PICICA: "A
fonte de uma das maiores frustrações (e de aprendizado) dos
especialistas brasileiros no terreno da educação e do trabalho em saúde
foi a evidência de que reformas curriculares não mudam o mercado de
trabalho e que o caminho de ajustar a formação médica às necessidades de
saúde é o inverso. É a mudança do mercado que será capaz de ajustar os
currículos. Se tomarmos a atual conformação do mercado médico
brasileiro, com a deterioração paulatina e consentida do SUS e a
expansão selvagem do sistema suplementar, concluiremos que a formação
médica entre nós decididamente não vai ao encontro das necessidades de
saúde, muito pelo contrário. Não foi por outra razão que os médicos
brasileiros não atenderam ao chamado do “Mais Médicos”. A campanha dos
líderes corporativos contra o programa, nesse sentido, interpreta
corretamente os desejos da maioria dos nossos médicos, em particular os
mais jovens."
Mais Médicos: uma vereda para os nossos grandes sertões
De Reinaldo Guimarães*
O programa “Mais Médicos” está focado na necessidade de colocar médicos onde não há médicos e onde médicos não querem ir. O “Mais Médicos” não está interessado em atender as expectativas da corporação e, principalmente, de seus representantes sindicais.
O “Mais Médicos” não está fazendo competição com o mercado de trabalho dos médicos brasileiros. Antes de importar médicos, houve uma chamada para médicos brasileiros que, lamentavelmente, não prosperou. Em parte, devido a uma feroz campanha contra o programa liderada pelos líderes corporativos sindicais e de vários Conselhos Regionais de Medicina.
Após a frustração da chamada de médicos brasileiros, o programa abriu uma chamada internacional que, apesar de ter atraído médicos de vários países, não logrou ainda atingir as metas estabelecidas pelo Ministério da Saúde. Foi então que, com a interveniência da Organização Panamericana da Saúde, foi assinado o convênio com Cuba.
Se a campanha contra o programa já era feroz, a partir daí os sindicalistas médicos entraram numa escalada de insanidades que atingiu o seu ápice com as declarações do presidente do CRM de Minas Gerais. Disse ele que, caso tenha notícia de algum médico em exercício com diploma obtido no exterior e sem revalidação, acionará o Ministério Público do Trabalho e a Polícia Federal para impedi-lo. Fora de si (imagino eu), disse que orientará os médicos mineiros a não cooperarem com os “sem Revalida” cubanos, caso haja algum pedido de ajuda técnica por parte desses. No meu ponto de vista, caso essa afirmativa de seu presidente seja confirmada, o CRM de Minas está sob suspeição para julgar quaisquer transgressões éticas vindouras, posto que o seu presidente está a instruir os médicos mineiros a discriminar colegas, infringindo o Código de Ética Médica. Este, em seu capítulo I (princípios fundamentais), reza que “A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza” (grifo meu).
Os representantes corporativos esbravejam: sem o Revalida, não dá! Digo eu: se a banca examinadora não quiser, o Dr. Pitanguyou ou Dr. Jatene não serão aprovados num exame para revalidação de diploma. Não é a toa que apenas 10% dos que tentaram revalidar seus diplomas obtidos no exterior, desde a instituição do teste, conseguiram a revalidação. Com o estado de espírito que a maioria dos meus colegas têm apresentado com relação ao “Mais Médicos”, seria uma carnificina.
No dia 23 de agosto, um artigo na Folha de São Paulo dizia que médicos são produzidos em série em Cuba, para exportação. O tom era discretamente derrisório. É verdade, médicos são produzidos em série e esta é, há décadas, a principal ferramenta para a projeção internacional de Cuba. Qual o problema? Há quem exporte soldados e armas e guerras, há quem exporte cocaína e por aí vai. Cuba exporta médicos. Nesse caso, trata-se do que, em diplomacia, se chama soft power. Tão legítimo quanto, por exemplo, a exportação de programas de ajuda realizada há décadas pela agência estatal de cooperação norte-americana USAID.
Cuba produz médicos “em série”, também porque, graças ao bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos e, mais tarde, com o colapso soviético, necessita, para subsistir, de divisas. O exercício do soft power médico contribui também para que entrem divisas em Cuba. Pessoalmente, não me sinto confortável em apoiar que a remuneração de um profissional seja, em parte, apropriada pelo Estado. Mas o meu desconforto diminui quando me dou conta de quase 40% dos meus rendimentos são religiosamente apropriados pelo Estado brasileiro na forma de impostos variados. Parte desses, na fonte, como é o caso dos médicos cubanos que um colunista hidrófobo da revista Veja denominou de “escravos do Partido Comunista cubano”.
Outro comentário lido sobre os médicos cubanos, “produzidos em série”, é que eles não prestam. Sua formação é precária e eivada de ideologia. Não é o que a opinião internacional informada sustenta (tomei como tal o American Journal of Public Health, o Lancet e uma carta publicada em Science) (1)(2)(3). A conclusão do artigo de Cooper et. al. sobre a prevenção e controle das doenças cardiovasculares em Cuba vale a pena ser transcrita: “Where as the social and political structure of societies can under go rapid and dramatic change, such cultural norms as food, music, and religion are sometimes more resilient. The goal of socialist revolutions in poor undeveloped countries has been first and foremost to catch up with the industrial economies of the world. In public health, this has meant almost exclusively the elimination of infectious diseases and the assurance of low death rates in childhood. Cuba stands as the prime example of the unequaled success of the socialist project in achieving that goal. Within that tradition, however, the need to aggressively intervene against engrained cultural patterns, particularly those related to consumption, was something of a foreign idea. A fundamental rethinking of this strategy will be required to take full advantage of the new knowledge in prevention science that could now make an important contribution to the future health of the Cuban people. The improvements in quality and duration of life in Cuba over the last 50 years have been astounding and set the standard for poor countries around the world. These achievements—for example, eliminating polio in 1962, two decades ahead of the United States—are evidence of the remarkable goals Cuba is capable of achieving. Similar leadership in CVD prevention could make enormously valuable contributions to the worldwide campaign to control what has already become the most severe epidemic ever faced by humanity. The Cuban experience thus demonstrates that control of CVD in non industrialized countries is by no means impossible, and it highlights the critical importance of population-based prevention strategies” (4).
Acredito que os médicos cubanos talvez não sejam peritos em “procedimentos” de última geração - nem os realmente úteis, nem os inúteis ou francamente prejudiciais. Entretanto, desconfio que a maior parte dos médicos brasileiros também não seja, embora atualmente talvez almejem sê-lo. Mas os médicos cubanos não estão entre nós como “procedimentólogos”, mas como profissionais no campo da atenção primária (promoção, prevenção e cuidados básicos de saúde). E, nesse terreno, creio que eles têm muito a nos ensinar. Aliás, de acordo com o presidente Barack Obama, têm a ensinar também aos médicos norte-americanos (“U.S. President Barack Obama hasacknowledgedthatthe United Statescouldlearn from Cuba's medical foreign aidprogram”).
A fonte de uma das maiores frustrações (e de aprendizado) dos especialistas brasileiros no terreno da educação e do trabalho em saúde foi a evidência de que reformas curriculares não mudam o mercado de trabalho e que o caminho de ajustar a formação médica às necessidades de saúde é o inverso. É a mudança do mercado que será capaz de ajustar os currículos. Se tomarmos a atual conformação do mercado médico brasileiro, com a deterioração paulatina e consentida do SUS e a expansão selvagem do sistema suplementar, concluiremos que a formação médica entre nós decididamente não vai ao encontro das necessidades de saúde, muito pelo contrário. Não foi por outra razão que os médicos brasileiros não atenderam ao chamado do “Mais Médicos”. A campanha dos líderes corporativos contra o programa, nesse sentido, interpreta corretamente os desejos da maioria dos nossos médicos, em particular os mais jovens.
Esta é a razão da convocação dos médicos estrangeiros e, em particular, dos cubanos que, pelas razões que expressei no início desse texto, parecem estar dispostos a enfrentar os desafios médico-sanitários do Brasil profundo. Pode vir a ser um bom exemplo ao mercado.
Em 1997, uma equipe liderada por Maria Helena Machado concluiu e publicou uma pesquisa sobre os médicos brasileiros. O panorama que nela se vislumbra permanece atual, a despeito de terem se passado 16 anos. A rigor, as tintas com que Machado e sua equipe descrevem a categoria médica brasileira de então devem ser hoje bastante mais carregadas. Uma cópia do livro pode ser encontrada em http://static.scielo.org/scielobooks/bm9qp/pdf/machado-9788575412695.pdf. A leitura desse clássico me parece indispensável para compreender os dilemas dos médicos e seus representantes corporativos frente ao “Mais Médicos”.
Julie Feinsilver é uma socióloga atualmente na American University. Esteve no Brasil como consultora da presidência da Fiocruz em 1996. Nos últimos 20 anos vem estudando a diplomacia médica cubana. Em 2010, publicou um artigo na revista CubanStudies (5) que fornece uma visão abrangente sobre a ação de Cuba nesse terreno durante os primeiros 50 anos da revolução cubana. O centro de sua argumentação se localiza no balanço entre a solidariedade e o pragmatismo como vetores da atuação internacional de Cuba no campo da saúde. Creio ser uma leitura essencial para compreender esse tema e uma cópia de seu trabalho pode ser encontrada em: http://www.academia.edu/1139326/Fifty_Years_of_Cubas_Medical_Diplomacy_From_Idealism_to_Pragmatism.
* - Médico Sanitarista
Notas
(1) Manuel Franco, Richard Cooper, Pedro Orduñez - Making Sure Public Health Policies Work. SCIENCE, Vol 311 www.sciencemag.org. 24 February 2006, p. 1098 (letters).
(2) R. S. Cooper, P. Orduñez, M. D. I. Ferrer, J. L. B. Munoz, A., Espinosa-Brito - Cardiovascular Disease and Associated Risk Factors in Cuba: Prospects for Prevention and Control. http://ajph.aphapublications.org/doi/abs/10.2105/AJPH.2004.051417, Am. J. Public Health 96, 94 (2006).
(3) Wakai S. - Mobilization of Cuban doctors in developing countries. Lancet 2002: 360;92
(4) Tradução: “Onde a estrutura social e política das sociedades pode ser afetada por mudanças rápidas e dramáticas, tais normas culturais como alimentos, música e religião são, por vezes, mais resistentes. O objetivo de revoluções socialistas em países subdesenvolvidos pobres tem acontecido em primeiro lugar para acompanhar as economias industriais do mundo. Na saúde pública, isso significa quase que exclusivamente a eliminação de doenças infecciosas e a garantia de baixas taxas de mortalidade na infância. Cuba permanece como o principal exemplo do sucesso inigualável do projeto socialista em alcançar esse objetivo. Dentro dessa tradição, no entanto, a necessidade de intervir de forma agressiva contra padrões culturais arraigadas, particularmente aqueles relacionados ao consumo, era algo de uma ideia estrangeira. Um repensar fundamental desta estratégia será obrigatório para se tirar o máximo proveito dos novos conhecimentos em ciência de prevenção que poderiam agora fazer uma contribuição importante para o futuro da saúde do povo cubano. As melhorias na qualidade e na duração da vida em Cuba ao longo dos últimos 50 anos têm sido surpreendentes e definem o padrão para os países pobres ao redor do mundo. Estas conquistas, por exemplo, a eliminação da poliomielite em 1962, duas décadas à frente dos Estados Unidos, são a prova dos objetivos notáveis que Cuba é capaz de alcançar. Liderança semelhante na prevenção de doenças cardiovasculares poderia fazer contribuições extremamente valiosas para a campanha mundial para controlar o que já se tornou a epidemia mais grave já enfrentada pela humanidade. A experiência cubana demonstra, portanto, que o controle de doenças cardiovasculares em países não industrializados é absolutamente impossível, e destaca a importância fundamental das estratégias de prevenção baseadas na população".
(5) Julie M. Feinsilver -Fifty Years of Cuba's Medical Diplomacy: From Idealism to Pragmatism. Cuban Studies, Volume 41, 2010, pp. 85-104
Fonte: Cebes
Nenhum comentário:
Postar um comentário