PICICA: "[...] quão curiosa reversão essa
que parece atingir uma reflexão muito profunda de G. Deleuze, aquela
segundo a qual viveríamos, no final do derradeiro século, em tempos de
comunicação e deveríamos resistir a ela através da criação. Dizia o
filósofo que não nos faltava comunicação, mas resistência. Eis que a
resistência em nossos dias se apresenta como um novo modo de praticar a …
comunicação. Esse texto, apesar de suas insuficiências, serve ao menos
para se aventar pistas para que a oposição ostentada entre velha
imprensa e nova mídia seja ao menos problematizada, para que regimes
comunicacionais sejam distinguidos enquanto tais, ou seja, enquanto formas de captura da informação ou formas de mediação,
ao passo que as máquinas de guerra informacionais – que esperamos
abordar num outro momento – sempre reivindicaram para si uma comunicação propriamente imediata.
Assim, alardeia-se que a guerra por vir é aquela da informação,
ignorando-se que a exterioridade da máquina de guerra define-se
primeiramente enquanto uma multiplicidade informacional qualquer, em seu
regime comunicacional próprio, que dizer, o imediato, contra as
mediações pelas quais a “forma-Estado” e a Axiomática do Capital buscam
capturá-la."
1964: sobre o controle ou a Nova Express
15/08/2013
Por Cleber Lambert
Em meio a um debate saturado de pares simplórios — novo x velho, 1.0 x 2.0, analógico x digital, horizontal x vertical —, onde a discussão sobre as novas mídias corre o risco de achatar numa ruidosa banalidade, Cléber Lambert se presta à modéstia nada impotente de ousar conceitos. Propondo uma ‘rizomática da comunicação’, com ressonâncias na obra beatnik de W. Burroughs, o filósofo desenvolve a transição da imprensa de estado/tipo e o regime comunicacional próprio do que Deleuze chamava de “sociedades de controle”.
Por Cléber Lambert
“Talvez a fala, a comunicação, estejam apodrecidas. Estão inteiramente penetradas pelo dinheiro: não por acidente, mas por natureza. É preciso um desvio da fala. Criar foi sempre coisa distinta de comunicar. O importante talvez venha a ser criar vacúolos de não-comunicação, interruptores, para escapar ao controle”. (DELEUZE, 1996, p.217).
A
cena do programa Roda Viva, do dia 6 de agosto, ao receber Pablo Capilé
e Bruno Torturra, marcou um singular momento de disjunção entre o que
se poderia chamar de regimes comunicacionais: de um lado, o que se chama
cada vez mais de velha imprensa, mídias tradicionais ou hegemônicas
representadas pelos grandes conglomerados de comunicação, de outro, o
que tem sido chamado de pós-jornalismo, midiativismo, contra=mídia, nova
mídia [1]. A dicotomia tem sido percebida como aquela que opõe a antiga
busca pela imparcialidade ao que o próprio Capilé designou de “mosaico
de parcialidades”, a unidade vertical da verdade impessoal do fato à
multiplicidade horizontal de perspectivas parcializantes, a má
hierarquia da velha mídia, da imprensa ou do analógico à boa
“descompartimentalização” das novas mídias, da rede ou do digital.
Pensamos que essa dicotomia seja demasiado apressada e, por isso mesmo,
insuficiente. Assim, a ingenuidade em pensar a suposta passagem de um
termo a outro segundo uma nova grade de valor, opondo o bom ao ruim, o
novo ao velho, o futuro redentor do presente ao passado insistente, o
dinâmico ao estático. Essa sempre foi a maneira de um pensamento
fatigado abordar as coisas, projetando, sobre as linhas de diferenciação
que atravessam as coisas, linhas de valoração que voltam a regurgitar
aquilo mesmo que se tentava conjurar inicialmente, com a própria
passagem: a dicotomia refaz um modo estático de pensar quando permanece
uma simples oposição de modelos e não uma mais sutil descrição de
operações que implicam comutações, zonas de ambiguidades, capacidade de
relançamento mútuo.
Posto que nos surpreendeu a excessiva esperança de redenção
simplesmente através de novos suportes comunicacionais, ao passo que se
operava com velhos conceitos, fomos levados a realizar um experimento de
pensamento, colocando questões no próprio plano conceitual. Desse ponto
de vista, o problema da comunicação parece recair sobre a existência de
diferentes regimes comunicacionais, os quais não constituem ou
participam de modo algum de uma grade de valores independentes das
situações concretas e materiais nas quais eles se efetuam
incessantemente. A análise que segue retoma um trabalho realizado
anteriormente e que consistiu na tentativa, de inspiração
deleuzo-guattariana, de elaboração de uma “rizomática da comunicação”,
ou seja, uma análise dos regimes ou agenciamentos comunicacionais
concretos. Insatisfeitos com as análises de um L. Sfez ou de um M.
Serres, acreditávamos que seus regimes, respectivamente a “máquina” e o
“organismo”, o “paradigma clássico” e o “paradigma romântico”, não eram
suficientemente abstratos para atingir os regimes comunicacionais
concretos (o que apenas por equívoco soaria paradoxal, já que do ponto
de vista de Deleuze e Guattari, em Mille Plateaux, atingimos o “concreto” através de uma “máquina abstrata” que nada mais é senão seu duplo).
Por fim, do ponto de vista dessa análise, quão curiosa reversão essa
que parece atingir uma reflexão muito profunda de G. Deleuze, aquela
segundo a qual viveríamos, no final do derradeiro século, em tempos de
comunicação e deveríamos resistir a ela através da criação. Dizia o
filósofo que não nos faltava comunicação, mas resistência. Eis que a
resistência em nossos dias se apresenta como um novo modo de praticar a …
comunicação. Esse texto, apesar de suas insuficiências, serve ao menos
para se aventar pistas para que a oposição ostentada entre velha
imprensa e nova mídia seja ao menos problematizada, para que regimes
comunicacionais sejam distinguidos enquanto tais, ou seja, enquanto formas de captura da informação ou formas de mediação,
ao passo que as máquinas de guerra informacionais – que esperamos
abordar num outro momento – sempre reivindicaram para si uma comunicação propriamente imediata.
Assim, alardeia-se que a guerra por vir é aquela da informação,
ignorando-se que a exterioridade da máquina de guerra define-se
primeiramente enquanto uma multiplicidade informacional qualquer, em seu
regime comunicacional próprio, que dizer, o imediato, contra as
mediações pelas quais a “forma-Estado” e a Axiomática do Capital buscam
capturá-la. Passemos, pois, à análise.
***
Uma informação, tanto em expressão quanto em conteúdo, é uma
multiplicidade qualquer, é dizer, a informação é uma singularidade ou
conjunto aberto e prolongável de pontos singulares, uma torção material
na extensão do mundo, tanto quanto uma redobra afetiva a maneira de uma
qualidade expressa, um gradiente incorporal de intensidade. Enfim, é
acontecimento. Somente enquanto tal, enquanto multiplicidade de
valências abertas, a informação constitui uma virtualidade e, assim, uma
máquina de guerra potencial. A cada vez que uma valência (ou um
conjunto delas) é fechada ou limitada, há captura da informação ou
mediação. A fonte do comum é a inclusão que exclui o divergente, a
diferença, ou seja, a mediação. Contudo, nada nos impede de pensar que
haja uma outra fonte, precisamente na origem de sínteses disjuntivas que
formam uma comunicação imediata entre heterogêneos, entre
singularidades. Assim, as duas fontes do comum são dois movimentos ou
dois processos, mais do que dois modelos. Deleuze, comunicador: o tema
recorrente de uma comunicação transversal, disparatada, incompossível.
A informação enquanto multiplicidade não está vinculada, a priori, a nenhum estado de coisas em particular,
quer dizer, a virtualidade informacional pode eclodir sem referências
espacio-temporais ou suportes materiais específicos – definitivamente,
as miraculosas tecnologias da informação não são, por essência,
miraculosas, não podendo, assim, aportar a redenção que alguns
desejariam. Ao contrário, elas devem ser compreendidas na situação
concreta em que se dá seu agenciamento. Por exemplo, pensemos no
agenciamento informacional medieval. Nele podemos distinguir a vazão de
verdadeiros fluxos de intensidade informacional, bem como formas de
capturas eficazes e tão terríveis quanto aquelas de que padecemos. Por
exemplo, em relação ao jogral, Rizzini nos fala da ação política, na
Inglaterra, desses cantadores de novas, cantores e músicos ambulantes.
“Disfarçadas em canções inocentes, introduziam doutrinas ‘fort liberales et qui poussaient même à la revolte’. No começo do século XV, o Parlamento fez desterrar de Gales os ‘Westours et rymours, mynstrales ou vocabunds’,
fomentadores da insurreição ali estalada. Versos satíricos contra as
castas poderosas, abrasados nas idéias emancipadoras desenvolvidas no
quatrocentismo, propalavam-se na ilha, repetidos pelo povo (RIZZINI,
1988, p. 18).
O mesmo poderia ser dito a propósito de um dos agenciamentos
informacionais do Império Romano. Nele encontramos o “Álbum”, numa
“tábua branca (…) pendurada o ano todo no muro da residência do grande
pontífice” (RIZZINI, 1988, p. 4). Essa ascendência romana do jornal é
conhecida como Atas, “rudimentar meio oficial de informação”. No
entanto, nelas já se encontram os principais traços de rostidade que
passam pelo grande Rosto da Imprensa, como veremos. “Possuindo os dois
primeiros característicos do jornal – periodicidade e atualidade – cedo
atraíram as Atas o terceiro – a variedade – quando o abelhismo do
público foi-lhes abrindo espaço para o noticiário vulgar” (RIZZINI,
1988, p. 5). E o que dizer dos Rostros? O que dizer daquela grande soma
de pessoas que, não sendo opulentas o bastante para se darem ao luxo de
receber as Atas em casa, iam “curicar à sombra do lago Curtius junto aos
Rostros”. Tais lugares eram uma espécie de praça pública onde “gente de
todas as condições ali acorria para fiar conversa, conferir projetos e
criticar o governo” (Idem, p. 7). Eram os subrostratos, além de
freqüentadores da praça pública – ou por isso mesmo – considerados
amigos de novidades e ociosos. Eram os mexeriqueiros de Roma, os
parlapatões do lago Curtius. Philomusus é o principal representante
dessa gente, ele sabia de tudo…
Assim, é sempre possível operar uma cartografia dos agenciamentos
informacionais, de suas operações, de seus componentes e de seus modos
de funcionamento. Nosso esforço deve ser, então, tentar distinguir ao
menos dois regimes comunicacionais mais próximos de nós. O primeiro
deles é a Imprensa. Se a multiplicidade informacional opera
segundo uma lógica do acontecimento (no sentido deleuziano desse
conceito, buscado junto aos Estóicos), a Imprensa, por sua vez, opera
por um simplismo notável na medida em que se revela tanto mais
eficiente: a informação-acontecimento é capturada de modo tal que por
informação entender-se-á a notícia e por acontecimento entender-se-á o
fato. O regime da Imprensa mobiliza formas de expressão que passam pela Preensão (e que é a operação de Captura própria àquilo que designamos por Imprensa de Estado ou forma-Estado da Imprensa) [2], pela Significância e pela Subjetivação.
A Imprensa de Estado existe lá onde as palavras de ordem realizam atos.
Não são esses atos simplesmente comandos, pedidos, ordens, ou seja, uma
categoria particular de enunciados explícitos, no caso, o imperativo.
As palavras de ordem, para uma rizomática da comunicação, definem-se
pela “[...] relação de qualquer palavra ou qualquer enunciado com
pressupostos que se realizam no enunciado, e que podem se realizar
apenas nele” (DELEUZE & GUATTARI, 1995 v.2, p. 16). Porém, essa
Imprensa contém outros componentes. Primeiramente, a redundância, pois importa menos o conteúdo novo do que a freqüência
da informação, ou seja, sua significância (o jornal diário, matutino,
semanal, mensal…). Em seguida, a ressonância da comunicação, ou seja,
sua subjetivação (a diagramação do impresso, a presença e o tom de voz
do apresentador-Déspota…). De Otto Groth pode-se dizer que ele foi um
grande metafísico do jornalismo, pois faz de um conjunto de componentes a
essência disso que ele chama de “Periodika”: por exemplo, a
periodicidade que a distingue de outras publicações; também a difusão
como acessibilidade geral do objeto Periodika, não importando o número
de pessoas que lêem efetivamente o jornal, mas sim que o mesmo possa, em
potência, atingir ao maior número de leitores. Temos, assim, alguns
componentes do regime comunicacional que corresponde ao campo
representacional da forma-Estado da Imprensa ou à mediação como operação
transcendental ou condição da experiência meramente possível do comum, à
qual se oporá a imediação como experiência real do comum.
Ao tratar da Imprensa de Estado como regime comunicacional, não podemos
deixar de pensar nas sociedades disciplinares. Não exatamente nos meios
de enclausuramento das sociedades disciplinares, como a escola, a
clínica, a prisão, o hospital, tão bem demarcados por Foucault. Mas já é
necessário introduzir a ideia de um regime comunicacional distinto que
será menos uma outra operação oposta àquela da mediação do que sua
intensificação e multiplicação. Com efeito, ao “acabamento de vez do
Juízo de Deus”, não se seguiu o ocaso da mediação, mas sua dispersão
absoluta de modo que, no mesmo golpe, colocou-se de vez o problema da
comunicação, ou seja, como fazer comum sem passar nem pela mediação
infinitamente grande, nem tampouco pelas pequenas mediações, mas pelas
composições imediatas, da ordem do contágio, ou das metamorfoses, ou
ainda dos devires, por exemplo. Essa outra operação reúne os
dispositivos de controle da sociedade da informação, da qual Gilles
Deleuze indicava o despontar em um texto já bastante conhecido,
intitulado Post-Scriptum, e numa palestra proferida em 1987 a estudantes de cinema.
Nessa
palestra, observamos com ele o deslocamento saliente das sociedades
disciplinares para o controle. “Entramos então em sociedades de controle
que diferem em muito das sociedades de disciplina. Aqueles que velam
por nosso bem não têm ou não terão mais a necessidade de meios de
enclausuramento. Hoje todos eles, as prisões, as escolas, os hospitais,
são temas de discussão permanente. Não seria melhor estender o
tratamento aos domicílios? Sim, esse é sem dúvida o futuro. As oficina,
as fábricas não comportam mais empregados. Não seria melhor regimes de
empreitada e de trabalho a domicílio? Não existem outros meios de punir
os infratores senão a prisão? As sociedades de controle não adotarão os
meios de enclausuramento” (DELEUZE, 1992).
No estrato disciplinar, o aparelho de Imprensa exercia função tão
importante quanto no novo estrato um regime comunicacional distinto
agencia. Trata-se de um novo agenciamento da informação. Com relação às
sociedades de disciplina, a Imprensa faz corresponder ao agenciamento
maquínico exercido pelas fábricas, escolas, prisões, etc., o
agenciamento de enunciação disciplinar cujo procedimento consistia em
criar uma linearidade benfazeja e confortante no tempo, uma identidade
na sucessão temporal que desemboca na plenitude de um lugar no presente.
Isso porque a disciplina, ao mesmo tempo em que se exerce sobre os
corpos e estados de corpos, deve promover uma transformação semiótica
que, ao recair sobre a multiplicidade de corpos de modo a segmentá-la
com a rigidez dos enunciados, age como um ato puro ou uma transformação
incorpórea – enfim, uma palavra de ordem. De nada valeria edificar muros
e grades, construir mais presídios, adestrar os mais diverso materiais
de modo a compor um receptáculo, tampouco recortar a multiplicidade
humana de maneira que sempre haja um segmento de corpos para ocupar este
ou aquele espaço, se não se enuncia palavras que provoquem uma
intervenção semiótica, uma lição incorporal cuja realização como ato de
fala consiste em exprimir “uma nova maneira de classificar, de enunciar,
traduzir e mesmo praticar atos criminosos. ‘Delinquência’ é a forma de
expressão em pressuposição recíproca com a forma de conteúdo ‘prisão’.
[...] Forma de conteúdo e forma de expressão, prisão e delinquência,
cada qual tem sua história, sua micro-história, seus segmentos. Quando
muito elas implicam, com outros conteúdos e outras expressões, um mesmo
estado de Máquina Abstrata que não atua de modo algum como significante,
mas como uma espécie de diagrama (uma mesma máquina abstrata para
prisão, escola, quartel, asilo, fábrica…)” (DELEUZE & GUATTARI, 1995
v.1, p. 83).
Quando falamos que a Imprensa faz corresponder ao agenciamento
maquínico da disciplina o agenciamento de enunciação disciplinar,
queremos nos referir a ela como um regime de signos específicos,
justamente o que permite fazer os atos de fala circularem e adquirirem
uma aceleração própria (a opinião pública). Tal função faz a Imprensa
assemelhar-se a uma disciplina do tempo em geral: não somente, há a hora
de ir para o trabalho, a hora da escola, a hora de rezar, etc., mas é a
Imprensa que sobrecodifica essas diversas “horas” criando uma
identidade no tempo ou a época: a opinião corrente a propósito de “temas”.
Contudo, no estrato do controle, a comunicação define-se por um
agenciamento que já não é uma jurisprudência sobre a própria substância
do tempo. Em oposição à linearidade temporal dos fatos desembocando em
um lugar no presente (a disciplina), o controle cria uma continuidade
aconchegante dos fatos nos mais diferentes lugares, uma nova e mais
terrível identidade que se assenta sobre uma simultaneidade que converge
para uma plenitude do instante no lugar. Não mais uma disciplina do
corpo “aqui e agora” por meio de uma identidade criada como sequência de
fatos no tempo, mas um controle do corpo e da vontade “alhures e a
qualquer momento” por meio de uma identidade criada como uma
simultaneidade de fatos no Instante. ”Um controle não é uma disciplina.
Com uma estrada não se enclausuram pessoas, mas, ao fazer estradas,
multiplica-se os meios de controle. Não digo que esse seja o único
objetivo das estradas, mas as pessoas podem trafegar até o infinito e
‘livremente’, sem a mínima clausura, e serem perfeitamente controladas.
Esse é o nosso futuro” (DELEUZE, 1992).
O que muda aqui é a forma mesmo de Captura da informação, que não passa mais fundamentalmente pela preensão da informação, mas pela sua conectividade,
não se trata mais de fechar as valências da multiplicidade
informacional, mas de estabelecer a conectividade dessas valências. O
novo estatuto da informação capturada já não é a palavra de ordem, mas a
senha, ou seja, “[...] o sistema controlado das palavras de ordem que
tem curso numa dada sociedade” (Idem). A Nova Mídia muda totalmente de
caráter, pois sua formalização de expressão deixa de ser a linearidade
do TIPO ou captura da multiplicidade informacional caracterizada pela
compartimentalização, sintagmatização e o movimento mecânico, partes extra partes da invenção de Gutenberg, prefigurando a serialização própria ao industrialismo [cf. abaixo Nota sobre a captura da informação pelo TIPO - a Galáxia de Gutenberg].
Tampouco sua função mista tem agregada, como semióticas mais
importantes, a significante (regime de significância) e a
pós-significante (regime de subjetivação). A Nova Mídia tem como
formalização de expressão própria o DESIGN, essencialmente não-linear,
descontínuo, mas por isso mesmo, capaz de passar por remanejamentos
ilimitados que criam uma continuidade de outra ordem. O tipo móvel,
enquanto peça, era moldado, mas o TIPO, enquanto operação, molda e as
mais diversas formas de manipulação do jornalismo não tinham outra opção
senão serem de origem ideológica quando, na verdade, eram o resultado
do agenciamento próprio à Imprensa de Estado. Durante muito tempo, a
noção de ideológico serviu para ocultar esse agenciamento. O DESIGN,
enquanto operação, modula e está em perpétua modulação [cf. abaixo Nota sobre a captura da informação pelo DESIGN - a Conurbação Comunicacional de Mcluhan].
Seu caráter misto agrega a semiótica contra-significante que opera por
“aritmética e numeração”. Com Deleuze e Guattari, novamente encontramos
sua caracterização. Trata-se de “um signo numérico que não é produzido
por nada exterior à marcação que o institui, marcando uma repartição
plural e móvel, estabelecendo ele mesmo funções e correlações,
procedendo a arranjos mais do que a totais, a distribuições mais do que a
coleções, operando por corte, transição, migração e acumulação mais do
que por combinação de unidades” (DELEUZE & GUATTARI, 1995 v.2, p.
70). Uma rede não é nada sem os percursos que nela se fazem
continuamente. Mas os percursos dependem das operações do DESIGN
enquanto regime comunicacional.
Não por coincidência, uma dos componentes para a experiência conceitual de Deleuze sobre a “sociedades de controle” seja o romance Nova Express de
William Burroughs. Ao comentar esse livro, Mauro de Sá Rego Costa
afirma: “Esse [romance] é talvez o texto mais consistente para a
engenharia desse conceito [de ‘controle’]. Um delírio paranóico, é como
soa para os mais resistentes. O tráfico e o vício em drogas (quando fala
em drogas, Burroughs refere-se principalmente a junk, opiáceos,
morfina, heroína, etc.) aparece como a metáfora de todo o sistema de
controle social, o modelo da máquina de controle, que tem seus
correlatos na Mídia, nos governos, na organização das grandes empresas, e
que ele expande ficcionalmente em vertentes bem atuais – pensar a
palavra vírus, por exemplo, e a disseminação de modos de pensar e sentir
através de implantes genéticos em vírus como o do resfriado comum –
formas de guerra biológica ainda não divulgadas”. A máquina de controle
apresenta, como era de se esperar, um agenciamento maquínico de corpos
novos, ao qual corresponde a fina engenharia da Nova Mídia [3]. Deleuze,
ao tratar da transição da disciplina para o controle, busca diferenciar
os seus agenciamentos correspondentes. “Os confinamentos são moldes,
distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma
moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou
como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro” (DELEUZE,
1996, p. 221).
Desta
maneira, temos agenciamentos maquínicos completamente diversos, em se
tratando de disciplina ou controle. “As sociedades disciplinares tem
dois pólos: a assinatura que indica o indivíduo, e o número de matrícula que indica sua posição numa massa.
É que as disciplinas nunca viram incompatibilidade entre os dois, e é
ao mesmo tempo que o poder é massificante e individuante, isto é,
constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, e molda a
individualidade de cada membro do corpo (…). Nas sociedades de controle,
ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número,
mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavra de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto do da resistência)” (Idem, p. 222).
Deleuze passa, na comparação elaborada no trecho acima, do agenciamento
maquínico ao agenciamento de enunciação, do par maquínico
indivíduo-massa ao par enunciativo assinatura-número de matrícula. Na
seqüência, fazendo o caminho inverso, o filósofo passa do agenciamento
de enunciação, próprio ao controle, para o agenciamento maquínico. “A
linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à
informação, ou a rejeição. Não se está mais diante do par
massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se ‘dividuais’, divisíveis, e as
massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou ‘bancos’” (Idem).
Se pensamos nas estradas como uma malha mutável em que cada combinação
de traçados entre os nódulos define uma nova informação, a senha é a
forma de Captura dessa informação – o percurso possível ou o melhor
percurso. Na Imprensa de Estado se emitia palavras de ordem, comandos
como informação. Como esperar um outro jornalismo de Estado nos meios
virtuais se o mesmo é definido por uma formalização de expressão própria
que não muda sem fazer a Imprensa mudar de regime comunicacional? Dadas
as palavras de ordem, sejam nos meios digitais, sejam nos meios
analógicos, temos como correlata a Imprensa de Estado, o que afasta
qualquer assimilação entre TIPO e analógico, de um lado, DESIGN e
digital, de outro (embora outros problemas se coloquem em relação a
isso, mas não poderemos fazê-lo nesse espaço). A Nova Mídia, que
poderíamos chamar de Nova Express, com Burroughs, ou simplesmente de
Nova, não emite palavras de ordem, mas controla o acesso à senha e
estabelece os percursos compossíveis, aqueles que abrem possibilidades
ilimitadas de ações, mas circunscritas por um limite para além do qual
um percurso seria incompossível. Ela é definida não pela transmissão de
informação como palavra de ordem, mas pelo tráfego de informação como
acesso às senhas. O tráfico de informação, os interruptores e desvios
anti-comunicação ficarão por conta das máquinas de guerra
informacionais. Todo o sentido da engenharia hacker é explorar
essa zona de divergência capaz de instaurar caminhos inauditos ou
bloquear caminhos já pré-definidos para convertê-los ao uso da
resistência e da perda de controle.
Do mesmo modo que enunciamos “onde há palavras de ordem há Imprensa de
Estado”, há pouco, é preciso dizer agora: a Nova Express está lá onde se
exerce o controle de informação, lá onde se multiplicam as estradas, lá
onde o tráfego de informação é regido por senhas que licitam ou não um
percurso possível, lá onde se extensificam os meios e se intensificam os
controles. O apanágio da Imprensa de Estado era o de possuir uma
informação, para em seguida fazê-la ressoar nos círculos concêntricos da
sociedade (significância e subjetivação): assim as palavras de ordem
“Exclusivo”, “Ainda hoje nesta edição”, “Em primeira mão”, “O jornal X
teve acesso a…” A Imprensa de Estado é inseparável de um Rosto, onde se
encontra o ponto de subjetivação e o centro de significância, já que
falamos de uma semiótica mista. E é justamente nesse buraco negro que
funciona o TIPO, a Preensão, ou seja, a significância da informação
capturada, mas também a subjetividade especular da linearidade da
informação. A Preensão, o Significante e a Subjetividade compõem o Rosto
da Imprensa. Esta é inseparável da oposição Déspota Emissor-Público
Interpretador. “Tudo é público no rosto do déspota, e tudo o que é
público o é pelo rosto. A mentira, a trapaça pertencem fundamentalmente
ao regime significante, mas não o segredo” (DELEUZE & GUATTARI, 1995
v.2: p. 66). Ora, o compromisso do jornalismo de Estado nunca foi com a
verdade, embora os jornalistas reclamem o contrário, sob a égide da
clareza, da veracidade, da imparcialidade, etc. A Verdade é propriamente
a grande máscara da Imprensa e a “máscara não esconde o rosto, ela o é”
(Idem). O fim último de se capturar a informação em sua forma de
multiplicidade para transformá-la em novidade a ser proferida e
interpretada é dar-lhe a forma do Rosto – a Imprensa de Estado é desde
sempre mentira e trapaça. É inegável que ela contribua para a sociedade,
mas para o socius que a cria e que ela, por sua vez, ajuda a
instaurar. Nesse meio, agindo como Rosto emissor de significantes,
agências detentoras das novidades (as agências de notícia como o “grande
Déspota” e as redações como “sacerdotes interpretativos”) aparecem como
verdadeiros “centros de poder”, pois no estrato em que elas tem origem
“informação é poder”. Por isso a crença de que a Imprensa seja a guardiã
da virtude democrática, espécie de “quarto poder”, do ponto de vista do
sentido moral – a importância da não censura para o bem fluir da
democracia, o que traduzido para um sentido extra-moral seria algo
próximo a: a importância do bom funcionamento de uma censura própria da
democracia, imperceptível tanto quanto a falsidade dessa mesma
democracia. É preciso resistir ao nosso presente denunciando o sentido
moral tanto da liberdade de expressão como já haviam feito Deleuze e
Guattari em relação aos direitos humanos que, como se sabe, “não nos
farão abençoar o capitalismo” (DELEUZE &. GUATTARI, 1992, p. 96).
Entretanto, para o controle, isto é, para a Nova Express o fundamental
já não é possuir informação. O controle funciona menos por confinação do
que por gerência, menos por vigilância e punição do que por
“onipresença ilocalizada”. Nada de moldes por confinamento, mas
controle por modulação. Deleuze não tinha senão os “jogos de televisão
mais idiotas” como situação concreta para pensar nesse agenciamento
comunicacional, correspondendo à formação permanente que tenderia a
suplantar a escola como regime disciplinar. De lá para cá, já cremos ter
ido um pouco mais longe do que o simples smile “Sorria, você
está sendo vigiado”… Já não lidamos com homens individuais compondo uma
massa receptora de informações irradiadas pelo Rosto da Imprensa, pela
vociferação do agenciamento da Imprensa de Estado. Pelo contrário, o
homem do “controlato” compõe a cada momento o seu sistema de
informações, multiplicando os caminhos pelos quais deverá passar,
andando livremente até o infinito do controle. Tal homem já não é
indivíduo, tornando-se pois dividual, ao ser atravessado pelas estradas
que ele mesmo instaura, fazendo de si próprio a cada instante a senha
que o permite continuar – o homem cifrado do controle e da rede.
Nesse sentido, a Nova Express não compõe centros de hierarquização
rígida e segmentação dura, como a Imprensa de Estado. Ou seja, só cabe a
essa última uma linguagem descontínua fazendo ressoar variáveis
independentes pelas quais o indivíduo passa, recomeçando sempre do zero a
cada vez (os confinamentos, do trabalho para casa, de casa para o
trabalho…). O que temos com a Nova Express são os controlatos que atuam
molecularmente, quer dizer, dividualmente como “variações inseparáveis”,
formando um sistema de “geometria variável”. O factual, motivo do
jornalismo de Estado, define o regime que concatena as variáveis
independentes ou os confinamentos próprios da Imprensa de Estado. O
regime da Nova Express não coordena variáveis, mas constitui em si mesmo
uma variação contínua. Tal regime, chamemo-lo de fractual. Na
factualização, um observador é colocado em relação com o tempo a partir
de um fato muito bem determinado que desencadeia os processos de
significância e de subjetivação. O indivíduo, na semiotização factual,
torna-se foco de convergência para o qual as séries dos acontecimentos
tendem. O sujeito, assim originado, será constituído por uma consciência
subordinadora do tempo. A captura da informação é sempre uma captura do
próprio tempo. A linearidade imposta à informação é o resultado de um
corte na multiplicidade temporal, um “risco no caos”. Na fractualização,
ao contrário, o observador é atravessado pelo rizoma temporal, por uma
“variação contínua de direção” que compõe a informação a cada instante,
ao mesmo tempo em que revigora o controle. No primeiro caso, a
consciência do sujeito é demarcada por limites, dentro dos quais se
circunscreve o consenso e a opinião. A Imprensa de Estado instaura o
confinamento próprio à opinião – ou melhor, a opinião é a resultante do
confinamento erigido pela Imprensa de Estado, no plano da expressão,
assim como o prisioneiro é o correlato da prisão, no plano do conteúdo.
Com relação à Nova Express, a consciência é dilacerada em seus limites
justamente por limiares, enquanto pontos de pura divergência, através
dos quais ela escoa. A fractualização não exige nada mais senão a
gerência da informação pela modulação dividual.
Por fim, não sendo primordial o “ter” informação, para o controle o importante é o “design do melhor percurso no meio da informação – o plano de vôo na
informação…” (PIMENTA, 1999, p. 325). Ao Rosto de Cristo da Imprensa de
Estado, o Controle opõe o Culto a Osíris da Nova Express. “Para Osíris o
templo era a própria divindade. Um templo inteiramente preenchido por
informação, gravada sobre paredes e colunas. O ritual religioso não
consistia em memorizar qualquer tipo de informação específica,
reproduzi-la ou repeti-la à exaustão – como acabou por acontecer em boa
parte das outras religiões. Para o culto de Osíris – cunhado no templo
de Abydes – o ritual sagrado significava percorrer uma trilha na
informação (PIMENTA, 1999).
Nota sobre a captura da informação pelo TIPO- a Galáxia de Gutenberg.
A grande operação maquínica da Imprensa como regime comunicacional consistiu em ter eliminado os traços de expressão ou valências da multiplicidade informacional,
constituindo o que chamamos de TIPO e, assim, tornar possível a
reprodutibilidade em massa e em alta velocidade, formando uma memória ou
“história universal”: a galáxia de Gutenberg, mas também a “memória
prodigiosa” de “Santiago”, no filme de mesmo nome de João Moreira
Salles. Tal procedimento deu-se pela preensão, por parte da Prensa de
Gutenberg, do phylum metálico. O caráter da informação como abertura plena de valências foi preensado pelo TIPO metálico, operando o ocaso da plurivocidade dos phylums seguidos até então, tanto no que toca às singularidades ou hecceidades espacio-temporais, ou seja, torções materiais ou extensivas, quanto às qualidades afectivas ou traços de expressão, ou seja, gradientes intensivos ou expressivos. O que o regime da Imprensa de Estado opera é uma verdadeira “captura do phylum,
[toma] os traços de expressão numa forma ou num código, [faz] ressoar
os buracos conjuntamente, [colmata] as linhas de fuga, [subordina] a
operação tecnológica ao modelo do trabalho, [impõe] às conexões todo um
regime de conjunções arborescentes. (DELEUZE & GUATTARI, 1995 v.5,
p. 100). Mas a emergência do TIPO não pode ser separada de agenciamentos
concretos informacionais diversos que caracterizam a Idade Média. Nesse
sentido, se a Máquina Informacional encontrou na oralidade, através de
rapsodos, jograis e trovadores, um agenciamento propício para fazer uma
linha de fuga da Estratificação Monacal da Alta Idade Média, não é menos
verdade que, a partir do século XII, ela conjura diferentemente esse
mesmo Estrato estabelecendo conexões entre uma maquinaria
urbano-comercial nascente e uma máquina intelectual emergente, além de
encontrar na escrita um agenciamento eficaz para fazer passar essas
multiplicidades (a produção intensiva e melhorada de livros como
conversão do saber em valor a ser posto em circulação no espaço urbano; o
intelectual como homem de ofício e as escolas como oficinas, como
mostrou J. Le Goff).
Num tal contexto, o aparecimento da Imprensa não constitui um grande
martelo secretor do novo. A novidade dessa Imprensa já não tem o sentido
de tudo aquilo que é intempestivo, diagramático, força ainda não
formalizada, matéria ainda não formada, pura diferença que a Máquina
Informacional não cansa de repetir. Rizzini, quando trata da tipografia,
refere-se a ela como sendo “[...] menos uma invenção do que um
aperfeiçoamento da arte de imprimir” (RIZZINI, 1988, p. 123). De fato,
ao “[...] surgirem com Gutenberg as letras soltas fundidas em metal,
praticava-se comumente a impressão com letras soltas de madeira e,
antes, com letras em tábuas esculpidas e perecíveis, muito mais baratas e
em profusão” (Idem). No entanto, apesar disso, é correto dizer que a
prensa móvel cria um novo agenciamento. A informação só pode ser
definida como agenciamento próprio à impressão quando considerada de
dois modos: sem ser somente o trabalho de mãos sobre madeira, ou
qualquer outro material, fazendo a letra e o trabalho desta última sobre
qualquer outro objeto menos duro, ela está ligada também a um regime de
signos, ou seja, a uma semiótica incidindo sobre singularidades
enquanto traços de expressão. Isso quer dizer que o agenciamento da
impressão mobiliza certas variáveis que concorrem para a elaboração de
uma marca “[...] deixada por um objeto ou saliência noutro objeto menos
duro” (Idem, p. 124). Quais seriam essas linhas de variação? No caso da
impressão, não somente a variação incide sobre uma diversidade de seres,
corporais como o barro, o metal, a areia, a madeira, etc., e até
incorporais, no sentido, por exemplo, como diz Rizzini, de imprimir
coragem a alguém, mas tomando-se cada um destes seres isoladamente é
possível sempre seguir diversas linhas de variação (o tipo de madeira,
seu preparo prévio, a origem do metal, o cozimento do barro, etc.). Isso
implica que, no regime de impressão, os traços de expressão seguem um
determinado phylum,
num modo que se pode chamar de “conexão”. A impressão, de modo geral,
refere-se a um dispositivo abstrato que se define por funções e matérias
informais, ignorando toda distinção prévia de forma, o que será abolido
pela formalização do TIPO, que marca a emergência da Imprensa de
Estado. Esse dispositivo abstrato emite singularidades que serão
seguidas por traços de expressão estabilizando num determinado estrato,
ele mesmo já um sistema instável, em constante desequilíbrio (o desgaste
do metal, a onda que apaga os sinais na areia da praia). Os materiais
citados, areia, madeira, barro, metal, são diferentes phylums maquínicos,
pois as singularidades ou operações entre eles divergem. Mas em cada um
deles haverá igualmente variação de singularidade ou operações.
Um phylum maquínico em variação “cria” os agenciamentos técnicos, “[...] ao passo que os agenciamentos inventam os phylums
variáveis” (DELEUZE & GUATTARI. 1995 v.5, p. 89). Quer dizer, os
agenciamentos selecionam, organizam e alinham as singularidades de forma
que o phylum
de onde elas vêm passa em tal lugar e em tal momento. Rizzini dá-nos
uma visão dos vários agenciamentos de impressão antigos. “Os babilônios e
assírios inscreviam em pedras, com o escropo, e, em peças de barro
cozido, com tábuas gravadas. (…) Os romanos estampavam o pergaminho e o
papiro prensando-os com pranchas talhadas, e autenticavam documentos
calcando numa mistura de giz e cera o selo individual cinzelado na pedra
do anel. Ressaltavam o abecedário em matéria durável, como se vê de
Quintiliano: ‘Reprovo o hábito de excitar-se o zelo das crianças
dando-lhes a brincar letras de marfim’ (…)” (RIZZINI, 1988, p. 125).
Cada um desses agenciamentos mobilizava uma certa matéria, desempenhando
tal ou qual operação, seguindo tais e tais singularidades. O que
importa reter aqui é que sempre se trata de agenciamentos de tipo
nômade, ou seja, a antigüidade e quase toda a Idade Média são
atravessadas por uma grande Máquina Nômade de Impressão, posto que os phylums
são diversos. Imprimir, nesse sentido, era sempre uma atividade
itinerante, ambulante. Não basta, acreditamos, ver o período que
antecede ao surgimento do TIPO como uma época de precariedade da
impressão, de “inevolução”, como diz Rizzini. Parece-nos, nesse sentido,
que não bastava reproduzir uma letra ou um desenho, talvez mesmo essa
finalidade fosse secundária. Era preciso antes desenhar na
materialidade, escrever com os phylums.
Era menos uma questão de decalque, de um texto ou de uma imagem, do que
de uma plurivocidade das formas de expressão, de uma cartografia
inscrita diretamente na materialidade, seguindo seu “impulso vital”: um
devir-metalúrgico, um devir-vegetal, um devir-lama, enfim, um
devir-nômade.
Nota sobre a captura da informação pelo DESIGN – a Conurbação Comunicacional de Mcluhan.
Sem poder desdobrar a questão do phylum
tecnológico próprio ao Controle de maneira pormenorizada,
contentemo-nos em apontar algumas pistas. É possível falar de um
“Programa” próprio à Captura da informação operada pela Nova Mídia. “O
estudo sócio-técnico dos mecanismos de controle, apreendidos em sua
aurora, deveria ser categorial e descrever o que já está em vias de ser
implantado no lugar dos meios de confinamento disciplinares, cuja crise
todo mundo anuncia” (Conversações, p. 225). Bernard Stiegler afirmou
certa vez, questionado sobre o assunto após um de seus cursos, que o
texto de Deleuze sobre as Sociedades de Controle era de certa maneira um
movimento desesperado de quem sempre privilegiou, em sua filosofia, uma
análise do tempo (seu profundo bergsonismo), em detrimento das
considerações sobre o espaço. Porém, os problemas colocados pelas
práticas comunicacionais contemporâneas ganham nova significação à luz
de uma filosofia que se interessou, para além da simples dualidade entre
o espaço e o tempo, ao que Deleuze chamava de spatium intensivo, seus n
graus enquanto espaços ou blocos de espaços diversos, inclusive de
tempo. O controle, no agenciamento da Nova Mídia, é definido como um
“design” na informação. É que a imagem e a visão estão intimamente
ligadas ao controle. Se o TIPO foi considerado por nós como a
formalização de expressão própria da Imprensa de Estado, é preciso
reconhecer nesse momento o DESIGN como a forma de captura própria da
Nova Mídia, sua formalização específica. A opinião
atualiza o confinamento engendrado pela formalização do TIPO, ou seja, a
transmissão massiva de palavras de ordem. É isso que vemos o jornalista
Lousteau enunciar para o poeta de Angoulême em Ilusões Perdidas
de Balzac, quando ao primeiro surge a possibilidade de dirigir um
jornal e ao segundo a de escrever nele. “Ainda às cinco horas, no
Luxemburgo, você não sabia que decisão tomar; está agora em vésperas de
tornar-se uma das cem pessoas privilegiadas que impõem opiniões à
França. Dentro de três dias, se formos bem-sucedidos, você poderá, com
trinta piadas impressas à razão de três por dia, fazer um homem maldizer
a vida. Poderá obter favores de todas as atrizes dos seus quatro
teatros; poderá fazer fracassar uma boa peça e fazer toda Paris acorrer a
uma péssima” (BALZAC, 1978, p. 162). Em compensação, o “fluxo” ou a
“singularidade” virtualiza o controle engendrado pela formalização do
DESIGN. Em suas “Moralidades Pós-Modernas”, Jean-François Lyotard bem vê
esse novo Regime Comunicacional como a instauração capitalística de uma
nova moralidade. “O que o capitalismo cultural descobriu foi o mercado
das singularidades. Que cada um exprima sua singularidade. Que fale em
seu lugar na rede sobre sexo, etnia, língua, faixa etária, classe
social, inconsciente. Dizem hoje que a verdadeira universalidade é a
singularidade” (LYOTARD, 1996, p. 14). Já não nos deslocamos e tomamos
atitudes a partir de opiniões recebidas ou emitidas. Não formamos uma
massa que opina, através da imposição de palavras de ordem pela Imprensa
de Estado. Na ilimitada conurbação comunicacional
em que se converteu o Ocidente, a Nova Mídia faz de cada um uma
singularidade e, ao mesmo tempo, um turista da informação – não um
leitor de jornal, mas um designer na rede, de qualquer forma, um fluxozinho e seu frenesi contínuo.
É evidente que um Regime não suplantou o outro. Todas as trocas e
alianças são possíveis. Desse ponto de vista, o personagem “Santiago”,
ideal enciclopédico do TIPO, citado acima, aparece agora como um trajeto
possível, instantâneo, através de uma palavra privilegiada, no Google
[4]. Lidamos com uma Máquina Abstrata, que outra não é senão a do
Capital. Os regimes comunicacionais de que tratamos constituem variações
do agenciamento de enunciação próprio à Máquina Abstrata do Capital,
tendo como correlatos agenciamentos maquínicos, ou seja, phylums
tecnológicos correspondentes. Se assistimos, realmente, a uma
desterritorialização da Máquina Abstrata do Capital, saindo do
“capitalismo de produção e de propriedade” (sociedades disciplinares) e
se reterritorializando no “capitalismo de sobre-produção” (sociedades de
controle) (DELEUZE, 1996, p. 223), temos um deslocamento também com
relação ao phylum
maquínico. “As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas
simples, alavancas, roldanas, relógios, mas as sociedades disciplinares
recentes tinham por equipamentos máquinas energéticas, com o perigo
passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de
controle operam por máquinas de uma terceira espécie, máquinas de
informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e, o
ativo, a pirataria e a introdução de vírus. Não é uma evolução
tecnológica sem ser, mais profundamente, uma mutação do capitalismo”
(Idem). Igualmente, se for verdadeiro o relativismo completo, a
pressuposição recíproca e o paralelismo entre Expressão e Conteúdo,
teremos um mesmo deslocamento no plano do agenciamento de enunciação. De
fato, à passagem da Imprensa de Estado para a Nova Mídia, corresponderá
o deslocamento do TIPO para o DESIGN. Quer dizer, ao movimento da
Máquina Abstrata do Capital deixando o “capitalismo de produção” para se
deter sobre o “capitalismo de sobre-produção” podemos conjugar o
movimento que vai da Imprensa de Estado para a Nova Mídia.
No século XIX, talvez pela primeira vez, “a tortura para a obtenção da
confissão passou a ser gradualmente substituída pela espionagem – o
Ocidente descobria que todo o ato humano deixa vestígios e que,
portanto, bastava procurar por eles!” (PIMENTA, 1999, p. 343). Já nesse
momento, pode-se observar a lenta emergência do DESIGN como forma de
Captura da informação, ou seja, como constituição de trilhas possíveis
na informação. Essas trilhas são determinadas por algoritmos que
permitirão as passagens dos fluxos e dependem, em grande parte, do fino
trabalho de engenheiros. Os dispositivos de controle convertem os pontos
das megalópoles em imensa rede, que por sua vez articula as cifras
citadinas e suas conexões rodoviárias, metroviárias, ferroviárias,
energéticas, de telecomunicações, etc., formando uma ilimitada
conurbação comunicacional, onde é sempre possível cifrar uma matéria
“dividual”, em círculos ou segmentos cada vez mais amplos, mas também em
círculos ou segmentos cada vez mais moleculares. “Os indivíduos
tornaram-se ‘dividuais’, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras,
dados, mercados ou ‘bancos’” (DELEUZE, 1996, p. 222). A dividualidade do
mercado e das amostras humanas proporcionam o controle dos fluxos que
passam a ser cifrados em percursos muito bem destacados, em trilhas no
banco de informação. A conurbação comunicacional
enquanto “detenção sem muro” (Facção Central). Cada algoritmo e cada
senha que licita ou não um percurso define a articulação de fluxos num
determinado DESIGN, surgindo como os corredores ilimitados da detenção
sem muro. Não há clausura alguma, trafegamos “livremente” pelas
estradas, pelas infovias, somos mesmo um fluxozinho, mas somos
perfeitamente controlados.
Não há hoje crise das instituições, inclusiva da Imprensa de Estado,
senão na medida em que se desenvolve uma nova forma de dominação, da
qual a Nova Mídia participa ativamente. No plano dos regimes
comunicacionais, o DESIGN aparece como a molecularização da Opinião,
como nanopolítica da subjetividade, mas também como política
dividualizante para grupos humanos e não-humanos, convertidos em
amostras. Não tem sido fácil, como já advertia Deleuze, descobrir a que
estamos sendo levados a servir, nunca sendo demais lembrar que “os anéis
de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma
toupeira. (DELEUZE, 1996, p. 226).
[1]
O uso insurrecional de novas mídias no Brasil é uma “novidade” em
parte, já que ele deve ser compreendido num consistente e complexo
movimento que abrangeu, desde a década passada, a existência do Mídia
Tática, do Digitofagia, do CMI, do estranho e “obscuro precursor” que
foi Ricardo Rosas, nos antípodas do notório e claro atrator em que têm
se convertido alguns ativistas em suas redes. Conforme, por exemplo, o
manifesto do Mídia Tática: http://mtb.midiatatica.info/in_manifesto.htm
[2]
Assim, a concepção arborescente do jornalismo ou o “jornal” definido
como forma de interioridade da informação: “Encarado como instrumento
elementar de comunicação, surgiu [o jornal] quando, à transmissão oral,
direta e imediata, sucedeu a simbólica, mediata e indireta, concebida
para representar os fatos cuja lembrança se queria resguardar e
transmitir. Até onde chega a nossa penetração na Antigüidade, lá
encontramos – em pedra, pau, metal, barro, concha, fibra, pele e papel –
o jornal, isto é, a informação rudimentar de algum acontecimento
contemporâneo conservado pelos símbolos” (RIZZINI, 1988, p.3).
[3]
– Assim, muito se fala sobre o papel das novas mídias nas insurreições,
revoltas, manifestações, por exemplo, na Primavera Árabe. Porém, pouca
atenção é dada à ativa participação dos engenheiros das Redes Sociais
(Twitter, Facebook, Google, etc.) que, no caso da Tunísia, lançaram mão
de dispositivos técnicos para impedir o sucesso da tentativa do Regime
em capturar os dados privados, mensagens e senhas dos manifestantes e,
no caso do Egito, disponibilizaram meios paliativos para os
manifestantes usarem suas redes sociais diretamente através de mensagens
de seus celulares, já que o Regime bloqueou a própria Internet,
impedindo qualquer circulação de informações. Nesses exemplos, é
possível ver não uma romântica potência revolucionária das novas mídias,
mas a interferência geopolítica – que, num contexto eventualmente
diverso, poderia ser outra – de engenheiros de redes sociais. Por isso, a
importância de uma contra-engenharia ou de uma engenharia hacker, como
se verá adiante. Quanto ao open data,
seu potencial em termos de resistência é medido em função justamente da
liberação (publicação) de informações cujo segredo fazia o poder de
instituições no regime comunicacional da Imprensa de Estado. Com a
publicação efetiva dos data,
constitui-se uma imensa memória digital, a partir da qual novos
sistemas de integração, no agenciamento comunicacional próprio à Nova
Mídia, deverão ser constituídos, abrangendo diversos estratos de uma
matéria comum que, do molecular ao cósmico, vai do genoma aos
constituintes da matéria. Mas é do ponto de vista do salto nessa imensa
memória ontogenética que necessitamos analisar não somente as
integrações, mas também as resistências, uma “farmacologia geral” que
toma a técnica como fator de intensificação de processos de individuação
liberadores (“remédio”) ou como fator de desintegração ou de
implementação de formas de capturas (“veneno”). Assim, Stiegler,
“terapeuta”, pensa a passagem do “capitalismo consumista”, analisado
por Marcuse, após Marx ter analisado o “protocapitalismo”, ao “terceiro
modelo industrial”, lançado pela escola de Chicago e globalmente
implantado com a crise de 2008, como sendo inseparável da constituição
de uma nova “politeia”
planetária, a qual, por sua vez, não é um retorno às origens gregas da
democracia sem ser também a instauração de um novo “cuidado com o mundo”
e com a vida. Cuidado que passa pela implementação e intensificação da
escritura em sua era digital, seu processo colaborativo, sua
descentralização, sua potência heterogeneizante e horizontalizante,
criando uma “situação nova sobre o plano econômico e político”, exigindo
uma atualização de Marx e evidenciando ainda uma vez a inseparabilidade
da “evolução humana” e da “evolução da técnica (técnica que, do ponto
de vista ao qual nos coadunamos e que vai de Simondon a Stiegler, faz
parte da “natureza” – physis – humana, sendo justamente a dimensão capaz
de transformar, entre outras coisas, sua natureza). Certamente, esse
novo processo econômico-político implica uma “reconquista do saber”, uma
“desproletarização”, mas como apontamos aqui, novos modos de
proletarização, aquilo que os nômades, na esteira de G. Cocco e T.
Negri, chamam de “exploração 2.0″ (cf. http://uninomade.net/tenda/o-comum-e-a-exploracao-2-0/). De
todo modo, as mídias empíricas ditas “livres” nada são sem os regimes
comunicacionais, propriamente transcendentais: a mediação que define a experiência possível do comum e a imediação que determina o comum como experiência real.
Quando resultam dessa última operação transcendental, as mídias livres
(mas também qualquer outra) seriam designadas com mais precisão como imídias.
[4] – Boris
Groys propõe uma interessante análise dos modos de dialogismo entre a
vida humana e o mundo, sendo que a Internet, como modo contemporâneo de
questionar o mundo e dele receber resposta, teria suplantado o modo
tradicionalmente usado para isso: a linguagem gramaticalmente
organizada. Ao contrário desta última, o Google liberaria as palavras da
gramática, impondo um novo modo de aceder ao conhecimento verdadeiro.
Esses dois modos de diálogo determinam mesmo o exercício filosófico. A
Gramática e o Google como duas “máquinas filosóficas” distintas deveriam
ser entendidos, sobretudo, como dois regimes comunicacionais. De um
lado, “a gramática é o meio pelo qual a linguagem tradicionalmente criou
uma hierarquia entre as palavras. E essa hierarquia informou e mesmo
determinou o modo pelo qual o questionamento filosófico tradicional do
conhecimento e da verdade funcionou”. Por outro lado, “o Google
pressupõe a libertação de palavras individuais de suas cadeias
gramaticais, de sua sujeição à linguagem entendida como uma hierarquia
de palavras gramaticalmente determinada”. Essa liberação do confinamento
da Gramática inaugura um novo regime comunicacional determinado pela
migração das palavras por toda direção. “A trajetória dessa migração é a
verdade de uma palavra individual tal como é exibida pelo Google. E a
soma de todas essas trajetórias é a verdade da linguagem como um todo”.
Contudo, nota-se facilmente que a liberação das palavras dos “contextos
normativos”, que bem se aproximam do regime comunicacional que chamamos
de OPINIÃO, logo se revela limitada por outra ordem de poder, o controle
técnico-político representado pela pré-seleção, através dos “mecanismos
de busca”, de contextos quaisquer nos quais certas trajetórias, ou o
que chamamos de DESIGN, serão privilegiadas às expensas de outras, tidas
por irrelevantes ou “secretos” ou priorizadas a partir de “contextos
ocultos” (por ex. hábitos de busca do usuário), cf. Boris Groys, Google. Palavras para além da gramática, traduzido por Alexandre Nodari, inhttp://culturaebarbarie.org/sopro/verbetes/google.html#.UgZfj5Lryo4
Referências
BALZAC, Honoré. Ilusões Perdidas. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
COSTA, Mauro de Sá R.. Nova Express e as Sociedades de Controle. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2002.
DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.
DELEUZE, G. & GUATTARI, F.. O que é a filosofia? Lisboa: Presença, 1992.
___________&___________. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, v2 e 5. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
LYOTARD, Jena-Fraçois. Moralidades Pós-Modernas. Papirus: Campinas, 1996.
PIMENTA, Emanuel D. de M.. Teleantropos. Lisboa, 1999.
RIZZINI, Carlos. O Livro, O Jornal e a Tipologia no Brasil. Imprensa Oficial do
Estado: São Paulo, 1988.
SERRES, Michel. A Comunicação. Ed. Res: Porto.
SFEZ, Lucien. Crítica da Comunicação. Loyola: São Paulo, 1994.
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