PICICA: A ideologia do pós-rancor a serviço da apropriação dos meios de produção e da alienação dos trabalhadores, segundo Márcio Boaro, diretor da Cia. Ocamorana.
Fora do Eixo ou trabalho colaborativo?
Existem formas de fazer acontecer uma produção cultural coletiva em que as pessoas mantenham seus direitos e sua dignidade
26/08/2013
Márcio Boaro
Existe
uma entrevista de Lula no início dos anos de 1980 onde um dos
entrevistadores pergunta a ele se uma determinada pessoa ligada à
esquerda e com grande renome na política nacional poderia ingressar no
Partido dos Trabalhadores. A resposta de Lula foi que sim, era só a
pessoa procurar o núcleo do partido mais próximo de sua casa, se filiar e
iniciar a militância por este lugar.
Em sua
resposta Lula deixou claro que qualquer brasileiro poderia vir a ser um
dirigente do PT desde que fosse a partir da base. Os anos passaram, o
partido mudou e, após a derrota de 1994, optou por alianças em um campo
político mais à direita.
No início do governo
Lula, o partido tinha 22 anos e havia se formado pela ação de diversas
forças concorrentes. Existia uma grande expectativa sobre o Ministério
da Cultura, e desde o primeiro momento foram criadas iniciativas
importantes, mas não obrigatoriamente coordenadas, iniciativas que, de
certa forma, representavam as forças internas do partido. Entre muitos
exemplos, podemos falar das conferências de cultura ouvindo a população
sobre sua produção cultural, Pontos de Cultura e a Economia Criativa.
Em
2005, estas forças já estavam em debate quando surge o Fora do Eixo.
Sem exagero, podemos dizer que ele é fruto das políticas do MinC. Senão
diretamente, indiretamente surgiu pelas ideias sobre produção cultural
que circulavam pelo país. Afinal, é uma rede (como a Teia dos Pontos de
Cultura) que tem uma proposta criativa de produzir cultura de forma
“sustentável” (como é o indicativo dos partidários da Economia
Criativa). Radicalizaram as políticas ligadas ao mercado com a criação
de uma empresa com atuação agressiva, que tem a criatividade e as
atividades artísticas como motor, mas esquecendo o restante das
políticas do MinC que buscam a democratização.
O
Fora do Eixo tem uma identidade política confusa: se diz apartidário,
tem uma perspectiva de trabalhar coletivamente, mas está ligado somente
ao mercado. Se apropria dos meios de produção e aliena os trabalhadores
de forma mais violenta que os empresários: retira da pessoa a
identificação com o trabalho e até os direitos básicos do trabalhador. A
pessoa que “colabora” não tem seu trabalho reconhecido nem como
criador, nem como trabalhador remunerado.
Por
utilizarem a maioria dos vernáculos da modernidade e utilizarem a
tecnologia, se acham modernos, mas esta “rede” não tem nada de moderna:
se assemelha mais a uma estrutura feudal, onde os integrantes das pontas
são lacaios, sem direito algum, os intermediários vassalos submissos
dos senhores feudais que montaram a rede. Não é exagero. Se esquecermos
as conquistas dos trabalhadores, voltamos para a idade média, mesmo
usando um “Mac Pro”. Para melhor disfarçar seu caráter de exploração de
mão de obra escrava, usa as ideias de "militância" e de "trabalho
voluntário no coletivo".
Existe um outro modelo
que podemos comparar com o Fora do Eixo. Há mais de 30 anos os grupos de
artes cênicas se organizam por todo o país em “coletivos de coletivos”,
ou seja, cooperativas, federações de grupos.
As
formas de trabalho dos grupos podem diferir em detalhes, mas de modo
geral trabalham de forma colaborativa onde as pessoas participam
ativamente do processo criador e têm voz para opinar sobre as produções.
Na maioria dos casos, tendem a um trabalho a longo prazo.
No
caso das organizações que unem diversos grupos, a democracia interna
dos grupos é continuada, é comum os votos serem por grupos. São milhares
de grupos, que têm mais semelhanças do que diferenças, nos quais o
indivíduo recebe pouco (porque as verbas são escassas), mas tem seu
trabalho reconhecido.
Talvez por esta organização
das artes cênicas, o Fora do Eixo não tem grande expressão neste
segmento, da mesma forma que não conseguiu se estruturar na música (o
seu campo de ação mais “forte”) em Pernambuco.
Estes
grupos, apesar de organizados e de serem uma força criativa expressiva,
no geral tem pouco apoio, mas um exemplo a ser seguido são os programas
de fomento da cidade de São Paulo, iniciados com o Fomento ao Teatro, e
continuando com o Fomento à Dança.
Com centenas
de grupos beneficiados, são milhares de pessoas que trabalham e levam
uma produção diferenciada para cidade toda, além de um exercício
contínuo no desenvolvimento de diversas formas e de linguagem. Ou seja,
existem formas de fazer acontecer uma produção cultural coletiva em que
as pessoas mantenham seus direitos e sua dignidade.
Márcio Boaro é diretor da Cia. Ocamorana.
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