez
do próprio umbigo um lugar privilegiado para estabelecer uma relação de
aproximação tensa com o mundo, pensando as contradições de seu tempo por
meio do dilaceramento interno, ainda que mais comedido, menos pop e
mais mineiro.
E já chega, porque ficar elogiando
Caetano Veloso é tão burro quanto criticar Caetano Veloso. É cair como
um mané nas armadilhas preparadas formalmente por ele. É entrar no jogo
de identificações e classificações arbitrárias (estúpidas por sua vez)
em que ele é mestre maior em criticar na medida exata em que dele se
aproveita melhor que qualquer outro representante da MPB [Música Popular
Brasileira]. Daí a impressão, complexa e insegura, de que os equívocos
de Caetano Veloso contêm inúmeros acertos que valem tanto mais a pena
que seus acertos por vezes bastante equivocados, de tal maneira que
concordar ou discordar de suas ideias é já colocar-se em uma posição
absolutamente complicada que necessita ser revista no momento mesmo em
que ameaça fixar-se. Forçar essa indeterminação, projetar sua própria
indeterminação para o mundo de modo a confundi-la com a própria condição
brasileira de ser do sujeito no mundo é o grande talento de Caetano. E
como, formalmente, toda canção estrutura-se como um processo de
indeterminação formalizado, não é mero acaso o potencial de sua obra.
Feita essa ressalva – de que aquilo que
mais “irrita” no Caetano é a condição necessária de realização daquilo
que ele tem de melhor (o que já de saída faz com que um posicionamento
‘gosto’ ou ‘não gosto’ do Caetano gire no vazio, sem avançar para lado
nenhum) – é importante observarmos que sua “arrogância” configura-se
nesse Vox Populi com diferentes matizes, que vale a pena mencionar. Pois
é bem diferente o tom com que ele se dirige ao público geral, pessoas
que não são jornalistas, assim como seus parentes e amigos. Um tom bem
mais leve, desarmado. E não se trata de nenhuma atitude condescendente,
ao contrário, Caetano responde, discorda, corrige. Ele leva tão a sério
seu interlocutor (símbolo máximo de respeito) que leva um bom tempo
respondendo seriamente à pergunta de uma criança, chegando a reconhecer,
em certo momento, que ‘passou do ponto’ e que o menino pode não
entender. Só que as respostas a esse público são bem mais leves,
respeitosas e claramente afetuosas quando se trata de pessoas realmente
próximas, como Jorge Mautner ou seus pais. Implicância sem sentido com a
imprensa? Note-se, estamos falando da revista Veja, entre outras, que ao que parece não era muito diferente de seu formato atual.
Os jornalistas (nem todos) têm uma
atitude em tudo oposta ao respeito demonstrado por Caetano a seus
interlocutores. Estes não buscam o diálogo, e sim enquadrar, acomodar
sua figura em juízos prévios tidos como críticos, desconsiderando a
complexidade política de sua posição – na medida em que mais a afirmam
conhecer – e, o que é mais triste e irritante para um artista sério e
consciente de seu trabalho, desconsiderando por completo a
especificidade de seu processo artístico. Não seria a verdadeira
arrogância essa condenação sumária sem provas (no caso, sem análise
séria) travestida de juízos políticos/estéticos avançados? Quem é o
verdadeiramente arrogante nesse caso? As fraquíssimas e quase patéticas
considerações estéticas sobre sua obra (os absurdos das acusações de
plágio de Sampa ou a condenação de versos ruins de Caetano que ‘nem eram
dele e nem eram ruins’) mostram que esse jornalismo cultural é quase
criminoso de tão banal, e que Caetano está absolutamente correto ao
enfatizar que sua luta é contra aquele nível de profissional
incompetente e mal intencionado que deveria desaparecer do país.
Contudo, a resposta mal intencionada dos jornalistas a essa cobrança é
relacionar tais críticas absolutamente pertinentes com uma suposta
defesa da ditadura (atacar a imprensa é o mesmo que atacar a ‘liberdade’
democrática) ou uma alienação juvenil, o que dá no mesmo. Ou seja, tais
jornalistas se utilizam de referenciais críticos de esquerda (contra a
ditadura e contra a alienação) para estruturar uma série de equívocos
que, ao final, fazem perversamente com que a crítica “de esquerda”
funcione como a mais clássica distorção ideológica.
Mas
será mesmo que a posição crítica de Caetano está a favor do capitalismo
e dos processos de alienação? É claro que, ao afirmar
(provocadoramente, no momento de maior exaltação), por exemplo, que
gosta de trabalhar na televisão e nas grandes e bem estruturadas
gravadoras, a verdade é, por assim dizer, torcida para a direita ou para
o mercado. Mas ainda aqui, por se tratar de Caetano, é preciso estar
atento e forte, pois a lucidez muitas vezes se traveste de provocação
exaltada e marketing pessoal e, nesse imbróglio, não deixa de
ser verdadeira por sua vez. Pois aqui ele não diz que gosta, sozinho, de
trabalhar com as grandes companhias fonográficas, mas que também Chico
Buarque e outros nomes da MPB, tidos como modelos de artistas críticos
ao capital, também preferem e dependem das condições oferecidas por
essas, o que não deixa de ser óbvio, mas serve de imediato para
problematizar as condições de produção de uma arte de massas que se
vende enquanto crítica do capital. Ainda que possa ser, não o será
adornianamente, e mesmo seu valor pode não estar necessariamente nisso,
ao contrário do que se diz. Além disso, as falas de Caetano estão sempre
‘em situação’, localizadas em um contexto específico que precisa ser
considerado. Estão sempre engajadas em debates bem localizados, assim
como suas canções, daí decorrendo inclusive a dificuldade de se separar
figura pública de trabalho estético, o que não é a menor de suas
qualidades. Voltando à entrevista, é fácil perceber por que Caetano
começa a provocar a esquerda em suas respostas: a face mal intencionada e
mesquinha – porque absolutamente redutora e muito aquém do seu objeto –
dos jornalistas é toda ela travestida de crítica engajada e
desalienante. (“Vocês fingem que são contra os meios de comunicação de
massa”). A estratégia de sobrevivência de Caetano diante dessa
estratégia de acuamento é contra-atacar sem deixar-se fixar. É nesse
sentido que suas respostas “à direita” conseguem tornar-se mais críticas
e desalienantes do que as acusações “à esquerda”. Obviamente que, nesse
caso, as distinções entre direita e esquerda tornam-se vazias (PT/PSDB) em seus próprios termos, obrigando a reconfigurar os mecanismos de apreensão do debate.
Em suma, a pergunta do Geraldo Mairinque
é burra porque não é uma pergunta, mas uma armadilha (o que é bem
esperto, a menos que a vítima seja malandra o suficiente para
contra-atacar, invertendo o jogo) que rebaixa deliberadamente o campo
cultural do qual é um dos representantes. Um rebaixamento crítico de dar
pena e que, da perspectiva de quem está sendo usado e é inteligente o
suficiente para saber o quanto o movimento contém de mesquinharia
travestida de conhecimento, além de lamentar os custos em termos de
paralisia do conhecimento (nosso próprio eclipse da razão), não é fácil
de aguentar. É mais ou menos o que pessoas com inclinações minimamente
progressistas sentem ao ler os artigos do Reinaldo Azevedo, com a
diferença perversa de que, nesse caso, a mesquinharia se realiza em nome
de uma perspectiva de origem progressista, engajada (“Eu não vou
incrementar a burrice porque houve censura durante alguns anos”). É por
isso que a negatividade agressiva de Paulo Arantes (que, a propósito,
não gosta do Caetano, porque junto com outro crítico “mal humorado”
radical sabe que o reino do jeitinho, que é o paraíso em que o
tropicalista fez a cama, é o nome próprio da barbárie com cor local) faz
todo sentido, pois realmente aqui no Brasil parece funcionar um
mecanismo bizarro, bem evidente nessa entrevista, em que os métodos,
discursos, utopias, análises, reflexões e perspectivas da esquerda são o
modo mesmo com que a direita realiza seu projeto. O paradoxo é apenas
aparente, quando se desconsidera o caráter performativo do discurso
ideológico: é plenamente possível e, inclusive, mais racional a esquerda
fundamentar e instrumentalizar a direita que, assim, realiza um
trabalho muito mais bem acabado. Afinal, Marx é o mais perfeito analista
da dinâmica do capital. O PT não
é a prova cabal disso, assim como o cinismo contemporâneo, que nada
mais é do que uma espécie de mundialização das ideias fora do lugar?
O trecho famoso é uma resposta/desabafo
excelente de Caetano, que acabava de falar contra o reducionismo do
‘conceito’ de patrulha ideológica, e dos jornalistas que atribuem a
imagem a ele. Na sequência, entra a pergunta do senhor Mairinque, quase
uma encarnação do estereótipo que o Caetano acabara de criticar. Daí a
bronca, e a pomba-gira baixa no cavalo com força. Mas talvez o trecho
mais significativo para o que estamos discutindo seja outro, a pergunta
feita pelo apresentador, sobre o significado do termo curtir:
“Houve um período bem significativo da história brasileira em que parcelas da juventude brasileira utilizavam o verbo curtir,
que me parece um significado vago, impreciso e que, em alguns grupos
humanos basicamente, exprimiam certo culto a irracionalidade. O que é,
pra você, curtir?”
Essa pergunta é quase que uma
antipergunta em que nada é, efetivamente, perguntado, mas se configura
como um grande enunciado fático que busca encurralar o entrevistado de
modo a confirmar o juízo prévio do entrevistador. O conteúdo manifesto
da questão é sobre o significado do verbo curtir (e Caetano cai
parcialmente nessa armadilha, pois vai responder sobre a ambiguidade
fundamental que sustenta toda gíria, ou seja, responde ao conteúdo
explícito). Mas o seu conteúdo latente, revelado na sequência, tem a
forma de uma armadilha que pretende enquadrar Caetano na categoria dos
alienados que ficavam curtindo enquanto coisas verdadeiramente
importantes – e que o jornalista sabe identificar perfeitamente –
aconteciam no país. O enunciado da questão é o que menos importa nesse
caso, e se expressa como puro jogo de poder.
“Sabe, Caetano [que proximidade é
essa? A do mestre que vai passar uma lição para o pobre e ignorante
pupilo?], me parece que enquanto parcelas significativas da juventude
brasileira curtiam, coisas muito importantes passavam desapercebidas a
essas mesmas parcelas”.
Qual o sentido então de se perguntar para o entrevistado o sentido do verbo curtir,
uma vez que o sentido está muito claro para o próprio entrevistador
(alienação e falsa consciência)? Fica claro que a ideia é mostrar que o
próprio Caetano deixa coisas muito significativas passarem
desapercebidas, enquanto ele próprio se preocupa em curtir, atacando
jornalistas favoráveis à democracia ao invés de atacar o regime militar.
O objetivo da questão é rebaixar o discurso do entrevistado como um
lugar inconsequente e alienado, numa atitude de desprezo e totalmente
avessa ao respeito exigido – e praticado – pelo próprio Caetano, que vai
tentar escapar da armadilha explicitando o lugar de dominação
construído pelo discurso do outro: uma vez que você não está me
perguntando absolutamente nada, me diga claramente o que você acha que
está acontecendo, ao invés de me usar para confirmar seus pressupostos
(há algo de derridiano no gesto de Caetano ou, deveríamos dizer para
sermos provocativos por nossa vez, algo de machadiano). Mas talvez o
pior seja que esse conteúdo único do discurso da imprensa, rebaixado e a
serviço de propósitos mesquinhos, foi fornecido de bandeja pelo
batalhão de ‘marxistas distraídos’ (para usarmos outro termo do Paulo
Arantes): que a juventude da época era alienada (a contrapartida lógica é
que o enunciador obviamente não é), que Caetano era um de seus
representantes, que ideologia é sinônimo de falsa consciência, que o
povo alienado é a causa principal da derrota da esquerda, cuja tarefa
moral é a iluminação das almas, que existem coisas muito mais urgentes e
importantes do que políticas de representação, etc., etc., etc. O que o
radicalismo negativo de Paulo Arantes permite ver é aquilo que ressoa,
como profecia, no famoso discurso de Caetano para o movimento estudantil
da época dos festivais:
“Mas é isso que é a juventude que
diz que quer tomar o poder? […] Mas que juventude é essa? […] Vocês são
iguais a sabe quem? Àqueles que foram a Roda Viva e espancaram os
atores! Vocês não diferem em nada delas, vocês não diferem em nada!” (CAETANO, É proibido proibir)
Quando
essa juventude, enfim, toma o poder, e um intelectual marxista
brasileiro, e não dos piores, realiza integralmente o mesmo projeto dos
militares, o círculo se fecha:
“O ajuste intelectual tucano-petista
é a incorporação da estupidez marxista-progressista ao atual
consentimento coletivo na injustiça e no sofrimento das populações, na
expansão da tolerância com o intolerável, conforme foi se avolumando a
maré sinistra das vulnerabilidades” (ARANTES, P. Fim de jogo)
Paulo Arantes com Caetano Veloso, um
confirmando o outro? Não estaríamos sendo por demais tropicalistas? Sim,
se tropicalismo for entendido como o processo de autoconsciência da
impossibilidade constitutiva do projeto moderno brasileiro de se
realizar, a não ser enquanto barbárie, o que aliás, pode ser bem uma
aposta. Afinal, se Caetano com Paulo Arantes parece ainda meio chocante,
é porque a memória seletiva coloca de canto aquele que é o mais
tropicalista de todos, até o talo, é certo baiano de Irará, que para
certa linhagem crítica distraída é mais fácil de engolir, com coca-cola e
tudo (é só colocar na conta dos desvios de rota que fica tudo certo).
As obras que ilustram este artigo são de Hélio Oiticica (1937-1980).
Fonte: Passa Palavra
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