agosto 19, 2013

"“Você é burro, cara”: sobre a “arrogância” de Caetano Veloso e a mediocridade", por Acauam Oliveira

PICICA: "No Brasil parece funcionar um mecanismo bizarro em que os métodos, discursos, utopias, análises, reflexões e perspectivas da esquerda são o modo mesmo com que a direita realiza seu projeto." 

“Você é burro, cara”: sobre a “arrogância” de Caetano Veloso e a mediocridade

18 de agosto de 2013  


No Brasil parece funcionar um mecanismo bizarro em que os métodos, discursos, utopias, análises, reflexões e perspectivas da esquerda são o modo mesmo com que a direita realiza seu projetoPor Acauam Oliveira

Eis a entrevista de Caetano Veloso no programa Vox Populi, de 1978, de onde saiu aquele trecho que se tornou um meme de sucesso na internet, em que acompanhamos a figura algo andrógena de Caetano, do alto da sua arrogância de pop star, esbravejar ensandecido contra o jornalista da Veja Geraldo Mairinque, que havia feito algumas críticas à postura de Caetano com relação à imprensa. Arrogância destemperada? Sem dúvida, desde que compreendamos bem o quanto dessa arrogância faz parte de um espectro bem mais amplo que envolve a própria relevância do projeto estético do cancionista. Caetano enxerga o mundo e suas contradições a partir de seu próprio umbigo, demonstrando rara capacidade de estabelecer uma espécie de homologia problemática entre experiência subjetiva e processo social. Narcisismo pretensioso? Pode até ser, mas todo mundo que assistiu ao Homem de Ferro sabe que tal postura só se torna problemática quando não funciona. No caso de Caetano, fez dele uma das figuras mais importantes da história da música popular, o personagem decisivo a partir de onde podemos acompanhar, refletidas, suas principais contradições. Diga-se de passagem, é importante lembrar que também Drummond, que nem é dos mais pretensiosos dos nossos poetas, fez do próprio umbigo um lugar privilegiado para estabelecer uma relação de aproximação tensa com o mundo, pensando as contradições de seu tempo por meio do dilaceramento interno, ainda que mais comedido, menos pop e mais mineiro.



E já chega, porque ficar elogiando Caetano Veloso é tão burro quanto criticar Caetano Veloso. É cair como um mané nas armadilhas preparadas formalmente por ele. É entrar no jogo de identificações e classificações arbitrárias (estúpidas por sua vez) em que ele é mestre maior em criticar na medida exata em que dele se aproveita melhor que qualquer outro representante da MPB [Música Popular Brasileira]. Daí a impressão, complexa e insegura, de que os equívocos de Caetano Veloso contêm inúmeros acertos que valem tanto mais a pena que seus acertos por vezes bastante equivocados, de tal maneira que concordar ou discordar de suas ideias é já colocar-se em uma posição absolutamente complicada que necessita ser revista no momento mesmo em que ameaça fixar-se. Forçar essa indeterminação, projetar sua própria indeterminação para o mundo de modo a confundi-la com a própria condição brasileira de ser do sujeito no mundo é o grande talento de Caetano. E como, formalmente, toda canção estrutura-se como um processo de indeterminação formalizado, não é mero acaso o potencial de sua obra.

Feita essa ressalva – de que aquilo que mais “irrita” no Caetano é a condição necessária de realização daquilo que ele tem de melhor (o que já de saída faz com que um posicionamento ‘gosto’ ou ‘não gosto’ do Caetano gire no vazio, sem avançar para lado nenhum) – é importante observarmos que sua “arrogância” configura-se nesse Vox Populi com diferentes matizes, que vale a pena mencionar. Pois é bem diferente o tom com que ele se dirige ao público geral, pessoas que não são jornalistas, assim como seus parentes e amigos. Um tom bem mais leve, desarmado. E não se trata de nenhuma atitude condescendente, ao contrário, Caetano responde, discorda, corrige. Ele leva tão a sério seu interlocutor (símbolo máximo de respeito) que leva um bom tempo respondendo seriamente à pergunta de uma criança, chegando a reconhecer, em certo momento, que ‘passou do ponto’ e que o menino pode não entender. Só que as respostas a esse público são bem mais leves, respeitosas e claramente afetuosas quando se trata de pessoas realmente próximas, como Jorge Mautner ou seus pais. Implicância sem sentido com a imprensa? Note-se, estamos falando da revista Veja, entre outras, que ao que parece não era muito diferente de seu formato atual.

Os jornalistas (nem todos) têm uma atitude em tudo oposta ao respeito demonstrado por Caetano a seus interlocutores. Estes não buscam o diálogo, e sim enquadrar, acomodar sua figura em juízos prévios tidos como críticos, desconsiderando a complexidade política de sua posição – na medida em que mais a afirmam conhecer – e, o que é mais triste e irritante para um artista sério e consciente de seu trabalho, desconsiderando por completo a especificidade de seu processo artístico. Não seria a verdadeira arrogância essa condenação sumária sem provas (no caso, sem análise séria) travestida de juízos políticos/estéticos avançados? Quem é o verdadeiramente arrogante nesse caso? As fraquíssimas e quase patéticas considerações estéticas sobre sua obra (os absurdos das acusações de plágio de Sampa ou a condenação de versos ruins de Caetano que ‘nem eram dele e nem eram ruins’) mostram que esse jornalismo cultural é quase criminoso de tão banal, e que Caetano está absolutamente correto ao enfatizar que sua luta é contra aquele nível de profissional incompetente e mal intencionado que deveria desaparecer do país. Contudo, a resposta mal intencionada dos jornalistas a essa cobrança é relacionar tais críticas absolutamente pertinentes com uma suposta defesa da ditadura (atacar a imprensa é o mesmo que atacar a ‘liberdade’ democrática) ou uma alienação juvenil, o que dá no mesmo. Ou seja, tais jornalistas se utilizam de referenciais críticos de esquerda (contra a ditadura e contra a alienação) para estruturar uma série de equívocos que, ao final, fazem perversamente com que a crítica “de esquerda” funcione como a mais clássica distorção ideológica.

 

Mas será mesmo que a posição crítica de Caetano está a favor do capitalismo e dos processos de alienação? É claro que, ao afirmar (provocadoramente, no momento de maior exaltação), por exemplo, que gosta de trabalhar na televisão e nas grandes e bem estruturadas gravadoras, a verdade é, por assim dizer, torcida para a direita ou para o mercado. Mas ainda aqui, por se tratar de Caetano, é preciso estar atento e forte, pois a lucidez muitas vezes se traveste de provocação exaltada e marketing pessoal e, nesse imbróglio, não deixa de ser verdadeira por sua vez. Pois aqui ele não diz que gosta, sozinho, de trabalhar com as grandes companhias fonográficas, mas que também Chico Buarque e outros nomes da MPB, tidos como modelos de artistas críticos ao capital, também preferem e dependem das condições oferecidas por essas, o que não deixa de ser óbvio, mas serve de imediato para problematizar as condições de produção de uma arte de massas que se vende enquanto crítica do capital. Ainda que possa ser, não o será adornianamente, e mesmo seu valor pode não estar necessariamente nisso, ao contrário do que se diz. Além disso, as falas de Caetano estão sempre ‘em situação’, localizadas em um contexto específico que precisa ser considerado. Estão sempre engajadas em debates bem localizados, assim como suas canções, daí decorrendo inclusive a dificuldade de se separar figura pública de trabalho estético, o que não é a menor de suas qualidades. Voltando à entrevista, é fácil perceber por que Caetano começa a provocar a esquerda em suas respostas: a face mal intencionada e mesquinha – porque absolutamente redutora e muito aquém do seu objeto – dos jornalistas é toda ela travestida de crítica engajada e desalienante. (“Vocês fingem que são contra os meios de comunicação de massa”). A estratégia de sobrevivência de Caetano diante dessa estratégia de acuamento é contra-atacar sem deixar-se fixar. É nesse sentido que suas respostas “à direita” conseguem tornar-se mais críticas e desalienantes do que as acusações “à esquerda”. Obviamente que, nesse caso, as distinções entre direita e esquerda tornam-se vazias (PT/PSDB) em seus próprios termos, obrigando a reconfigurar os mecanismos de apreensão do debate.



Em suma, a pergunta do Geraldo Mairinque é burra porque não é uma pergunta, mas uma armadilha (o que é bem esperto, a menos que a vítima seja malandra o suficiente para contra-atacar, invertendo o jogo) que rebaixa deliberadamente o campo cultural do qual é um dos representantes. Um rebaixamento crítico de dar pena e que, da perspectiva de quem está sendo usado e é inteligente o suficiente para saber o quanto o movimento contém de mesquinharia travestida de conhecimento, além de lamentar os custos em termos de paralisia do conhecimento (nosso próprio eclipse da razão), não é fácil de aguentar. É mais ou menos o que pessoas com inclinações minimamente progressistas sentem ao ler os artigos do Reinaldo Azevedo, com a diferença perversa de que, nesse caso, a mesquinharia se realiza em nome de uma perspectiva de origem progressista, engajada (“Eu não vou incrementar a burrice porque houve censura durante alguns anos”). É por isso que a negatividade agressiva de Paulo Arantes (que, a propósito, não gosta do Caetano, porque junto com outro crítico “mal humorado” radical sabe que o reino do jeitinho, que é o paraíso em que o tropicalista fez a cama, é o nome próprio da barbárie com cor local) faz todo sentido, pois realmente aqui no Brasil parece funcionar um mecanismo bizarro, bem evidente nessa entrevista, em que os métodos, discursos, utopias, análises, reflexões e perspectivas da esquerda são o modo mesmo com que a direita realiza seu projeto. O paradoxo é apenas aparente, quando se desconsidera o caráter performativo do discurso ideológico: é plenamente possível e, inclusive, mais racional a esquerda fundamentar e instrumentalizar a direita que, assim, realiza um trabalho muito mais bem acabado. Afinal, Marx é o mais perfeito analista da dinâmica do capital. O PT não é a prova cabal disso, assim como o cinismo contemporâneo, que nada mais é do que uma espécie de mundialização das ideias fora do lugar?

O trecho famoso é uma resposta/desabafo excelente de Caetano, que acabava de falar contra o reducionismo do ‘conceito’ de patrulha ideológica, e dos jornalistas que atribuem a imagem a ele. Na sequência, entra a pergunta do senhor Mairinque, quase uma encarnação do estereótipo que o Caetano acabara de criticar. Daí a bronca, e a pomba-gira baixa no cavalo com força. Mas talvez o trecho mais significativo para o que estamos discutindo seja outro, a pergunta feita pelo apresentador, sobre o significado do termo curtir:

“Houve um período bem significativo da história brasileira em que parcelas da juventude brasileira utilizavam o verbo curtir, que me parece um significado vago, impreciso e que, em alguns grupos humanos basicamente, exprimiam certo culto a irracionalidade. O que é, pra você, curtir?”

Essa pergunta é quase que uma antipergunta em que nada é, efetivamente, perguntado, mas se configura como um grande enunciado fático que busca encurralar o entrevistado de modo a confirmar o juízo prévio do entrevistador. O conteúdo manifesto da questão é sobre o significado do verbo curtir (e Caetano cai parcialmente nessa armadilha, pois vai responder sobre a ambiguidade fundamental que sustenta toda gíria, ou seja, responde ao conteúdo explícito). Mas o seu conteúdo latente, revelado na sequência, tem a forma de uma armadilha que pretende enquadrar Caetano na categoria dos alienados que ficavam curtindo enquanto coisas verdadeiramente importantes – e que o jornalista sabe identificar perfeitamente – aconteciam no país. O enunciado da questão é o que menos importa nesse caso, e se expressa como puro jogo de poder.

“Sabe, Caetano [que proximidade é essa? A do mestre que vai passar uma lição para o pobre e ignorante pupilo?], me parece que enquanto parcelas significativas da juventude brasileira curtiam, coisas muito importantes passavam desapercebidas a essas mesmas parcelas”.

 

Qual o sentido então de se perguntar para o entrevistado o sentido do verbo curtir, uma vez que o sentido está muito claro para o próprio entrevistador (alienação e falsa consciência)? Fica claro que a ideia é mostrar que o próprio Caetano deixa coisas muito significativas passarem desapercebidas, enquanto ele próprio se preocupa em curtir, atacando jornalistas favoráveis à democracia ao invés de atacar o regime militar. O objetivo da questão é rebaixar o discurso do entrevistado como um lugar inconsequente e alienado, numa atitude de desprezo e totalmente avessa ao respeito exigido – e praticado – pelo próprio Caetano, que vai tentar escapar da armadilha explicitando o lugar de dominação construído pelo discurso do outro: uma vez que você não está me perguntando absolutamente nada, me diga claramente o que você acha que está acontecendo, ao invés de me usar para confirmar seus pressupostos (há algo de derridiano no gesto de Caetano ou, deveríamos dizer para sermos provocativos por nossa vez, algo de machadiano). Mas talvez o pior seja que esse conteúdo único do discurso da imprensa, rebaixado e a serviço de propósitos mesquinhos, foi fornecido de bandeja pelo batalhão de ‘marxistas distraídos’ (para usarmos outro termo do Paulo Arantes): que a juventude da época era alienada (a contrapartida lógica é que o enunciador obviamente não é), que Caetano era um de seus representantes, que ideologia é sinônimo de falsa consciência, que o povo alienado é a causa principal da derrota da esquerda, cuja tarefa moral é a iluminação das almas, que existem coisas muito mais urgentes e importantes do que políticas de representação, etc., etc., etc. O que o radicalismo negativo de Paulo Arantes permite ver é aquilo que ressoa, como profecia, no famoso discurso de Caetano para o movimento estudantil da época dos festivais:

“Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? […] Mas que juventude é essa? […] Vocês são iguais a sabe quem? Àqueles que foram a Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada delas, vocês não diferem em nada!” (CAETANO, É proibido proibir)

 

Quando essa juventude, enfim, toma o poder, e um intelectual marxista brasileiro, e não dos piores, realiza integralmente o mesmo projeto dos militares, o círculo se fecha:

“O ajuste intelectual tucano-petista é a incorporação da estupidez marxista-progressista ao atual consentimento coletivo na injustiça e no sofrimento das populações, na expansão da tolerância com o intolerável, conforme foi se avolumando a maré sinistra das vulnerabilidades” (ARANTES, P. Fim de jogo)

Paulo Arantes com Caetano Veloso, um confirmando o outro? Não estaríamos sendo por demais tropicalistas? Sim, se tropicalismo for entendido como o processo de autoconsciência da impossibilidade constitutiva do projeto moderno brasileiro de se realizar, a não ser enquanto barbárie, o que aliás, pode ser bem uma aposta. Afinal, se Caetano com Paulo Arantes parece ainda meio chocante, é porque a memória seletiva coloca de canto aquele que é o mais tropicalista de todos, até o talo, é certo baiano de Irará, que para certa linhagem crítica distraída é mais fácil de engolir, com coca-cola e tudo (é só colocar na conta dos desvios de rota que fica tudo certo).

As obras que ilustram este artigo são de Hélio Oiticica (1937-1980).

Fonte: Passa Palavra

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