PICICA: "Os que afirmam tratar-se de uma
experiência pós-capitalista deveriam debruçar-se mais sobre as formas de
enriquecimentos pré-capitalistas. Nomeadamente a Igreja Católica que,
através da doação voluntária de bens materiais e da crença no “trabalho é
vida” de monges e frades, conseguiu acumulações de capital colossais
nos conventos e mosteiros, bem como nos cabidos das sés,
transformando-os em grandes proprietários. Foi através da dedicação
daqueles que acreditavam no projeto que o Vaticano conseguiu ser o que é
hoje nos planos empresarial e financeiro, algo que em tempos de rancor
chamávamos de acumulação primitiva de capital.
Com a primeira parte deste artigo
chamamos a atenção para o que escrevemos há dois anos, quando insistimos
no caráter empresarial do Fora do Eixo, perante muitos leitores céticos
ou mesmo indignados conosco. Hoje esse caráter empresarial está latente
aos olhos de todos e só não o vê quem precisa não o ver. Mas não nos
limitamos a reafirmar o que já havíamos escrito, porque pretendemos
aprofundar a análise. Tentamos mostrar que o Fora do Eixo conjuga uma
vertente econômica tradicional, com mais duas vertentes: uma vertente
gângster, ou seja, uma economia do submundo, onde as pressões físicas e
psicológicas se somam às fraudes e aos calotes; e uma vertente que imita
as técnicas religiosas de acumulação do capital, em que os crentes —
que no caso do Fora do Eixo se intitulam “membros” — são confinados em
espaços clausurados e em que todos dão o que têm para um patrimônio
comum, queremos dizer, em que a doação é comum, mas o patrimônio é
aproveitado por poucos, pelos detentores de “lastro”. É com base nessas
três vertentes econômicas que se lança a Mídia NINJA, objeto do nosso
próximo artigo."
Acabou a magia: uma intervenção sobre o Fora do Eixo e a mídia NINJA (1ª parte)
16 de agosto de 2013
A devoção transforma-se num
regime de exaustão e de submissão, em que o esgotamento físico e mental
impedem o ensaio de qualquer auto-organização e de espírito crítico. Por Passa Palavra
Na noite do dia 05 de agosto de 2013, a
participação de Pablo Capilé e Bruno Torturra no programa Roda Viva,
“idealizadores” da Mídia NINJA (Narrativas Integradas de Jornalismo e
Ação), disparou um intenso debate nas redes sociais e demais fóruns da
internet. Então veio à tona questões para as quais desde há dois anos o
Passa Palavra chamava a atenção: o caráter empresarial do coletivo por
trás da Mídia NINJA, o Fora do Eixo, sua relação com os financiamentos
públicos e privados, aspectos hierárquicos de seu funcionamento interno e
a prática exploratória sobre a produção artística, cultural e simbólica
de agentes mais ou menos ligados ao circuito.
1. Velhos truques
A
inserção do Fora do Eixo nos movimentos sociais não é um fato novo. Em
2011, sua participação na Marcha da Liberdade gerou também um intenso
debate no Passa Palavra sobre os perigos da proximidade entre
os chamados novos gestores culturais e os movimentos sociais. Neste
sentido, uma nova tentativa de capitalização e difusão de sua marca nas
jornadas de lutas contra o aumento das tarifas do transporte coletivo e o
que se seguiu nas ruas de todo o Brasil não deveria parecer novidade. A
diferença entre a aproximação do FdE
na Marcha da Liberdade e nessas últimas manifestações é que, dessa vez,
o coletivo-empresa não era desconhecido nos meios militantes e, talvez
por isso, não chegou oferecendo sua carta de serviços para compor a
organização dos atos, como tentou fazer dois anos atrás. Durante a
jornada recente, o FdE
procurou se implantar nos movimentos sociais diretamente com sua
estrutura, por uma via que não levantasse suspeitas sobre o seu caráter
militante. Como quem não quer nada, os FdE
apresentaram-se como algo diferente, como uma equipe de comunicação
supostamente independente e, mais importante, aparentemente descolada da
marca Fora do Eixo. Isso possibilitaria que a empresa não criasse
atritos com os meios militantes autônomos (ou pelo menos mais à
esquerda) ao mesmo tempo que angariava jovens ativistas voluntários ao
novo empreendimento (afinal, era quase impossível contabilizar o número
de pessoas nas manifestações tirando fotos ou filmando os atos com seus
celulares).
Um exemplo dessa tentativa de descolamento do FdE
foi uma reunião realizada com a Frente de Luta contra o Aumento de
Goiânia, em meados de julho, com o objetivo de formar um coletivo Ninja
naquela capital. Questionada a esse respeito, Fernanda Costa, que se
apresentou como uma “agente da Mídia Ninja”, afirmou vagamente que havia
apenas uma “parceria” com o Fora do Eixo, não mais que isso, como
tantas outras parcerias realizadas pelo país. Para ilustrar a situação, a
representante dos Ninjas chegou a equivaler a “parceria” com o FdE
a uma outra supostamente feita com o movimento Mães de Maio, de São
Paulo – o que talvez na sua avaliação comprovasse o caráter ativista da
empreitada. Hoje é mais do que sabido que a Mídia NINJA não mantém
relação com o FdE, simplesmente porque ela é o FdE, um novo ramo de negócio do nosso já conhecido coletivo-empresa.
A estrutura da Mídia NINJA funciona com
um núcleo central em São Paulo, com mais ou menos 8 pessoas, e com um
número flutuante de colaboradores em outros estados, principalmente em
capitais como Belo Horizonte, Porto Alegre, Belém do Pará, Brasília, Rio
de Janeiro e Salvador. Para montar uma nova sucursal dos ninjas, os
novos voluntários são instruídos a aderir ao projeto através do
preenchimento de um cadastro.
Nele, a pessoa indica a sua disposição em ajudar, em qual área ela
pretende atuar e o quê ela tem a oferecer em termos de auxílios
materiais. Esta seria a forma de financiamento colaborativo apontada por
Fernanda Costa. Haveria ainda, segundo a representante, a possibilidade
de disponibilização de materiais e instrumentos para a utilização nos
núcleos ainda em fase de formação. E aqui entraria a vaga parceria com o
FdE, fornecendo parte da
estrutura acumulada em seus anos de existência, através da exploração de
trabalho não pago de artistas e colaboradores da empresa.
No projeto exposto por Bruno Torturra,
na entrevista do Roda Viva, o objetivo do Fora do Eixo com seu braço
jornalístico, a Mídia NINJA, seria o de se contrapor aos grandes
conglomerados dos meios de comunicação do Brasil. Com a centralização em
site único da captação das imagens das sucursais existentes em algumas
cidades, o Fora do Eixo poderia controlar o que se vem chamando de
“cobertura alternativa” das manifestações organizadas por diversos
movimentos sociais. Ainda de acordo com Fernanda Costa, não haveria uma
linha editorial a nortear os trabalhos, senão um critério de seleção que
seguiria um “padrão estético” e a correção ortográfica, realizada pelas
pessoas responsáveis pela página que hoje existe. O funcionamento desta
estrutura passaria, desta forma, da produção do conteúdo pelas pessoas
dispersas e inseridas nas manifestações para esta equipe central, que
cumpriria o papel de selecioná-los e corrigi-los.
Em reportagem veiculada por O Globo é
relatado um debate ocorrido no Rio de Janeiro sobre a tentativa de se
buscar recursos públicos para o financiamento do site da Mídia NINJA a
partir de editais públicos da cultura. Apesar de esta ser uma das
práticas comuns de captação financeira do Fora do Eixo, a reportagem
evidencia a existência de uma polêmica sobre a aceitação ou não deste
tipo de financiamento entre os membros do coletivo. Frente à
desconfiança em se aceitar este tipo de recurso para a estruturação do
projeto, Pablo Capilé afirmou não ver problema nesta prática,
argumentando ainda que “Só no Rio, já existem 200 grupos que gostariam
de ter mais estrutura. Sem recursos, dificilmente conseguiremos dar a
eles mais suporte. Temos que disputar políticas públicas, como faz a
grande imprensa, que cria formas de receber esse dinheiro”.
Fazer como a grande imprensa na captação
de financiamento público é o que propõe Capilé para que o Fora do Eixo e
a Mídia NINJA possa conseguir dar “suporte” aos grupos interessados na
nova prática midiática. Mas será que a semelhança entre o Fora do Eixo e
as demais corporações de comunicação brasileira ocorre apenas no âmbito
da captação dos recursos? Ou a semelhança vai além desta disputa
financeira, se revelando também na organização interna do Fora do Eixo?
2. A empresa Fora do Eixo e o “núcleo durável”
A
já famosa entrevista dos dois ninjas ao Roda Viva acabou sendo também
um tiro pela culatra. Apesar da primeira onda de comentários ter sido
caracterizada por uma grande quantidade de elogios que surgiram nos
meios virtuais sobre o embate com os representantes da mídia corporativa
e como os ninjas conseguiram quebrar os argumentos dos velhos
jornalistas, começaram a aparecer, logo em seguida, relatos de
experiências concretas de artistas e colaboradores internos do Fora do
Eixo, os quais contradizem frontalmente o argumento de uma organização
horizontal e participativa.
No primeiro relato, que alçou
notoriedade no Facebook, Beatriz Seigner expôs como o Fora do Eixo
utilizou de sua produção artística para conseguir financiamento público e
organizar eventos com a distribuição de seu filme.
Em seguida, Lais Bellini narrou
detalhadamente as relações de trabalho que vigoram na Casa Fora do Eixo
em São Paulo, quartel general da empresa, confirmando aspectos que o
Passa Palavra já havia desenvolvido aqui.
Primeiramente, as noções de horizontalidade, participação igualitária e
existência comunitária – sempre aludidas pelas grandes figuras e demais
intelectuais ligadas à empresa – caem por terra quando a ex-integrante
relata a existência de um “núcleo duro” que controla a organização
interna dos espaços e das pessoas que lá laboram. Ainda segundo Laís
Bellini, o núcleo duro “é o grupo que está mais envolvido com a rede,
dentro de um ponto (numa cidade) da rede e, por conseqüência, tem mais
poder de fala, mais poder de decisão, mais poder, enfim, ou melhor, como
eles dizem mais ‘lastro’”. Para ela o “lastro” é a mesma coisa e
carrega o mesmo sentido da “prepotência que [se] assiste nos poderes
públicos do país. Lastro é sim poder” dentro da organização Fora do
Eixo. E ela exemplifica como o “lastro” garante o exercício do poder aos
mais experientes da empresa e que estão há mais tempo construindo-a.
Você vive dentro da Casa Fora do Eixo São Paulo e isso é a sua vida. Se você quer visitar seus pais no interior… olha sinceramente, que você tenha um bom motivo… e que não venha “pedir” 2 meses seguidos. Sim, porque ali o verbo era esse. “Posso ir visitar minha mãe essa semana?”, coisas do tipo. Tá afim de encontrar uma pessoa que não faz parte da rede?! Vai inventar a maior mentira pra conseguir sair dali uma noite se quer[sic], e no dia seguinte se demorar pra voltar, não tem cara bonita te dizendo bom não. Ali, é cobrança 24h por dia. Agora, ai de você perguntar porque o Pablo tá saindo. Porque a Lenissa vai passar 3 dias fora. Você não tem que perguntar. Ela vai sair, vai usar o dinheiro do caixa coletivo, não vai pedir a ninguém o quanto vai usar. Mas claro, veja bem, ela tem “mais lastro que você”. O Pablo resolveu dormir até mais tarde e perdeu o vôo. Não importa, ele nem se deu a obrigação de cancelar o vôo. “Você vai ligar lá Laís, vai dar um jeito de trocar a passagem.” “Mas já passou a hora do checkin” “não importa, troca, ou compra outra, tem que comprar outra, rápido Laís, já resolveu (o gtalk bombando!!!) vai Laís, vai logo, menina, tá lerda hoje, você é lerda mesmo né, parece retardada”. Sim, você fica na função de comprar 70 passagens aéreas e não para durante 4 dias fazendo todas as cotações possíveis e impossíveis. Ai de você comprar um horário que seja errado. Ligue para ela, pergunte que horas ela vai chegar. Tem que ter um vôo pra ela. Laís, você é retardada, NÃO TÁ OUVINDO O QUE EU TO FALANDO?”
O relato não deixa dúvidas de que aquilo
que é chamado de “lastro” consiste em um mecanismo de legitimidade que
garante aos mais bem posicionados na hierarquia da empresa o controle
sobre o tempo de trabalho alheio. Mostra os maiores gestores da Fora do
Eixo, Pablo Capilé e Lenissa Lenza, exercendo sua função de comando no
caso das compras de passagens. A cobrança intensa do resultado do
trabalho e a pressão psicológica para que a trabalhadora cumpra com sua
tarefa no prazo estipulado pelos que têm mais “lastro” dentro da
organização demonstra uma situação que não difere em quase nada das
relações sociais de produção existentes em qualquer empresa capitalista,
em que há atribuições hierárquicas de decisões a serem executadas por
trabalhadores que não têm “lastro”. O fato de Capilé ou Lenissa não se
reportarem aos demais sobre os motivos de saída da Casa Fora do Eixo
mostra o grau de controle que detêm sobre seu próprio tempo de
permanência no local de trabalho, controlando sua jornada de trabalho e
decidindo sobre a saída ou não dos demais moradores.
A entrega à construção do mundo
alternativo propalado pelos líderes do Fora do Eixo leva os moradores da
Casa a terem uma jornada de trabalho que lhes ocupa todo o tempo da
vida, com o agravante de mesmo o tempo de descanso ser realizado dentro
da própria empresa.
Curiosamente,
são estas relações laborais que uma das ideólogas de plantão do Fora do
Eixo, Ivana Bentes, classifica como “um dos mais potentes laboratórios
de experimentações das novas dinâmicas do trabalho e das subjetividades.
Que tem como base: autonomia, liberdade e um novo ‘comunismo’
(construção de Comum, comunidade, caixas coletivos, moedas coletivas,
redes integradas, economia viva e mercados solidários)” (ver aqui).
O “salto” de organização em relação às
empresas tradicionais, se é que assim pode ser considerado, reside no
fato de o núcleo duro passar a dispor de larga margem de controle
inclusive sobre as relações interpessoais dos moradores, indicando-lhes
os limites das relações afetivas e quais as pessoas com quem podem ou
não se relacionar. Ao mesmo tempo que se endurece o caráter totalitário
das relações trabalhistas internas ao FdE,
para fora, sua rede de parceiros jogam com a imagem da felicidade plena
no local de trabalho; no melhor estilo da propaganda do regime
stalinista.
Ainda a respeito da organização interna
do Fora do Eixo é importante destacar como o argumento do “lastro”
esconde o óbvio: sempre será Capilé e os que iniciaram a empresa em
Cuiabá quem terá maior lastro, afinal, possuem dedicação integral há
muito mais tempo, pois foram eles os próprios fundadores. A ascensão
interna possui uma barreira hierárquica intransponível, consolidando
assim uma cúpula dirigente cristalizada. Não houve até o momento um
relato sequer que dissesse o contrário a respeito da hierarquia interna.
Se a crítica libertária do último século
não poupou linhas a respeito dos partidos leninistas, já não é aqui o
que se está analisando e engana-se quem o faz. Num típico partido
leninista há, por assim dizer, momentos de democracia interna, seguidos
por decisão e definição de linhas, o que se denominou
centralismo-democrático. No caso do Fora do Eixo, o mecanismo do
“lastro” impede justamente o aparecimento do “democrático”: há apenas o
centralismo irradiado por seu “núcleo durável”.
Por regra, onde há política, há
oposição. Um caso extremo são os partidos trotskistas, em que há forte
rigidez doutrinária e ideológica, e onde os rachas e fragmentações são
recorrentes. Como se explica o fato de uma Casa Fora do Eixo não se opor
à outra ou, ainda, não haver disputas internas acirradas? É certo que a
ideologia deles é muitíssimo fraca, baseada em ideólogos como Claudio
Prado e Ivana Bentes, que há pouco tempo atrás falavam em “pós-rancor”.
Porém, não estamos mais discutindo a partir de regimes internos
democráticos, onde é um expediente recorrente os expurgos de
dissidentes.
Conforme você sobe na pirâmide de poder, mais transparência é cobrada pelos que estão acima de você. Você deve compartilhar tudo que está acontecendo, o que está sentindo, com quem está conversando, tudo. Porém a prática não funciona no caminho contrário, as decisões de fato, e tudo que permeia a alta cúpula fica limitada a ela mesmo, inclusive com uma escala de poder interno, onde imagino, mesmo entre eles não é tudo compartilhado.
A transparência de sentido único entre
os “de baixo” para com os “de cima” reforça o caráter autoritário da
organização. Através do slogan “trabalho é vida”, o Fora do Eixo
consegue tecer elementos da sua ideologia com outras dimensões da vida
fazendo disso uma “experiência”. O resultado é achatar todas as
dimensões da vida numa só: a própria empresa Fora do Eixo.
A devoção transforma-se num regime de
exaustão e de submissão, com longas jornadas de trabalho, em que o
esgotamento físico e mental impedem o ensaio de qualquer
auto-organização e de espírito crítico. Se no interior da empresa Fora
do Eixo a coletividade “só funciona nos níveis mais baixos”, isso
permite uma situação em que a cúpula sempre terá mais tempo e dedicação
para pensar e planejar enquanto para os outros as tarefas não terminam.
Dessa forma, “os de cima” sempre apresentarão e terão domínio de
melhores propostas, suscitando nos “de baixo” um sentimento individual
de satisfação e orgulho em trabalhar para pessoas “tão inteligentes”,
convertendo a cúpula em líderes “naturais”. Na verdade, trata-se tão
somente da posição central ocupada pelos “lastreados” na estrutura de
poder e no fluxo informacional. É assim que se nasce e forma um líder e
também uma base de seguidores fanáticos.
Será o leitor tão desatento que não percebe aonde queremos chegar?
3. O Banco Fora do Eixo e a transformação da mais-valia em crédito
A captação de recursos públicos através
de editais, a captação financeira proveniente de patrocínios, o
recebimento de bilheterias, as vendas de bebidas e outros rendimentos
provenientes em reais possibilitam ao Fora do Eixo sustentar uma rede
financeira que integra as diversas unidades da empresa. O instrumento
desta integração financeira é uma moeda própria, o Fora do Eixo Card. O
objetivo da moeda seria o de possibilitar “a sistematização do capital
intangível praticado em processos econômicos envolvendo entre vários
produtores, gestores e artistas culturais, valorizando o seu próprio
trabalho e promovendo o estímulo desses agentes em prol de projetos
autorais que desenvolveram cenários culturais locais.” (Diário Oficial FdE) Como
um dos “simulacros das frentes mediadoras responsável pela criação e
fomento de alternativas que gerem o desenvolvimento sustentável da
rede”, o Banco Fora do Eixo garantiria as transações financeiras entre
as diversas unidades e o financiamento dos eventos e atividades da
empresa, ou seja, ele apenas unifica um sistema econômico que transforma
a mais-valia em crédito. O lastro monetário em reais serviria de base
para a conversão em cards, o que garantiria a circulação do numerário
para o financiamento das várias unidades, além do eventual pagamento de
artistas e demais produtores dos eventos do Fora do Eixo.
Esta proposta em nada diferenciaria o
Banco Fora do Eixo da atuação realizada pelas instituições financeiras
dos Estados nacionais. Levando em consideração ainda que as grandes
corporações transnacionais passaram a ocupar funções e espaços dos
Estados nacionais, como a constituição de instituições financeiras,
educacionais, jornalísticas e políticas com dinâmicas internas próprias,
levantamos a questão: em linhas gerais, em que o Fora do Eixo se
diferencia de uma corporação capitalista? E há ainda aqueles que
conseguem vislumbrar e conceituar essas mesmas relações descritas como
“pós-capitalismo”…
4. Mágica e ética: uma discussão não religiosa, mas sobretudo econômica
Ainda
no programa do Roda Viva, Pablo Capilé mais uma vez comentou que o Fora
do Eixo transformava “um real em 15” [reais] através do seu caixa
coletivo e da sua inovação da gestão organizacional e econômica. Como
quem apresenta seu projeto a um possível patrocinador, Capilé tomou como
exemplo a casa Fora do Eixo em São Paulo. Explicou que lá moram 30
pessoas e que cada uma custa cerca de R$ 900 reais por mês, e continuou,
revelando que cada uma delas, prestando consultoria para 300 festivais
no período, produziria R$ 150 mil. Ora, não existem mágicas de
valorização num câmbio fixo com paridade entre real e cards. A mágica
que aqui faz R$1 (investido) multiplicar-se em muitos outros não é outra
coisa senão o esforço combinado de trabalhos braçais, cognitivos ou
simbólicos não-pagos, ou sub-remunerados, pelo circuito: chama-se
mais-valia – processo que também já fora demonstrado nessas séries de
artigos (aqui e aqui).
Como exemplo de “socialismo imanente”
apresentam o fato de morarem em beliches e compartilharem um armário
coletivo – e até as próprias roupas de baixo -, mas ora, essa é a
consolidação do mais puro tipo ideal weberiano do capitalista, definido
num clássico da literatura sociológica, A ética protestante e o espírito do capitalismo.
Ao acumular ao máximo as riquezas do trabalho, investe-se tudo em mais
capacidade para expandir a própria estrutura e gerar mais capital num
movimento circular. O “caixa coletivo” é, na verdade, a reafirmação
deste tipo ideal, uma vez que se trata de uma racionalização dos gastos
com produtos não ligados à reprodução do ciclo da mais-valia. E, em
parte, a carência material é suprida pela apropriação e gestão dos
pertences pessoais dos membros. Como já apontamos, engana-se
redondamente quem acha que o bom capitalista é aquele que destina o seu
rendimento em consumo de supérfluos ou mercadorias de mera ostentação.
Os que afirmam tratar-se de uma
experiência pós-capitalista deveriam debruçar-se mais sobre as formas de
enriquecimentos pré-capitalistas. Nomeadamente a Igreja Católica que,
através da doação voluntária de bens materiais e da crença no “trabalho é
vida” de monges e frades, conseguiu acumulações de capital colossais
nos conventos e mosteiros, bem como nos cabidos das sés,
transformando-os em grandes proprietários. Foi através da dedicação
daqueles que acreditavam no projeto que o Vaticano conseguiu ser o que é
hoje nos planos empresarial e financeiro, algo que em tempos de rancor
chamávamos de acumulação primitiva de capital.
Com a primeira parte deste artigo
chamamos a atenção para o que escrevemos há dois anos, quando insistimos
no caráter empresarial do Fora do Eixo, perante muitos leitores céticos
ou mesmo indignados conosco. Hoje esse caráter empresarial está latente
aos olhos de todos e só não o vê quem precisa não o ver. Mas não nos
limitamos a reafirmar o que já havíamos escrito, porque pretendemos
aprofundar a análise. Tentamos mostrar que o Fora do Eixo conjuga uma
vertente econômica tradicional, com mais duas vertentes: uma vertente
gângster, ou seja, uma economia do submundo, onde as pressões físicas e
psicológicas se somam às fraudes e aos calotes; e uma vertente que imita
as técnicas religiosas de acumulação do capital, em que os crentes —
que no caso do Fora do Eixo se intitulam “membros” — são confinados em
espaços clausurados e em que todos dão o que têm para um patrimônio
comum, queremos dizer, em que a doação é comum, mas o patrimônio é
aproveitado por poucos, pelos detentores de “lastro”. É com base nessas
três vertentes econômicas que se lança a Mídia NINJA, objeto do nosso
próximo artigo.
Fonte: Passa Palavra
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