PICICA: "E é possível ter
saúde fora da democracia? Evidente que não! Mas será que a democracia
formal tem condições de garantir esse direito? Ou será necessário
aprofundar a discussão sobre as iniciativas de democracia direta? Na
verdade, esse é o nosso paradoxo: temos democracia representativa,
garantias legais e constitucionais mas esse direito ainda não foi
plenamente conquistado. Como pensar em vida plena e produtiva em um dos
países mais violentos do mundo? Entre 2002 e 2010 praticamente 35 mil
jovens negros foram assassinados no Brasil."
Blog do Cebes
Saúde, cidadania e democracia
Foto: Elza Fiúza | ABr
José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde
Liliane Mendes Penello, coordenadora da Política Brasileirinhos Saudáveis do MS-IFF-Fiocruz
A
relação estrutural entre saúde, democracia e cidadania em nosso país
foi estabelecida no contexto da luta política pela redemocratização
inserida no denominado movimento da Reforma Sanitária Brasileira. A
máxima que guiava seus componentes nos anos 70 e 80 do século passado
era: saúde é democracia e democracia é saúde!
Com a
conquista do capítulo saúde da constituição de 88 dá-se uma nova
perspectiva a essa relação rompendo com a visão hegemônica que
prevalecia até então e abre-se uma nova dimensão nas relações entre
saúde, desenvolvimento, liberdade e determinação social. Mas passados 25
anos essa relação permanece como gigantesco desafio a ser enfrentado e
ultrapassado. No início dos anos 90 o ideário reformista e a luta
política para viabilizá-lo enfrentaram grandes obstáculos no contexto do
desenvolvimento capitalista brasileiro onde, governos neoliberais
criaram constrangimentos estruturais que impediram a plena implementação
dos projetos reformistas.
Esses obstáculos ficam
bem exemplificados na realidade do sub-financiamento do SUS e pelo
desenvolvimento de um florescente mercado privado alavancado por
subsídios diretos e indiretos ao mercado.
Mas
para nos aproximarmos da realidade em vivências que expressam a negação
dessa relação (saúde, cidadania e democracia) soa pedagógico um exemplo
bem próximo de todos nós: a questão da mobilidade urbana nas grandes
cidades. Existe uma relação estreita entre a política de transportes
públicos e seu inconteste impacto na saúde de seus usuários. Aqui surge a
interface no contexto da vida urbana entre as possibilidades do homem
comum interferir no padrão de transporte dominante, o privilégio dado ao
transporte individual, a política tarifária, os acidentes, seus
impactos sobre a saúde humana ou interrupção da vida.
Um
exemplo mais complexo, e que muito facilmente nos tira o sono, é a
relação entre o uso de drogas (no geral abuso) e as diversas formas de
violência que acompanham seus usuários, mas não só eles, atingindo toda a
sociedade. Concentram-se aqui situações inacreditáveis de perdas de
referências pessoais, destruição da saúde do usuário e seus familiares,
perdas de vidas de jovens que certamente não angariaram a condição de
cidadania plena.
E a pergunta que não quer calar : como a
política de saúde pode contribuir para o fortalecimento da democracia e
sua fruição pelos brasileiros? Por meio da construção de sistemas
universais voltados para a garantia de direitos fundamentais onde os
iguais têm suas diferenças reconhecidas e contempladas. E o
fortalecimento do mercado privado nos afasta ou aproxima desse ideário? O
processo de crescimento do setor privado introduz gradualmente a
diferenciação dos indivíduos e famílias pelo nível sócio-econômico
garantindo o acesso de determinados grupos a determinados serviços com
diferentes padrões de qualidade.
E é possível ter
saúde fora da democracia? Evidente que não! Mas será que a democracia
formal tem condições de garantir esse direito? Ou será necessário
aprofundar a discussão sobre as iniciativas de democracia direta? Na
verdade, esse é o nosso paradoxo: temos democracia representativa,
garantias legais e constitucionais mas esse direito ainda não foi
plenamente conquistado. Como pensar em vida plena e produtiva em um dos
países mais violentos do mundo? Entre 2002 e 2010 praticamente 35 mil
jovens negros foram assassinados no Brasil.
Por fim cabe
refletir como se dá o processo histórico através do qual determinada
sociedade, em um determinado contexto histórico, constrói uma
consciência coletiva sobre a saúde e suas determinações e como percebe
seu sistema de saúde. Dando-lhe um valor diferenciado ao compreendê-lo
como um espaço onde todos são iguais, mesmo em um sistema econômico
social que produz permanentemente desigualdades? Compreendê-lo como uma
conquista do esforço coletivo de gerações? Ou algo que se busca através
do processo de ascensão social, status, produto que se compra no
mercado?
Na verdade, entende-se que o início da
construção desse processo vital está nos anos iniciais da vida, na
oportunidade em que a pequena brasileira ou o pequeno brasileiro
encontra-se totalmente dependente do ambiente físico e emocional que
seus cuidadores poderão ou não prover de forma suficientemente boa para
que seus fatores genéticos, suas tendências ao desenvolvimento, possam
expressar-se de forma plena e saudável. Este ambiente facilitador a
vida, como o temos chamado, coincide nas etapas precoces do
desenvolvimento com o suporte ofertado pelo principal cuidador da
criança. Pois é o vinculo entre eles, iniciando pela mãe com seu bebê,
que permite um apego seguro e uma confiança que concorre positivamente
para a ousada tarefa de busca de autonomia e diferenciação criativa da
criança sempre em relação com o seu meio. Claro está, que uma mãe, um
pai, uma família que não usufruam de uma rede de proteção e de um
sistema de garantia de direitos democraticamente estabelecido, terá
dificuldades bem maiores em ofertar suporte adequado ao desenvolvimento
de sua criança.
Muitas áreas do conhecimento tem
reconhecido na primeira infância - aqui no Brasil o período que vai de
zero a seis anos - o espaço em que todos os aportes sociais devem
confluir, especialmente em forma de políticas públicas de cunho
intersetorial, para que uma atenção integral ao desenvolvimento infantil
seja buscado, pavimentando-se com clareza a relação entre o
desenvolvimento pessoal e o desenvolvimento social saudáveis. Tanto mais
saudável quanto mais e melhor investirmos afetiva, emocional e
financeiramente, como sociedade civil e como estado, nesta etapa da vida
em que os padrões de saúde física, emocional, capacidades e habilidades
cognitivas e de relacionamento social se estabelecem. Nesta
perspectiva, de produção e promoção de saúde física e mental, o cuidado
se apresenta como pilar da sustentabilidade para a vida. Uma reflexão
bastante interessante que envolve a luta de toda a sociedade pela
redução das iniquidades e fortalecimento da relação entre democracia e
liberdade.
Para Winnicott, pediatra e
psicanalista inglês, que voltou-se ao trabalho com crianças e seus
cuidadores durante a segunda grande guerra, “a democracia é uma
aquisição de uma dada sociedade, que num certo momento conta com
maturidade suficiente no desenvolvimento emocional de uma proporção de
indivíduos que a compõem, a ponto de existir uma tendência em direção à
criação, à recriação e a manutenção da máquina democrática”. O autor
também se refere a algumas categorias básicas da máquina democrática
como o voto livre e secreto, não só para que as pessoas escolham lógica e
ilogicamente, mas também para que se livrem e removam seus líderes. E é
essa escolha, acrescentamos, que permitirá mais ou menos celeremente a
caminhada do projeto/processo civilizatório de uma dada cultura.
Essa
capacidade de influência de cada um sobre o todo, e deste sobre todos e
cada um, é característica importante do desenvolvimento de uma
sociedade, estando relacionada à possibilidade de amadurecimento da
personalidade individual ao longo da vida e dependente de todos os
equipamentos que esta mesma sociedade coloca à disposição de seus
cidadãos para este fim. Em seu livro Desenvolvimento como Liberdade, Sen
(2000) enfatiza a importância de eliminar todas as privações de
liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas para
exercerem sua condição de cidadão. Portanto, se democracia é maturidade,
maturidade é saúde, e se saúde é desejável, então vamos trabalhar para
sua produção, promoção, proteção, atenção e reabilitação, compreendendo
que um de seus fatores essenciais repousa no reconhecimento da
importância do homem comum, da mulher comum e do lar comum dos
brasileiros no cuidado a suas crianças e a si próprios, devendo esse
fator ser seriamente considerado, antecedendo e influenciando o desenho
de políticas públicas inovadoras para a área.
Fonte: Cebes
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