agosto 19, 2013

"O medo mudou de lado", por Bruno Cava

PICICA: "Se eram tidas por incontroláveis, como um pandemônio sem nexo, um bando de malucos quebrando tudo, inverteram a equação para por a nu o intolerável cotidiano, o tecido de brutalidade e racismo, com que milhões de amarildos e amarildas sentem na pele a “pacificação” do Brasil. Jogaram um facho de luz no lado oculto da modernização nacional.
Contra toda a representação dócil, quase em inflexão redentora, — que a imprensa corporativa e a propaganda oficial fazem do novo Brasil, — as mídias da multidão expuseram o fundamento da ordem: uma máquina estatal trituradora de pobre e negro, operando em zona de exceção, que não hesita em prender e torturar a seu bel sabor. Uma máquina que dialoga consigo mesma, fechada para o dissenso. Não só a grande imprensa, como também a “grande intelectualidade” e a “grande arte”, desinteressadas ou incapazes de exercer qualquer crítica de uma brutalidade que nunca esteve nas manifestações, mas entranhada na normalidade. Como medir a violência diante da chacina da Maré?"
 
O medo mudou de lado
 


As manifestações já são uma vitória irreversível. Com mais de dois meses desde as primeiras marchas do Passe Livre, ficou nítido o impacto na realidade política do país. Esperam-se efeitos de longo prazo e positivos.

As principais críticas levantadas, uma depois da outra, foram por água abaixo.

Se eram acusadas de demandas vagas, concretizaram pautas imediatamente reconhecidas pela população, como a redução da tarifa dos ônibus, a abertura da caixa preta do transporte coletivo e dos megaeventos, a desmilitarização policial e de bairros pobres, uma suspensão nas remoções e “choques de ordem”, bem como a criação de novos espaços e tempos para a política, nas ocupações, assembleias de bairro e encontros pela cidade.

Se eram tachadas de ingênuas, acéfalas ou caóticas, exprimiram uma grande inteligência coletiva ao identificar alvos e inimigos, formular campanhas de sucesso (Cadê o Amarildo?) e proliferar instâncias com pensamento e debate, numa sequência incansável de plenárias, fóruns, grupos, mídias, outros coletivos e movimentos. As manifestações realizaram o que a esquerda tradicional vem tentando há anos.

Se eram tidas por incontroláveis, como um pandemônio sem nexo, um bando de malucos quebrando tudo, inverteram a equação para por a nu o intolerável cotidiano, o tecido de brutalidade e racismo, com que milhões de amarildos e amarildas sentem na pele a “pacificação” do Brasil. Jogaram um facho de luz no lado oculto da modernização nacional.

Contra toda a representação dócil, quase em inflexão redentora, — que a imprensa corporativa e a propaganda oficial fazem do novo Brasil, — as mídias da multidão expuseram o fundamento da ordem: uma máquina estatal trituradora de pobre e negro, operando em zona de exceção, que não hesita em prender e torturar a seu bel sabor. Uma máquina que dialoga consigo mesma, fechada para o dissenso. Não só a grande imprensa, como também a “grande intelectualidade” e a “grande arte”, desinteressadas ou incapazes de exercer qualquer crítica de uma brutalidade que nunca esteve nas manifestações, mas entranhada na normalidade. Como medir a violência diante da chacina da Maré?

Contra a indignação moral, histérica, de Datenas, Jabores e Reinaldos, a expressão da indignação real, saturada de uma condição de sofrimento e raiva, imediatamente manifestada na luta. Em vez da agenda do bem contra o mal, — como se o conflito político consistisse numa cruzada moralista dos cidadãos de bem, especialistas e jornalistas contra os corruptos e desonestos, — a exposição do conflito entre duas cidades: entre o 1% para quem a cidade não passa de playground de rico, e os 99% que batalham por dignidade, para que cesse a humilhação no sistema de transporte, saúde, educação ou cultura. Os chiliques civilizados deram lugar à recusa de uma civilização inaceitável, suas boas maneiras, a naturalidade de seus gestos.

Chama-se democracia e muitas vezes tem de ser grosseira, sem verniz. As pessoas sentem diferente. Sentem que podem mais, que podem poder. Está mudando a percepção. Não são só a FIFA, o papa ou o governador que podem parar o trânsito e tumultuar a cidade, para exibir os símbolos do poder vigente. As manifestações também podem, num tumulto constituinte, para regenerar instituições estagnadas no vício. Diante disso, os governantes parecem ter perdido a majestade, esquivam-se dos holofotes, desmarcam coquetéis, param de degustar calmamente os canapés das vernissages. A intranquilidade reina nos gabinetes, quando têm de atender a conchavos e compromissos.

Nossos esquemas furaram. Existe uma carga selvagem que nos força a sair da caixa para pensar e repensar o que está acontecendo. É preciso buscar fora do catálogo. Não adianta marretar o real até caber no velho Gramsci, como se alguma luta superior por hegemonia justificasse opor-se à abertura constituinte.

Agora exigem fair play, criminalizam grupos, acusam-nos de violência irrefletida, não vendo, não querendo ver como daí, extrapolando suas tendências positivas, é que se pode abrir um terreno de democracia e paz. As alternativas estavam fechadas há tempos. Estão preparando mais um golpe para frear a transformação. Golpe, afinal, é para que tudo continue como está.
Nas últimas semanas, o recuo do poder estabelecido se generalizou. No tom, na receptividade, nas medidas. Menos por concessão, do que por conquista democrática, por ser obrigado a recuar. A esfera de conquistas e direitos se expande na razão direta do aumento da potência da multidão, sua capacidade de tensionar, formular e criar. Desde as ações mais diretas nas ruas até um apoio difuso, porém vasto, da população, continua uma latência indignada, produtiva. A latência segue num limiar de onde podem emergir novos protestos gigantes, em função de acontecimentos contingentes e imprevisíveis. A sensação é de prestes a.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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