agosto 11, 2013

"O garoto selvagem de François Truffaut", por Leandro Calbente

PICICA: "O filme de Truffaut, ao reconstruir o relato das experiências de Itard, descortina a gênese de um dos sonhos pedagógicos mais fortes da modernidade, qual seja, o da disseminação irrestrita de uma determinada lógica de pensamento, alcançando até mesmo aqueles seres que pareciam nas franjas mais distantes de qualquer processo de humanização. É como se os gestos de Itard revelassem uma forma de enxergar o pensamento humano, ou melhor, da própria antropologia ocidental, como a expressão de ideias numa lógica linear, sucessiva e ordenada segundo a fala, portanto, logocêntrica. E o distanciamento dessa ordem não era apenas indesejável, mas impensável. Aquele que não pensa segundo uma gramática fonética não poderia ser um humano, mas sim uma fera ou um autômato. A humanização é fruto de uma condução do pensamento até o ponto da gramática mesma, da palavra bem ordenada. O ingresso na ordem logocêntrica é também o ingresso na ordem humana. E este gesto é possibilitado pela ação de um soberano, de alguém que dirige e comanda, que exerce um poder e uma autoridade. O próprio do humano é decidido pela ação desse governo, da caridade de alguém que assume a missão de governar para dentro da ordem social aqueles que estavam para fora."

garoto selvagem

Encontramos uma formidável reflexão sobre as relações entre linguagem, poder e humanização em O garoto selvagem, do diretor François Truffaut. O filme acompanha os experimentos do médico francês Jean Marc Gaspard Itard com o garoto selvagem Victor de l’Aveyron, encontrado e capturado numa floresta francesa em 1800. O garoto, que tinha por volta de 10 anos, foi levado para o Instituto dos Surdos-Mudos, onde foi deixado sob os cuidados de Itard. O médico, que já vinha tentando tratar da surdez e desenvolver técnicas de oralização e terapias da fala, assumiu a responsabilidade de ensinar Victor a se comunicar e a viver em sociedade. O garoto não possuía nenhuma capacidade comunicativa considerada normal, não respondendo aos apelos sonoros ou a comandos físicos, também não respondia a nenhum constrangimento social, comportando-se de forma violenta e arredia. Por isso, Itard considerou adequado experimentar no garoto suas teorias sobre o aprendizado da linguagem e sobre o desenvolvimento cognitivo de indivíduos isolados do convívio social pela ausência de comunicação, tal qual ele imaginava viver também os surdos não-instruídos.

Nesse sentido, Truffaut faz um recorte muito preciso das relações de Itard com Victor, explorando basicamente os exercícios realizados para estimular os sentidos do garoto e desenvolver suas capacidades comunicativas, tanto por meio de comandos orais, quanto por exercícios de alfabetização e utilização de imagens significativas. O processo árduo de entendimento entre Itard e a criança selvagem é marcado pela utilização de gestos mecânicos e repetitivos e por meio de um rígido sistema de punições e recompensas. Tarefas bem executadas, por exemplo, resultavam em pequenas recompensas, um copo de água ou de leite. Já o erro ou a recusa em realizar uma determinada tarefa trazia a punição, em especial o castigo de ficar trancado num armário escuro. Por trás desse sistema, desvela-se um processo que enxerga o desenvolvimento da linguagem como um dispositivo de domesticação do ser-selvagem do garoto.

O objetivo de Itard não é apenas que o garoto repita maquinalmente seus exercícios, mas sim que estes sirvam como um motor para a humanização de Victor. E humanização, aqui, tem dois sentidos correlatos: de um lado, humanizar é propiciar o desenvolvimento do que é o próprio do humano, a fala e a compreensão da lógica fonética das palavras; do outro lado, é necessário também que seja introduzido no espírito selvagem do garoto a ordem moral (certo/errado, justo/injusto) que estrutura o mundo civilizado, convertendo-o num homem moral. Esses dois elementos aparecem em correlação nos exercícios propostos por Itard, na medida em que ele entendia só ser possível interiorizar os valores morais a partir do movimento prévio de desenvolvimento da fala no garoto.

A proposta executada por Itard de privilegiar a fala era também uma recusa na utilização de outro método pedagógico defendido no mesmo período, a educação por meio da língua de sinais. Esse tema aparece apenas sutilmente no filme em duas passagens, quando Itard discute com um colega sobre a inconveniência de manter o garoto na Instituição dos Surdos-Mudos, mas também quando ele menciona a utilização da “linguagem de ação” (uma das denominações utilizadas para nomear as línguas de sinais) por Victor. Nesse caso, não basta qualquer sistema lingüístico de comunicação para separar o homem das feras, mas é necessário que este tenha um caráter fonético, é a fala que humaniza e moraliza o homem. Como nos lembra Derrida, a liberação das mãos, uma certa liberdade da mão, é considerado o acesso ao que é próprio do homem e é um momento essencial na humanização das criaturas vivas. É por isso que Itard não quer apenas que o garoto sinalize pelo leite, mas peça pelo leite, fale que quer o leite.

E esse processo advém de uma rotina disciplinar muito característica, que sistematiza um esquema de vigilância e punição para docilizar o comportamento selvagem, domesticando a potência dos gestos em favor da lógica da razão e do ordenamento da fala. O projeto de Itard, nesse sentido, não era muito diferente daquele realizado por seus contemporâneos (ainda que por outros meios) e o garoto selvagem ocupa uma posição semelhante ao das crianças surdas que eram educadas no Instituto. Elas também eram vistas como selvagens na medida em que se mantinham sem educação formal e apenas o ingresso na instituição possibilitava o abandono dessa condição. E ainda que o instrumento pedagógico utilizado fosse a língua de sinais, esta não deixava de ser um meio para se atingir a perfeição da razão, a língua fonética escrita.

O filme de Truffaut, ao reconstruir o relato das experiências de Itard, descortina a gênese de um dos sonhos pedagógicos mais fortes da modernidade, qual seja, o da disseminação irrestrita de uma determinada lógica de pensamento, alcançando até mesmo aqueles seres que pareciam nas franjas mais distantes de qualquer processo de humanização. É como se os gestos de Itard revelassem uma forma de enxergar o pensamento humano, ou melhor, da própria antropologia ocidental, como a expressão de ideias numa lógica linear, sucessiva e ordenada segundo a fala, portanto, logocêntrica. E o distanciamento dessa ordem não era apenas indesejável, mas impensável. Aquele que não pensa segundo uma gramática fonética não poderia ser um humano, mas sim uma fera ou um autômato. A humanização é fruto de uma condução do pensamento até o ponto da gramática mesma, da palavra bem ordenada. O ingresso na ordem logocêntrica é também o ingresso na ordem humana. E este gesto é possibilitado pela ação de um soberano, de alguém que dirige e comanda, que exerce um poder e uma autoridade. O próprio do humano é decidido pela ação desse governo, da caridade de alguém que assume a missão de governar para dentro da ordem social aqueles que estavam para fora.

E curiosamente, o movimento final do filme é uma trágica reflexão sobre o poder desse instrumento antropotécnico. O garoto selvagem foge dos cuidados de Itard, como se pudesse retornar a uma posição prévia, não-reprimida. Porém, ele não tarda a retornar. E Itard, que já enxergava o fracasso de seu projeto, pode dar continuidade a seus exercícios. O humano já fora introduzido no garoto, agora cabe lhe educar para transformá-lo plenamente num homem.

Fonte: Ensaios Ababelados

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