PICICA: "Ocorre que muitas das críticas são contundentes demais para ficarem sem
resposta. Algumas, em tom de desabafo, apareceram imediatamente após o Roda Viva, a partir de pessoas que tiveram diferentes experiências com o grupo – a primeira delas, ou a de maior repercussão, feita pela cineasta Beatriz Seigner,
que denuncia calotes, apropriação indevida de recursos, exploração do
trabalho de jovens idealistas, desprezo pela formação e informação
cultural etc. Outras expunham a decepção com a quebra da promessa de
horizontalidade na tomada de decisões, o que apenas revela a extrema
ingenuidade de quem ignora a permanência dos mecanismos de exercício de
poder, dissimulados e adaptados ao novo mundo das redes.
Outras ainda, mais antigas, questionavam os fundamentos dessa proposta
alternativa e agora voltaram à tona. Entre estas, duas sobressaem: a do coletivo Passa Palavra, em junho de 2011, e a do jornalista José Arbex Jr., publicada originalmente na revista Caros Amigos, em agosto do mesmo ano. Em fevereiro de 2013, o Passa Palavra publicaria outro texto analítico
em que aponta o Fora do Eixo como parte de um “novo empresariado
cultural”, que explora o trabalho alheio na base de um discurso sedutor
sobre um suposto novo estágio do capitalismo, marcado por “disputas
narrativas” e pela “ressignificação” do sentido da militância política. É
como se essa nova militância fosse uma espécie de “servidão voluntária”
tardia, justificada em nome dos mais nobres ideais libertários."
MÍDIA NINJA
Uma crítica à contracorrente
Por Sylvia Debossan Moretzsohn em 13/08/2013 na edição 759
Ir na contramão do senso comum e das normas estabelecidas é
característica de todo pensamento crítico. Mas quando se trata de
avaliar iniciativas que, justamente, atuam ou pelo menos se declaram à
contracorrente do “sistema”, parece que o sentido crítico se dilui,
temeroso de ser apontado como cúmplice desse mesmo sistema que deseja
combater. É como se estivéssemos numa conjuntura de polarização
ideológica simplificadora, que suspeitasse de todo comportamento
diferente da adesão incondicional a uma causa – o que é, evidentemente, o
túmulo da crítica.
Parece que é o que vem acontecendo na atual polêmica em torno da Mídia
Ninja e do coletivo Fora do Eixo, sobretudo a partir da entrevista de
seus respectivos líderes ao programa Roda Viva, da TV Cultura, na semana passada (ver aqui).
Nas redes sociais, o desempenho de ambos foi imediatamente comemorado –
eles teriam “jantado” experientes jornalistas, muitos dos quais
insistiam em indagar sobre a origem dos recursos que mantinham aquelas
atividades, aparentemente interessados em identificar alguma falcatrua
–, mas logo que começaram a surgir graves denúncias contra o grupo a
situação se alterou, e houve mesmo quem falasse na “armadilha” que
representava participar de um programa como aquele, num canal comandado
pelo tucanato.
Entre professores e intelectuais críticos da mídia – fora,
naturalmente, aqueles já identificados com esse projeto –, a tendência
foi de manifestar apoio ao grupo, desqualificando os questionamentos e
relevando o que consideravam equívocos próprios da natureza “complexa”
de uma atividade que ousava contestar o sistema em seus fundamentos, ao
propor a “desmonetarização” das relações de produção em plena vigência
do capitalismo.
Questionando os fundamentos
Ocorre que muitas das críticas são contundentes demais para ficarem sem
resposta. Algumas, em tom de desabafo, apareceram imediatamente após o Roda Viva, a partir de pessoas que tiveram diferentes experiências com o grupo – a primeira delas, ou a de maior repercussão, feita pela cineasta Beatriz Seigner,
que denuncia calotes, apropriação indevida de recursos, exploração do
trabalho de jovens idealistas, desprezo pela formação e informação
cultural etc. Outras expunham a decepção com a quebra da promessa de
horizontalidade na tomada de decisões, o que apenas revela a extrema
ingenuidade de quem ignora a permanência dos mecanismos de exercício de
poder, dissimulados e adaptados ao novo mundo das redes.
Outras ainda, mais antigas, questionavam os fundamentos dessa proposta
alternativa e agora voltaram à tona. Entre estas, duas sobressaem: a do coletivo Passa Palavra, em junho de 2011, e a do jornalista José Arbex Jr., publicada originalmente na revista Caros Amigos, em agosto do mesmo ano. Em fevereiro de 2013, o Passa Palavra publicaria outro texto analítico
em que aponta o Fora do Eixo como parte de um “novo empresariado
cultural”, que explora o trabalho alheio na base de um discurso sedutor
sobre um suposto novo estágio do capitalismo, marcado por “disputas
narrativas” e pela “ressignificação” do sentido da militância política. É
como se essa nova militância fosse uma espécie de “servidão voluntária”
tardia, justificada em nome dos mais nobres ideais libertários.
Entre a “comunicação” e o “trabalho”
Não é um discurso novo. Aliás, é o que leva a confrontar, grosso modo,
duas concepções sobre o capitalismo contemporâneo no amplo espectro do
pensamento de esquerda, e que podem ser sintetizadas na oposição entre
os paradigmas da produção e da comunicação: o primeiro considera a
permanência da luta de classes,
que tem como centro a questão do trabalho; o outro a despreza e sugere
que a categoria de “exploração” não se aplicaria mais às sociedades
avançadas.
É uma longa discussão, que não cabe neste espaço, mas é importante
ressaltar que esse paradigma da “comunicação” – e, por extensão, da
“cultura”, desvinculada do “trabalho” – faz muito sucesso em vários
setores da academia, notadamente nas escolas de Comunicação.
“Comunicação” e “cultura” são conceitos que apelam a sensibilidades,
subjetividades, afetos – em suma, são tudo de bom e sugerem liberdade,
enquanto “trabalho” é algo associado a sacrifício. Não é agradável
pensar que tudo o que produzimos e consumimos custa trabalho. Melhor
ignorar. Embora seja difícil pensar em “ressignificar” a situação muito
objetiva de quem está desprovido de seus meios de subsistência.
Além dessa questão de fundo, impressiona a facilidade de adesão à ideia
de que o Fora do Eixo estaria inaugurando relações de convívio
comunitário. É no mínimo uma injustiça para com o ideário hippie e da
contracultura dos anos 1960-70. Isso se não quisermos invocar exemplos
que remontam a utopias do século 19.
As ilusões da transmissão “em fluxo”
Como já comentei neste Observatório,
o jornalismo produzido pela Mídia Ninja tampouco é algo novo, embora
tenha sobressaído na cobertura das manifestações de junho e julho ao
recuperar o melhor da tradição da reportagem de rua, testemunhando e
transmitindo ao vivo os conflitos e a violência durante as
manifestações. Nesse sentido, atuou como fundamental elemento de
denúncia contra a truculência policial. E, ao assumir claramente um
lado, contestou na prática a hipocrisia da imparcialidade como valor
para o jornalismo, assumido formalmente – mas apenas formalmente – pelas
grandes empresas de comunicação, e há muito tempo contestada em estudos
acadêmicos.
No entanto, o entusiasmo com que se vem acolhendo essa iniciativa tende
a levar a uma falsa dicotomia entre a “velha” mídia e esse admirável
mundo novo de múltiplos celulares de última geração a documentar e
disseminar em “tempo real” o turbilhão de acontecimentos. Como se o
jornalismo se resumisse ao testemunho e ao imediato.
Pelo contrário: jornalismo exige apuração – que obviamente vai muito
além do testemunho – e edição. Editar é fazer escolhas criteriosas:
exige distanciamento para avaliar e dar algum sentido ao que se passa.
Editar exige bem mais que o ímpeto e a coragem de se misturar à
multidão: exige qualificação. E dá trabalho. Muito trabalho.
A defesa de uma transmissão sem edições, “no fluxo”, se baseia na
ilusão de que não haveria filtros, quando o primeiro filtro, elementar,
está no próprio lugar de onde se documenta qualquer cena. Valeria a
pena, aliás, recordar exemplos em que a mídia tradicional atuou nesse
fluxo contínuo, como o sequestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro, a
prisão do casal Nardoni, em São Paulo, e o sequestro e morte da jovem
Eloá Pimentel, em Santo André: em todos esses casos multiplicaram-se as
críticas à espetacularização dos acontecimentos.
Não caberia a mesma crítica agora, especialmente quando certos grupos
mascarados produzem imagens impactantes em suas performances
pirotécnicas? Ou a crítica varia conforme a natureza dos acontecimentos?
O que significa, afinal, esse movimento de trazer o espectador para
“dentro” da cena?
A ética e o mundo das redes
Há quem diga, entretanto, que ações como a dos Ninjas – apesar do
significado do “J” do acrônimo – não devem ser reivindicadas como
jornalismo (ver aqui),
pois são “narrativas” que transbordam o exercício da reportagem. Talvez
o problema, aí, esteja no que se classifica como reportagem: talvez se
esteja lidando com cânones estreitos demais para enquadrar essa
atividade. Além disso, é preciso considerar o status que protege, ou
deveria proteger, o trabalho jornalístico: não é casual o grito de
“imprensa!” diante da violência policial ou da ameaça de prisão durante
as manifestações.
O problema é que, quando se pretende fazer jornalismo, é preciso
respeitar determinados princípios éticos. E aqui reside talvez a
principal questão com a qual nos confrontamos nesses tempos de “nova
mídia”. Há tempos, tratei desse tema em artigo acadêmico reproduzido
neste Observatório (ver “Encruzilhadas da ética em tempos de ‘nova mídia’“):
de fato, vivemos num contexto em que a imprensa perdeu a exclusividade
no relato dos acontecimentos que podem ter influência pública. Isso
costuma ser comemorado por todos os que, com razão, condenam a
deturpação das informações pelos grandes conglomerados de mídia, mas o
outro lado dessa história é preocupante: se “todos” podem divulgar
“tudo” através da tecnologia digital, perdemos os parâmetros de
referencialidade que a imprensa anteriormente prometia.
De fato, hoje, qualquer informação – verdadeira ou falsa, fidedigna ou
não – pode circular amplamente e produzir efeitos, às vezes deletérios. A
nova realidade das redes não cancela os velhos mecanismos de formação
de opinião, que terão tanto mais sucesso quanto menor for a capacidade
de discernimento de quem se expõe ao que circula no espaço virtual. São
questões que não podemos esquecer quando tentamos compreender o mundo
contemporâneo e vislumbrar para onde caminhamos.
Em Tempo: Na noite de segunda-feira (12/8), outra manifestação em frente ao Palácio Guanabara acabou em violência. A Mídia Ninja transmitiu em quatro links. “Caralho, galera! Vai dar merda, hein? Bomba de gás, spray de pimenta! Caralho, galera!”, era como um dos rapazes transmitia.
A galera, naturalmente, só podia intuir o motivo de tudo aquilo.
Dentro do palácio, após audiência com o vice-governador, um grupo de professores da rede estadual, em greve desde quinta-feira (8/8), resolveu ficar. Acabou expulso pelos policiais. Um dos ninjas estava lá. “Tá meio tenso, mas tá tudo bem. (...) Estão jogando pedra aqui dentro, aparentemente...”
No meio da gritaria, sobressai a voz de uma mulher, mais exaltada. “Tá empurrando por que, cara? Não empurra! Larga ela! A violência começa de vocês! Covarde! Co-var-de!”, e logo a seguir o coro: “Fas-cis-ta! Fas-cis-ta”. E o ninja: “Estão batendo aqui nos professores, aqui no Palácio da Guanabara (...), Mídia Ninja apanhando, policiais batendo no Mídia Ninja, estão empurrando a gente aqui, Mídia Ninja apanhando, sendo expulsa...”
O trecho do vídeo foi divulgado no Facebook, mas as imagens não permitem ver nada além de um tumulto, que não se entende por que começou (ver aqui).
É assim, entre exclamações de espanto e protestos, que se constrói a narrativa “independente”. Afinal, o que se passa? Tumulto, agressões, violência – mas por quê?
Explicar o que acontece parece dispensável. Basta mostrar e excitar-se, para excitar e provocar uma indignação difusa em quem vê.
Pensando bem, quem diz que as narrativas da Mídia Ninja não são jornalismo tem razão. Não são mesmo. Aquele “J” do acrônimo, o que faz ali?
***
Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)
Fonte: Observatório da Imprensa
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