PICICA: "O território não é apenas o resultado
da superposição de um conjunto de sistemas naturais e um conjunto de
sistemas de coisas criadas pelo homem. O território é o chão e mais a
população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer
àquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, da
residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais
ele influi. Quando se fala em território deve-se, pois, de logo,
entender que se está falando em território usado, utilizado por uma dada
população. Um faz o outro, à maneira da célebre frase de Churchill:
primeiro fazemos nossas casas, depois elas nos fazem... A idéia de
tribo, povo, nação e, depois, de Estado nacional decorre dessa relação
tornada profunda (SANTOS, 2002, pg. 97)."
Territórios: velhos e novos paradigmas – um diálogo com Milton Santos |
Escrito por Roberto Malvezzi |
Qui, 15 de Agosto de 2013 |
1) A Questão Se o problema fundiário brasileiro começou com a Lei de Terras de 1850, o problema territorial brasileiro começou com a lei das sesmarias, adaptadas pelo império português à realidade brasileira. Esse debate, que muitas vezes atravessou até o diálogo CIMI e CPT, tem sua razão de ser. Os índios brasileiros tinham seus territórios delimitados e guerreavam quando os limites eram transgredidos por algumas dessas nações. Mas, os primeiros brancos foram muito bem recebidos pelos índios. Nas três primeiras décadas, enquanto prevaleceu o extrativismo do pau-brasil, praticamente a questão territorial não se colocou. O problema começou quando a agricultura e pecuária precisaram do espaço indígena e de sua mão-de-obra escrava:
Em geral, nas três primeiras décadas
de colonização, os brancos se incorporavam às aldeias, totalmente
sujeitos à vontade dos nativos. Mesmo em suas feitorias, os europeus
dependiam de articular alianças com os indígenas, para garantir a
alimentação e segurança.
Posteriormente, quando o processo de colonização promoveu a substituição do extrativismo pela agricultura como principal atividade econômica, o padrão de convivência entre os dois grupos raciais sofreu uma profunda alteração: o índio passou a ser encarado pelo branco como um obstáculo à posse da terra e uma fonte de mão-de-obra barata. A necessidade de terras e de trabalhadores para a lavoura levou os portugueses a promover a expulsão dos índios de seu território, assim como a sua escravização. Assim, a nova sociedade que se erguia no Brasil impunha ao índio uma posição subordinada e dependente (...) Contra essa ordem, a reação indígena assumiu muitas vezes caráter violento, como a guerra dos Tamoios, que se estendeu por três anos, a partir de 1560. Incentivados por invasores franceses estabelecidos na Baía da Guanabara, vários grupos desses índios uniram-se numa confederação para enfrentar os portugueses, ao longo do litoral entre os atuais estados do Rio de Janeiro e São Paulo. A atuação dos jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta resultou num acordo de paz, realizado em Iperoígue, uma aldeia situada onde hoje se localizam os municípios paulistas de São Sebastião e Ubatuba (...) Outra possibilidade de reação indígena ao avanço português era a submissão, assumida sob a condição de "aliados" ou escravos. Essa forma de convivência "pacífica" foi obtida particularmente graças ao trabalho dos padres missionários que, promovendo a cristianização dos índios, combatiam sua cultura e tradições religiosas, além de redistribuí-los territorialmente, em geral de acordo com os interesses dos colonizadores (...) Finalmente, para preservar a unidade e a integridade de seu modo de vida, os índios optaram também pela migração para as áreas interioranas, cujo acesso difícil tornava o contato com o branco improvável ou impossibilitava a este exercer seu domínio. Essa alternativa, porém, teve um preço alto para as tribos (Olivieri, 2005). Canudos, Caldeirão, Contestado, a ocupação dos Sem Terra, indicam essa luta das camadas marginalizadas da sociedade para ocupar um lugar ao sol, um lugar no solo, isto é, construir um território, espaço de trabalho e de vida. É o nosso pecado original, que ainda não alcançou sua redenção. No mundo globalizado ele reaparece, de forma contundente, embora muitas vezes os atores de hoje sejam os mesmos de 500 anos atrás, particularmente quando se fala nas vítimas das agressões territoriais. Hoje o conceito de território é dinâmico, pode ser ampliado, modificado, recriado, inventado, como é o caso do Território da Cidadania. Pode ser terrestre, aquático e aéreo. Pode ser real e virtual, como um “sítio” na internet. Com o aquecimento global, muitos territórios podem ser eliminados (ilhas), outros podem surgir, como é o caso do Alaska que está sob o gelo. O Aquecimento Global pode ainda tornar inabitável vastas regiões do planeta, com é o caso de várias áreas do semiárido. Até a própria dinâmica geológica pode forçar o surgimento de outros territórios, como é o caso da separação em andamento do território da Etiópia do continente Africano pela ruptura da placa tectônica. A União Européia inaugurou um novo tipo de território, o do Euro, com uma série de implicações para a circulação de bens, moeda e pessoas naquele espaço. Na América Latina, o Mercosul é um território de circulação de bens, enquanto na Alba se fala na integração latino-americana para além do econômico. Portanto, o capital “cria” os territórios de seus interesses, disputa os territórios das comunidades tradicionais que abrigam riquezas que lhes interessa, expropria as populações que antes eram senhoras daquele território. Porém, a lógica da solidariedade não foi eliminada nos povos ancestrais. No Congresso da CPT, um participante vestia uma camiseta com a seguinte frase: “o território é uma jaula que o ser humano inventou para si mesmo”. Mas, será possível viver sem território, ou transformar a Terra num território que seja realmente livre para o trânsito de toda a humanidade? É possível, ou mesmo inevitável, a tal governança mundial para enfrentar os desafios planetários? Ou será que a saída é forjar os próprios territórios, ou delimitá-los por conta própria, como o fazem as populações geraizeiras de Minas e da Colômbia? Dá para conviver um com o outro? Por outro lado, a luta dos quilombolas, indígenas e comunidades tradicionais traz a defesa de seus territórios ancestrais, com os quais a CPT comunga. Por isso, para José de Sousa Martins, a CPT é uma entidade conservadora, que visa preservar formas de vida que não correspondem aos tempos modernos. Então, que sentido faz ainda hoje debater sobre o território? Talvez esse texto sacado de uma matéria publicada no jornal Estado de São Paulo ajude a pôr mais lenha nessa fogueira. Defendendo seus interesses, ruralistas afirmam que os territórios indígenas brasileiros representam uma ameaça maior à soberania nacional que o próprio aluguel ou venda de terras a estrangeiros. É uma pérola não só do cinismo do setor, mas, particularmente, da entrega total dos seus negócios ao mundo globalizado.
O argumento parte do cálculo de que
os territórios indígenas somam mais de 1 milhão de quilômetros
quadrados, enquanto os estrangeiros deteriam 43 mil quilômetros
quadrados, levando em conta dados oficiais que a própria nota técnica
reconhece como "subestimados". "Levando-se em consideração que 12,2% do
território brasileiro são ocupados por áreas indígenas (mais de 107
milhões de hectares atualmente), que, se implementadas as áreas em
estudo, esse total passará de 20% e que apenas 0,5% (ainda que
subestimados) sejam ocupados por estrangeiros, o que pode ser
considerada uma ameaça maior à soberania: terras indígenas ou terras de
propriedades de estrangeiros?", diz o relatório (SALOMON, 2011).
2) Diálogo com Milton Santos Nesse contexto, é impossível falar de territórios sem dialogar com Milton Santos. Então, vamos fazer dele o principal interlocutor desse diálogo. Retomemos o conceito que ele dá ao território:
O território não é apenas o resultado
da superposição de um conjunto de sistemas naturais e um conjunto de
sistemas de coisas criadas pelo homem. O território é o chão e mais a
população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer
àquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, da
residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais
ele influi. Quando se fala em território deve-se, pois, de logo,
entender que se está falando em território usado, utilizado por uma dada
população. Um faz o outro, à maneira da célebre frase de Churchill:
primeiro fazemos nossas casas, depois elas nos fazem... A idéia de
tribo, povo, nação e, depois, de Estado nacional decorre dessa relação
tornada profunda (SANTOS, 2002, pg. 97).
O território sempre foi mais que o espaço que disponibiliza recursos, mas onde a vida de um povo acontece, gerando uma identidade única e indissolúvel. Acontece que o território vem sendo transformado. Para Milton Santos o fator decisivo é a globalização. Então, todo seu discurso que segue vem no sentido de compreender hoje o território sob o signo da globalização.
No mundo da globalização, o espaço
geográfico ganha novos contornos, novas características, novas
definições. E, também, uma nova importância, porque a eficácia das ações
está estreitamente relacionada com a sua localização. Os atores mais
poderosos se reservam os melhores pedaços do território e deixam o resto
para os outros (Idem, pg.79).
A política de compra ou aluguel do território brasileiro para estrangeiros, a invasão dos territórios indígenas e quilombolas, indo do Xingu, passando pelos Truká e Pipipã na transposição, chegando ao caso TIPNIS na Bolívia, com o financiamento do BNDES, passa por essa lógica de reconfiguração do território em função dos interesses do capital. Essa re-espacialização do território gera consequências rotineiras tão bem conhecidas pela CPT, particularmente a violência e a desterritorialização das populações ancestrais. Gera também esse conflito permanente entre os que ocupam o espaço dado como vazio – desde a época militar o “terra sem gente para gente sem terra” , até os dias atuais da ocupação total do campo pelas empresas do agro e hidronegócio, bancados pelo Estado e governo de plantão. Santos vai falar, então, de umas das piores consequências, a fragmentação do território, portanto, das populações e seu modus vivendi:
Os territórios tendem a uma
compartimentação generalizada, onde se associam e se chocam o movimento
geral da sociedade planetária e o movimento particular de cada fração,
regional ou local, da sociedade nacional (Ibidem, pg. 80).
No Brasil o principal agente dessa
invasão territorial do capital é a agricultura tecnificada do campo. Ela
obedece a uma lógica global, a instrumentos globais, regidos não mais
por interesses nacionais, mas pelos interesses corporativos das
empresas. Por isso, faz sentido a afirmação dos pensadores do
agronegócio atribuindo aos indígenas uma ameaça maior à soberania
nacional que a compra de terras pelos estrangeiros:
...A agricultura moderna,
cientifizada e mundializada, tal como se desenvolve em países como o
Brasil, constitui um exemplo dessa tendência e um dado essencial ao
entendimento do que no país constituem a compartimentação e a
fragmentação atuais do território (Ibidem, pg. 80).
E continua:
Cada empresa, porém, utiliza o
território em função dos seus fins próprios e exclusivamente em função
desses fins. As empresas apenas têm olhos para os seus próprios
objetivos e são cegas para tudo o mais. Desse modo, quanto mais
racionais forem as regras de sua ação individual tanto menos tais regras
serão respeitosas do entorno econômico, social, político, cultural,
moral ou geográfico, funcionando, as mais das vezes, como um elemento de
perturbação e mesmo de desordem. Nesse movimento, tudo que existia
anteriormente à instalação dessas empresas hegemônicas é convidado a
adaptar-se às suas formas de ser e de agir, mesmo que provoque, no
entorno preexistente, grandes distorções, inclusive a quebra da
solidariedade social {...}
Pode-se dizer então que, em última
análise, a competitividade acaba por destroçar as antigas
solidariedades, frequentemente horizontais, e por impor uma
solidariedade vertical, cujo epicentro é a empresa hegemônica,
localmente obediente a interesses globais mais poderosos e, desse modo,
indiferente ao entorno (Ibidem, pg. 85).
Talvez esse texto mereça uma consideração especial, porque a competitividade quebra a alma das populações, seus valores, sua cultura. Muitas vezes fazemos esforço de preservação das culturas, mesmo quando elas estão sendo invadidas. Há, portanto, no território também uma dimensão subjetiva, também agredida, também saqueada. Talvez a subjetividade seja o último reduto do território. Muitas das chamadas “nações ressurgidas” só sobreviveram porque, mesmo desterritorializadas, mantiveram o território da alma preservado. Numa conversa com a cacique Lucélia Pankará (PE), ela dizia que seu povo ainda tem mais de cinco mil pessoas. Perguntei como sabia. Ela disse que eles mantêm contatos, se conhecem, sabem onde moram. Ângelo, do CIMI de Pernambuco, disse que há prédios em São Paulo cujos apartamentos são habitados apenas por Pankará. Portanto, construíram seu território em área urbana, num edifício. Conseguiram a quadra em uma determinada época do ano para realizar seus rituais. Portanto, a ação de fragmentação do capital pode encontrar limites, ainda que sejam subjetivos. Mas nem essa defesa é fácil de ser alimentada:
A palavra fragmentação impõe-se com
toda a força porque, nas condições acima descritas, não há regulação
possível ou esta apenas consagra alguns atores e estes, enquanto
produzem uma ordem em causa própria, criam, paralelamente, desordem para
tudo o mais. Como essa ordem desordeira é global, inerente ao próprio
processo produtivo da globalização atual, ela não tem limites; mas não
tem limites porque também não tem finalidades e, desse modo, nenhuma
regulação é possível, porque não desejada. Esse novo poder das grandes
empresas, cegamente exercido, é, por natureza, desagregador, excludente,
fragmentador, sequestrando a autonomia ao resto dos atores (Ibidem, pg.
86).
Por fim, nessa luta titânica, histórica, por territórios, nesse conflito que atravessa a própria história humana, vale realçar o papel da agricultura, o ponto focal da CPT ao abordar essa questão:
Desde o princípio dos tempos a
agricultura comparece como uma atividade reveladora das relações
profundas entre as sociedades humanas e o seu entorno. No começo da
história tais relações eram, a bem dizer, entre os grupos humanos e a
natureza (...)
Podemos agora falar de uma
agricultura científica globalizada. Quando a produção agrícola tem uma
referência planetária, ela recebe influências daquelas mesmas leis que
regem os outros aspectos da produção econômica (Ibidem, pg. 88).
Poderíamos questionar a agricultura moderna no seu papel predador, devoradora do meio ambiente, das águas, dos solos, da biodiversidade. Mas não é esse o caso agora. Falamos de seu papel socialmente predador. Portanto, em meio a tantos desafios, temos que assumir o caráter dinâmico dos territórios e qual é nosso “que fazer” – como dizia Paulo Freire – nesse momento da história. Nessa questão, as vitórias nunca são definitivas, nem as derrotas. Os territórios continuarão a ser disputados, conforme a configuração do momento histórico, com seu diversificado jogo de interesses, agora em caráter planetário. Referências Bibliográficas. OLIVIERI, Antônio Carlos. Índios: o Brasil antes do descobrimento. Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia-brasil/indios-o-brasil-antes-do-descobrimento.htm > Acesso em: 12/08/2013. SALOMON, Marta. Terra indígena é ameaça, diz Câmara. Disponível em: <http://www.google.com.br/#bav=on.2,or.r_qf.&fp=a4482666f37b6f0b&q=Marta+salomon+terra+ind%C3%ADgena+%C3%A9+amea%C3%A7a > Acesso em: 12/08/2013 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6ª Ed. Rio de Janeiro. Record, 2001. Roberto Malvezzi (Gogó) possui formação em Filosofia, Teologia e Estudos Sociais. Atua na Equipe CPP/CPT do São Francisco. |
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