agosto 03, 2013

"É o povo que pode mudar a saúde", por Ana Maria Costa

PICICA: "Para que o estado brasileiro assumisse suas obrigações definidas pela Constituição, o Brasil não poderia ter caído no conto da sereia do neoliberalismo incorporado nos anos noventa e do qual ate hoje não se desvencilhou. As políticas sociais universalistas são incompatíveis com a escolha de um estado enxuto, com poucas e restritas atribuições que é a marca do neoliberalismo. O SUS teria mais chance de ser viabilizado na sua plenitude se o Brasil tivesse pendido por se transformar em um estado de bem estar social.

É o povo que pode mudar a saúde


É o povo que pode mudar a saúde De Ana Maria Costa, presidenta do Centro Brasileiros de Estudos de Saúde (Cebes) - publicado pelo Jornal O Globo em 30/7/2013 e pelo Viomundo
 
O país, os governos e a classe política foram desnudados pelo povo nas ruas, que denunciou as precárias políticas públicas do Brasil, incluindo as de saúde. Impossível escamotear e, com o problema explicitado, o momento pode ser de mudanças de caminhos e rumos.

Começar por reconhecer que, de fato, as coisas estão muito mal com a saúde, o que não significa que o problema seja com o SUS, um sistema único criado pela Constituição de 89 com arquitetura e princípios adequados para ser universal e de qualidade.

É preciso identificar que, nestes 25 anos, o SUS sobrevive pela paixão e dedicação dos seus defensores e ativistas, particularmente os trabalhadores e gestores que dão conta de transformar suas deficiências orçamentárias em mecanismos de sustentação para uma sobrevivência espetacular.

Aos trancos e barrancos a atenção básica vem expandindo sua cobertura; a emergência antes inexistente é hoje realidade para grande parcela da população e é no SUS, com toda sua carência, que são tratadas as doenças de alto custo terapêutico.

Mas ainda estamos muito distantes daquele projeto político talhado na oitava conferência nacional de saúde e que saiu dali para a Assembléia Constituinte e mediante a pressão popular, transformou a saúde em direitos universais sob a responsabilidade pública.

E é preciso reafirmar que o pacote de medidas do governo, mesmo tangenciando velhas pendências como a formação de profissionais de saúde ou mesmo a interiorização de médicos, não tem potencial de impactar substancialmente o atual caos em que a saúde se encontra.

Para mudanças radicais e definitivas, é preciso identificar, analisar e expor as razões pelas quais o projeto do SUS desandou. E mesmo com muitos problemas, não foi por má gestão, como muitos querem vaticinar.

Para que o estado brasileiro assumisse suas obrigações definidas pela Constituição, o Brasil não poderia ter caído no conto da sereia do neoliberalismo incorporado nos anos noventa e do qual ate hoje não se desvencilhou. As políticas sociais universalistas são incompatíveis com a escolha de um estado enxuto, com poucas e restritas atribuições que é a marca do neoliberalismo. O SUS teria mais chance de ser viabilizado na sua plenitude se o Brasil tivesse pendido por se transformar em um estado de bem estar social.

Nessa opção, os sucessivos governos vêem assumindo cada vez mais a eleição pelo mercado, alegando que o custo da saúde é alto e que o sistema é mal gerenciado. Com isso, vem crescendo o setor privado da saúde no país, mesmo em desobediência aos preceitos Constitucionais.

Renúncia fiscal e benefícios tributários são apenas algumas das facilidades aliadas a uma regulação enviesada praticada pela ANS, que, de forma tendenciosa, favorece o mercado. A agência reguladora das prestadoras de serviços de saúde sob a forma de planos privados tem sido sistematicamente dirigida por quadros do setor regulado.


Ao tempo em que hoje 30% da população aderiu aos planos privados, os recursos públicos destinados para o SUS mínguam a míseros 300 dólares per capita/ano, constrangendo o sistema a uma péssima avaliação e satisfação popular.

A fórmula perfeita foi encontrada para o sucesso de um projeto anti-SUS, antidireito a saúde, antidireitos sociais, e, de sobra, as empresas da saúde comparecem nos processos eleitorais com polpudas contribuições que, ao fim e ao cabo, não resultam gratuitas. Um ciclo pernicioso que somente poderá ser revertido com a força e o poder popular.

Nesta mudança, primeiro é necessário convencer a sociedade e o estado brasileiro de que a saúde é investimento, e não gasto, como os setores da economia tradicionalmente a tratam. Hoje, o PIB setorial conta com a participação de menos de 40% dos recursos públicos e a grande parcela vem do bolso das famílias. Como assim?

O sentido ético e político dessa inversão para investimentos confere outra lógica aos governos quanto ao tratamento e às decisões destinadas ao setor público da saúde e ao SUS, que precisa de outro tratamento para ser consolidado e se transformar naquilo que a população aspira. 


Publicado em 28/7/13 

Fonte: Cebes

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