PICICA: "As manifestações massivas em junho
último, impulsionadas pela luta contra o aumento da tarifa de transporte
público em diversas cidades, fenômeno que não víamos há décadas,
trouxeram à luz como a grande maioria dos setores da esquerda –
partidos, sindicatos e movimentos sociais – continua avessa à realização
de qualquer autocrítica em relação às suas estratégias de luta. Sob o
fantasma do avanço das forças conservadoras, a maioria das organizações
com histórico inegável de mobilização e luta optou claramente por fincar
os pés onde já estão há uma década: articuladas em torno do governo,
dando sustentação e perpetuando as mesmas práticas de luta
institucional, por dentro do Estado, em detrimento da autonomia e
independência de classe.
E são justamente essas práticas que
escancararam, nessa conjuntura de levante popular, em que a população se
dispôs a ir para a rua em torno de demandas concretas e que dizem
respeito aos interesses dos setores populares, quão distanciadas essas
organizações estão da população. A opção de, a partir da eleição de
2002, não enxergar o Estado mais como antagonista, mas de fazer a “luta”
na institucionalidade, inclusive cogerindo com o governo políticas
públicas, tornando-se em grande medida parceiros na administração do
Estado neoliberal, foi sem dúvida o que tirou as organizações das ruas,
do confronto, da preocupação com a mobilização de setores
desorganizados.
Esse recuo, que na boca de muitos
dirigentes se justificava por uma análise conjuntural estruturalista de
que estaríamos em uma conjuntura de descenso da luta de massas, muito
enfraquecida para a articulação de qualquer ofensiva, mostra agora o seu
rosto político. Um instrumento de justificação da apatia intencional
das organizações e de sua aliança com o governo."
As organizações hegemonizadas pelo governismo: cada vez mais governistas?
8 de agosto de 2013
As organizações optaram por defender o que o governo entende que devem ser as reivindicações da população. Por Michel Navarro
As manifestações massivas em junho
último, impulsionadas pela luta contra o aumento da tarifa de transporte
público em diversas cidades, fenômeno que não víamos há décadas,
trouxeram à luz como a grande maioria dos setores da esquerda –
partidos, sindicatos e movimentos sociais – continua avessa à realização
de qualquer autocrítica em relação às suas estratégias de luta. Sob o
fantasma do avanço das forças conservadoras, a maioria das organizações
com histórico inegável de mobilização e luta optou claramente por fincar
os pés onde já estão há uma década: articuladas em torno do governo,
dando sustentação e perpetuando as mesmas práticas de luta
institucional, por dentro do Estado, em detrimento da autonomia e
independência de classe.
E são justamente essas práticas que
escancararam, nessa conjuntura de levante popular, em que a população se
dispôs a ir para a rua em torno de demandas concretas e que dizem
respeito aos interesses dos setores populares, quão distanciadas essas
organizações estão da população. A opção de, a partir da eleição de
2002, não enxergar o Estado mais como antagonista, mas de fazer a “luta”
na institucionalidade, inclusive cogerindo com o governo políticas
públicas, tornando-se em grande medida parceiros na administração do
Estado neoliberal, foi sem dúvida o que tirou as organizações das ruas,
do confronto, da preocupação com a mobilização de setores
desorganizados.
Esse recuo, que na boca de muitos
dirigentes se justificava por uma análise conjuntural estruturalista de
que estaríamos em uma conjuntura de descenso da luta de massas, muito
enfraquecida para a articulação de qualquer ofensiva, mostra agora o seu
rosto político. Um instrumento de justificação da apatia intencional
das organizações e de sua aliança com o governo.
Com a tentativa dos setores da direita,
via seu partido político – a grande mídia – de disputar o sentido das
manifestações, e conseguindo colocar pautas nas manifestações, em
especial em torno do nacionalismo e do discurso anticorrupção, as
organizações recorreram às suas engessadas categorias para explicar as
razões dessa suposta “guinada à direita”. Isso teria ocorrido porque
faltou uma direção forte nas ruas, que pudesse colocar para a população
as pautas de interesse histórico da classe trabalhadora e que
conseguisse dirigir o processo, evitando, assim, que a direita se
apropriasse dos corações e mentes de quem estava nas ruas.
Essa justificativa para mim é de longe a
principal evidência da total falta de autocrítica da esquerda próxima
ao governo. A incapacidade ou falta de vontade de reconhecer que a
tirada de pé da maioria das organizações de esquerda nesses últimos 10
anos contribuiu em muito para a falta de referência da população nas
ruas e para a dificuldade dos movimentos conseguirem dialogar com a
população e propor pautas.
A maioria da população não reconhece
movimentos e partidos como representantes das suas demandas e
aspirações. E isso se deve muito mais a uma burocratização e
institucionalização dos instrumentos de luta da classe do que a uma
suposta manipulação midiática somada à ausência de uma organização forte
dirigindo a luta das massas. Esse distanciamento atual das organizações
em relação à população gera muitas consequências negativas. E, sem
dúvida, a mais danosa nas jornadas de junho foi a facilidade com que a
mídia burguesa conseguiu influir nas manifestações com o discurso
anticorrupção.
Em vez da autocrítica, sempre
fundamental em momentos em que a população se mostra bem mais
radicalizada do que as organizações que dizem representá-las, as
organizações ficaram quase que circunscritas a um ataque, algumas por
ignorância, mas outras por má-fé, à estrutura organizativa horizontal do
Movimento Passe Livre (MPL). Como se bastasse, em junho, uma
organização altamente centralizada chamando os atos para impulsionar as
massas à esquerda.
A conjuntura atual derruba a leitura do
descenso, e as próprias organizações que a sustentavam reconhecem isso.
Mas nem mesmo esse novo horizonte, propício, embora ainda com muitas
indefinições, para a construção de uma ofensiva dos setores populares
organizados, fez com que até mesmo organizações que em teoria se
afirmavam independentes saíssem das asas do governo.
Agora seria o momento, visto que novamente a população está disposta a lutar, das organizações romperem definitivamente com o PT
e darem um pontapé inicial, junto com outros movimentos que saíram da
órbita governista ou que nela nunca estiveram, para a reconstrução de
uma alternativa de autonomia e independência de classe, fora da
institucionalidade. Falo aqui de começar a construir poder popular.
Contudo, o que vem ocorrendo é o
inverso. Tem havido uma articulação ainda mais forte entre as
organizações cooptadas e pouca vontade de construção de uma alternativa à
esquerda e por fora do governo. Tais organizações têm inclusive saído
às ruas com o PT e continuam entendendo que devem se articular com tendências do partido, não dando sinais de questionamento desta estratégia.
O setor governista vem concentrando sua
atenção em sustentar publicamente a defesa de pautas postas pelo
governo, como o caso da reforma política. Pauta colocada com força
depois da reunião que essas organizações tiveram com Dilma. Embora
saibamos que ela já foi bloqueada e praticamente arquivada pelo setor de
sustentação do governo no Congresso e que, ainda que seja uma pauta
importante e justa, tira a atenção das questões cruciais que levaram a
população para a rua, e que são muito mais de fundo e vinculadas
cotidianamente com a realidade da população, como precarização e
encarecimento do transporte público, reforma urbana e rural,
sucateamentos da saúde e educação públicas. Ou seja, as organizações
optaram por defender o que o governo entende que devem ser as
reivindicações da população. O foco na reforma política não está em
sintonia com as aspirações vindas das ruas. E tamanha é a aposta de
dirigentes nessa pauta sugerida pelo governo, que já há quem defenda que
qualquer reforma estrutural no Brasil só será possível após a
efetivação de uma reforma política. Como quem diz, com ironia: “por ora,
vamos mais uma vez adiar a luta por reforma agrária, reforma urbana,
etc., e concentremos nossas forças na reforma política, conseguindo
assinaturas, e depois vamos para Brasília apresentar nossa concordância
com a sugestão vinda do governo. Aí sim, só então pensemos em retomar as
pautas históricas que são as bandeiras de muitos movimentos, inclusive
dos nossos”.
Outro fator que mostra a indisposição
dessas organizações em construir ação direta, se distanciar da
institucionalidade, organizar o povo nas ruas, é o coro que muitas delas
vêm fazendo com a direita, no sentido de criminalizar qualquer ação
mais radicalizada nas ruas, encampando o discurso moralizador do “sem
violência” e “sem vandalismo”. Para além do fato confirmado
historicamente de que avanços sociais são impulsionados pela ação das
massas e força das revoltas, não esqueçamos que essas conquistas
decorreram na sua esmagadora maioria de ações diretas resultantes de uma
ampla organização, estimulada por sindicatos, movimentos e partidos
inseridos na luta e dispostos a exercer pressões pela ação direta.
Mas o problema crucial no Brasil agora é
justamente a sistemática renúncia da maioria das organizações de
esquerda a adotarem práticas mais radicalizadas, assumirem o ônus e
organizarem o povo para as pressões das ruas. Dispostas a assumirem
riscos, é disso que estou falando. E o que acaba restando são os Black Blocs, cuja radicalidade é criminalizada tanto pela imprensa burguesa quanto pelos partidos de esquerda e sindicatos.
E aí, fica-se nessa, setores da esquerda
e a direita dando as mãos em discurso uníssono e moralizante contra “a
violência”, sem que se abram espaços de discussões e críticas no campo
da estratégia e tática a determinadas ações dos Black Blocs ou a
ações de enfrentamento tocadas por outros grupos e organizações. Já que
essa esquerda que “moraliza” não propõe nem quer fazer ação direta.
Em tempos de ação direta e protagonismo
popular, tais organizações continuam sustentando os passeios em avenidas
e praças públicas, reproduzindo a lógica de suas práticas do “tempo do
descenso” e criminalizando a população que, em explosão de revolta,
responde com coragem e enfrentamento à violência estrutural da polícia e
do Estado; essa mesma população que, com a sua radicalidade, forçou
governos de diversas cidades a baixar o exorbitante preço das tarifas de
transporte público.
Em vista da indisposição dessas
organizações em romper com o governo e contribuir para impulsionar as
lutas nas ruas, fica a pergunta que não quer calar: ainda é possível
esperar delas uma participação na construção de uma nova estratégia
para a esquerda brasileira, quando mesmo numa conjuntura a favor elas se
eximem de acertar ou errar com o povo?
Nota sobre o autor
Michel Navarro é militante da Organização Anarquista Socialista Libertária (OASL).
A seleção das ilustrações é da responsabilidade do Passa Palavra.
Fonte: Passa Palavra
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