agosto 15, 2013

"A internet e o Bloco Negro", por Bruno Cava

PICICA: "Nas jornadas de junho, pressinto que o Bloco Negro tem alguma coisa a ver com o Anonymous, mas é também um prolongamento. Os dois esquemas de organização têm pessoas em comum, a prática do anonimato e mesmo algumas semelhanças visuais. Porém diferem num aspecto. Pode ser que o Bloco Negro seja uma requalificação física e corporal, uma requalificação ditada pelas lutas, do que até agora, a mim pelo menos, parecia ligeiramente oco ou singelo. Mas é mais do que isso.
 O Anonymous perturba a geografia de uma internet onde tudo está já dado, dominado e explorado. Tem uma negatividade em movimento, apesar de certas declarações toscas e alianças duvidosas. O Bloco Negro, além disso, reconstrói com grande determinação uma cartografia. Sua mobilidade, sua insubmissão, sua incrível maleabilidade, o anonimato como forma de viver uma busca e uma perda de si (da identidade, do que o estado fez conosco) — tudo isso remete aos tempos da velha internet. Renovada em barbarismo, e mais forte como resistência à generalização do controle."
 
A internet e o Bloco Negro
 


Navegar na internet está definitivamente em desuso. A própria expressão está desaparecendo. Hoje se entra no Google ou no Facebook, se acessa o e-mail, cada vez menos se “entra na internet”. No começo, era um mundo imensamente desconhecido, imprevisível. Era uma espécie de novo-velho Oeste, povoado por siglas e nomes estranhos: BBS, newsletters, mirc, chat do UOL, hackers, lammers, PC-XTs, opgame, sistema DOS, Lotus 1-2-3…

Vivíamos numa paisagem de John Ford, planícies vastas e horizontes inexplorados, uma terra sem fronteiras que nos cabia percorrer curiosos, à espera de façanhas e tombos. Então numa euforia inocente as pessoas se falavam, se encontravam e se abraçavam. Riam juntas, amavam, gozavam. Tudo parecia possível, nos sentíamos livres, como na célebre tirinha: “Na internet, ninguém sabe que você é um cachorro.” Hoje, quando Google e Facebook praticamente engoliram tudo, redesenharam e codificaram tudo, a internet nunca esteve tão provinciana. Entro no Google e vou direto pra informação que… eu já sabia existir. Entro no Facebook e ele me atualiza com… o que eu já estava mais ou menos esperando, sem maiores descobertas. Até os sites pornôs estão previsíveis.

Meu universo de conhecimento do conhecido aumentou enormemente com Google e Wikipedia, porém meu conhecimento do desconhecido contraiu. A outrora blogosfera selvagem, sua multiplicidade vibrante, por vezes folhetinesca, se reduziu a um punhado de blogues profissionais (“progressistas”, corporativos, megacomerciais…), ao redor do que orbitam blogues-satélites.
Enquanto isso, devemos usar os nomes com que o estado nos reconhece, e o que fazemos é imediatamente registrado. E estamos, em certa medida importante, dependentes de uma empresa multibilionária. Faltam ferramentas para ousar, para ir aonde poucos foram, para viver o imponderável, revivê-lo como noutros tempos.

Contudo, mais do que nostalgia, talvez a higienização e concentração da internet também levem os novos bárbaros à ação. E se essa situação de fechamento da internet não tenha a ver com o ciclo de lutas disparado em 2011?, que culminou nas jornadas de junho no Brasil e continua?

Quando o ditador egípcio derrubou a internet, as pessoas engrossaram a revolução e ele caiu em seguida. No 15-M, as redes sociais turbinaram a organização, mas de nada valeriam sem a ocupação das praças, formulando outro corpo político. Organize online, ocupe offline é o slogan. Para Jodi Dean, o movimento Occupy não teria acontecido se as pessoas não tivessem escolhido pela inconveniência de sair da internet para enfrentar a aspereza de um acampamento urbano. Talvez, não estejamos mesmo “saindo” da internet. Não existe uma “internet” a-histórica, sucessivamente dividida em eras e características. É possível que a estejamos novamente recriando.

A própria internet saiu da internet, no momento em que Facebook e Google tentaram domá-la. Sair de casa e ocupar as ruas não é só um ato político de recusa, mas de reinvenção, de autoconhecimento. Não. Melhor, de “auto-desconhecimento”, um ato de reencontro com o imponderável, um estranhamento deliberado. Para nos libertarmos de todas essas estruturas e mediações parasitando as redes — redes que também somos. Precisamos do imponderável para continuar existindo livres, verdadeiros, místicos. É um grito de ‘go west!’, na melhor tradição beatnik. As ruas e redes não são apenas um único e mesmo espaço, como também um lugar onde eternamente fugimos. É a própria fuga. E se, de repente, a alternativa ao Google e ao Facebook, a todo este processo de controle da internet, não passe por criar ainda outra rede social ou programa de interação?

Não tenho respostas precisas, e minha vivência me confere apenas intuições.

Nas jornadas de junho, pressinto que o Bloco Negro tem alguma coisa a ver com o Anonymous, mas é também um prolongamento. Os dois esquemas de organização têm pessoas em comum, a prática do anonimato e mesmo algumas semelhanças visuais. Porém diferem num aspecto. Pode ser que o Bloco Negro seja uma requalificação física e corporal, uma requalificação ditada pelas lutas, do que até agora, a mim pelo menos, parecia ligeiramente oco ou singelo. Mas é mais do que isso.

O Anonymous perturba a geografia de uma internet onde tudo está já dado, dominado e explorado. Tem uma negatividade em movimento, apesar de certas declarações toscas e alianças duvidosas. O Bloco Negro, além disso, reconstrói com grande determinação uma cartografia. Sua mobilidade, sua insubmissão, sua incrível maleabilidade, o anonimato como forma de viver uma busca e uma perda de si (da identidade, do que o estado fez conosco) — tudo isso remete aos tempos da velha internet. Renovada em barbarismo, e mais forte como resistência à generalização do controle.

É como se o Bloco Negro resgatasse a barbárie libertadora que um dia uma geração pôde experimentar na internet. Não admira que produza frisson, excitando imediatamente os lugares por onde passa, numa compulsão irresistível por zarpar e derivar com eles. Não é só porque se está mais protegido da brutalidade policial — tem também um lado desbravador, uma busca do desconhecido. Estamos novamente navegando, afinal.

Por incrível que pareça, uma resposta ao controle da internet pode estar na ação de grupos que nada tenham a ver com programação ou hacktivismo. A propósito, são as “novas mídias”, seu software e hardware, — e atrás delas toda a velharia comunicacional, — que estão correndo atrás dos Blocos Negros e não o inverso.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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