PICICA: "O filme de Truffaut, ao reconstruir o
relato das experiências de Itard, descortina a gênese de um dos sonhos
pedagógicos mais fortes da modernidade, qual seja, o da disseminação
irrestrita de uma determinada lógica de pensamento, alcançando até mesmo
aqueles seres que pareciam nas franjas mais distantes de qualquer
processo de humanização. É como se os gestos de Itard revelassem uma
forma de enxergar o pensamento humano, ou melhor, da própria
antropologia ocidental, como a expressão de ideias numa lógica linear,
sucessiva e ordenada segundo a fala, portanto, logocêntrica. E o
distanciamento dessa ordem não era apenas indesejável, mas impensável.
Aquele que não pensa segundo uma gramática fonética não poderia ser um
humano, mas sim uma fera ou um autômato. A humanização é fruto de uma
condução do pensamento até o ponto da gramática mesma, da palavra bem
ordenada. O ingresso na ordem logocêntrica é também o ingresso na ordem
humana. E este gesto é possibilitado pela ação de um soberano, de alguém
que dirige e comanda, que exerce um poder e uma autoridade. O próprio
do humano é decidido pela ação desse governo, da caridade de alguém que
assume a missão de governar para dentro da ordem social aqueles que
estavam para fora."
Encontramos uma formidável reflexão sobre as relações entre linguagem, poder e humanização em O garoto selvagem,
do diretor François Truffaut. O filme acompanha os experimentos do
médico francês Jean Marc Gaspard Itard com o garoto selvagem Victor de
l’Aveyron, encontrado e capturado numa floresta francesa em 1800. O
garoto, que tinha por volta de 10 anos, foi levado para o Instituto dos
Surdos-Mudos, onde foi deixado sob os cuidados de Itard. O médico, que
já vinha tentando tratar da surdez e desenvolver técnicas de oralização e
terapias da fala, assumiu a responsabilidade de ensinar Victor a se
comunicar e a viver em sociedade. O garoto não possuía nenhuma
capacidade comunicativa considerada normal, não respondendo aos apelos
sonoros ou a comandos físicos, também não respondia a nenhum
constrangimento social, comportando-se de forma violenta e arredia. Por
isso, Itard considerou adequado experimentar no garoto suas teorias
sobre o aprendizado da linguagem e sobre o desenvolvimento cognitivo de
indivíduos isolados do convívio social pela ausência de comunicação, tal
qual ele imaginava viver também os surdos não-instruídos.
Nesse sentido, Truffaut faz um recorte
muito preciso das relações de Itard com Victor, explorando basicamente
os exercícios realizados para estimular os sentidos do garoto e
desenvolver suas capacidades comunicativas, tanto por meio de comandos
orais, quanto por exercícios de alfabetização e utilização de imagens
significativas. O processo árduo de entendimento entre Itard e a criança
selvagem é marcado pela utilização de gestos mecânicos e repetitivos e
por meio de um rígido sistema de punições e recompensas. Tarefas bem
executadas, por exemplo, resultavam em pequenas recompensas, um copo de
água ou de leite. Já o erro ou a recusa em realizar uma determinada
tarefa trazia a punição, em especial o castigo de ficar trancado num
armário escuro. Por trás desse sistema, desvela-se um processo que
enxerga o desenvolvimento da linguagem como um dispositivo de
domesticação do ser-selvagem do garoto.
O objetivo de Itard não é apenas que o
garoto repita maquinalmente seus exercícios, mas sim que estes sirvam
como um motor para a humanização de Victor. E humanização, aqui, tem
dois sentidos correlatos: de um lado, humanizar é propiciar o
desenvolvimento do que é o próprio do humano, a fala e a compreensão da
lógica fonética das palavras; do outro lado, é necessário também que
seja introduzido no espírito selvagem do garoto a ordem moral
(certo/errado, justo/injusto) que estrutura o mundo civilizado,
convertendo-o num homem moral. Esses dois elementos aparecem em
correlação nos exercícios propostos por Itard, na medida em que ele
entendia só ser possível interiorizar os valores morais a partir do
movimento prévio de desenvolvimento da fala no garoto.
A proposta executada por Itard de
privilegiar a fala era também uma recusa na utilização de outro método
pedagógico defendido no mesmo período, a educação por meio da língua de
sinais. Esse tema aparece apenas sutilmente no filme em duas passagens,
quando Itard discute com um colega sobre a inconveniência de manter o
garoto na Instituição dos Surdos-Mudos, mas também quando ele menciona a
utilização da “linguagem de ação” (uma das denominações utilizadas para
nomear as línguas de sinais) por Victor. Nesse caso, não basta qualquer
sistema lingüístico de comunicação para separar o homem das feras, mas é
necessário que este tenha um caráter fonético, é a fala que humaniza e
moraliza o homem. Como nos lembra Derrida, a liberação das mãos, uma
certa liberdade da mão, é considerado o acesso ao que é próprio do homem
e é um momento essencial na humanização das criaturas vivas. É por isso que Itard não quer apenas que o garoto sinalize pelo leite, mas peça pelo leite, fale que quer o leite.
E esse processo advém de uma rotina
disciplinar muito característica, que sistematiza um esquema de
vigilância e punição para docilizar o comportamento selvagem,
domesticando a potência dos gestos em favor da lógica da razão e do
ordenamento da fala. O projeto de Itard, nesse sentido, não era muito
diferente daquele realizado por seus contemporâneos (ainda que por
outros meios) e o garoto selvagem ocupa uma posição semelhante ao das
crianças surdas que eram educadas no Instituto. Elas também eram vistas
como selvagens na medida em que se mantinham sem educação formal e
apenas o ingresso na instituição possibilitava o abandono dessa
condição. E ainda que o instrumento pedagógico utilizado fosse a língua
de sinais, esta não deixava de ser um meio para se atingir a perfeição
da razão, a língua fonética escrita.
O filme de Truffaut, ao reconstruir o
relato das experiências de Itard, descortina a gênese de um dos sonhos
pedagógicos mais fortes da modernidade, qual seja, o da disseminação
irrestrita de uma determinada lógica de pensamento, alcançando até mesmo
aqueles seres que pareciam nas franjas mais distantes de qualquer
processo de humanização. É como se os gestos de Itard revelassem uma
forma de enxergar o pensamento humano, ou melhor, da própria
antropologia ocidental, como a expressão de ideias numa lógica linear,
sucessiva e ordenada segundo a fala, portanto, logocêntrica. E o
distanciamento dessa ordem não era apenas indesejável, mas impensável.
Aquele que não pensa segundo uma gramática fonética não poderia ser um
humano, mas sim uma fera ou um autômato. A humanização é fruto de uma
condução do pensamento até o ponto da gramática mesma, da palavra bem
ordenada. O ingresso na ordem logocêntrica é também o ingresso na ordem
humana. E este gesto é possibilitado pela ação de um soberano, de alguém
que dirige e comanda, que exerce um poder e uma autoridade. O próprio
do humano é decidido pela ação desse governo, da caridade de alguém que
assume a missão de governar para dentro da ordem social aqueles que
estavam para fora.
Fonte: Ensaios Ababelados
O garoto selvagem de François Truffaut