PICICA: "Já em 1920, o educador e filósofo pragmatista
John Dewey dizia que o jornalismo tinha de ir além do mero relato
objetivo de acontecimentos para se tornar um meio de educação e debate
públicos. A imprensa favoreceria o diálogo mais direto entre cidadãos e
jornalistas. Mais do que “reportar”, a atividade jornalística teria em
seu âmago a promoção da “conversa” pública.
A comunicação eletrônica oferece hoje
recursos para se viabilizar as prescrições democratizantes de Dewey. Há
um espaço aberto para experiências no atual vazio cívico da imprensa
jurássica. No empuxo delas, cabe à sociedade dizer com que tipo de
imprensa gostaria de conviver em termos mais duradouros."
MÍDIA NINJA
A velha nova mídia
Por Muniz Sodré em 13/08/2013 na edição 759
A reflexão pública sobre o fenômeno da “Mídia Ninja” suscita um exercício acadêmico adequado a este Observatório da Imprensa:
1. Digamos: dividindo uma garrafa de um litro de refrigerante em
dez garrafinhas, podemos mudar o sistema de produção, de preços, de
distribuição. Só que a natureza do produto oferecido ao mercado continua
a mesma. Em certas circunstâncias, a pluralização da oferta é capaz de
incrementar o grau de democratização da produção e do consumo, mas
refrigerante não deixa de ser refrigerante.
2. Transportemos esta questão econômica para o plano
sociológico, com outro produto sócio-histórico: o indivíduo. A
“sociedade” sempre consistiu em ficções, com coloração e características
de época. Na modernidade, o individualismo cria a possibilidade de
pensá-la como uma agregação de unidades autônomas, portanto, os
indivíduos como uma nova categoria de agentes na História. Tocqueville
resume: “A aristocracia tinha feito de todos os cidadãos uma longa
cadeia que se elevava do camponês até o rei; a democracia rompe a cadeia
e separa cada elo”. Os indivíduos são múltiplos ou diversos (como as
garrafinhas), mas se enfeixam todos no genérico criado pelo
individualismo.
3. Ainda mais um transporte: a pluralidade dos meios de produção
de informações é capaz de interferir na economia do sistema conhecido
como “mídia” (também uma ficção conceitual), pode até mesmo incrementar a
democratização das opiniões por meio da proliferação de canais
alternativos. Não abala, porém, o conceito genérico de mídia. Pelo
contrário, reforça-o.
A propósito deste assunto, é instrutivo inteirar-se da história da
Rádio B-92, de Belgrado, formada por um grupo de jovens que cresceu, em
meio aos destroços nacionais da Iugoslávia pós-Tito, na Sérvia oprimida
por Slobodan Milosevic (ver B-92 – rock e resistência em Belgrado,
de Matthew Collin). Era o que se pode chamar de uma “rádio guerrilha”.
Nela se inspirou, durante dez anos e a partir de 1990, toda a
resistência à tirania e ao genocídio comandado por Milosevic.
A B-92 tinha, entretanto, um slogan curioso: “Não confie em ninguém,
nem na gente”. Evidentemente, era tempo de guerra, de sinistro
extermínio étnico, em que cada jovem punha em jogo a própria vida em
face dos riscos da dissidência jornalística. Num contexto desses, a
verdadeira informação pode ser mais provocação do que objetividade
factual.
Morto Milosevic, morta a ditadura, que fim levou a B-92? Consta ser
hoje a mais respeitada organização de mídia dos Balcãs. Ou seja, a
contrainformação militante e provocativa integrou-se à
“respeitabilidade” da “velha senhora” (em evocação de “AVisita da Velha
Senhora”, de F. Dürrenmatt) chamada mídia – hoje, jurássica. Na “Idade
Mídia”, a classe média é ao mesmo tempo “classe mídia” e assim contribui
ideologicamente para a produção de consenso hegemônico por parte desses
intelectuais coletivos das classes dirigentes que são os dispositivos de informação pública.
Alma comprometida
Na verdade, talvez não precisássemos ir tão longe, até os Balcãs, para
buscar exemplos midiáticos de algo caracterizado inicialmente como
transgressão e que depois regressa como filho pródigo à casa da “velha
senhora”. No Brasil, entre as décadas de 1960 e 80, o viés
político-transgressor da questão comunicacional centrava-se nos meios de
radiodifusão ditos “populares”, combatidos pelos latifundiários do
espaço hertziano.
Registra-se até hoje, aliás, uma espécie de guerra subterrânea contra
as emissoras de rádio comunitárias, perseguidas por aparelhos estatais e
empresas hegemônicas. Segundo dados recentes, que levam em conta as
multas e fechamentos cadastrados, a repressão
aumentou em torno de 35% em todo o Brasil. Mas é preciso levar em conta
também os altos custos de produção para qualquer um dos tipos da mídia
jurássica, até mesmo uma pequena rádio que se queira minimamente
apresentável.
Em contrapartida, a tecnologia eletrônica ao
alcance da “classe mídia” (celulares, câmeras baratas, redes sociais)
favorece um fenômeno como o da Mídia Ninja – ou pelo menos o favorece em
contextos de efervescência social, como os das recentes manifestações
de rua, quando se abre espaço para uma cobertura participante dos
acontecimentos por meio de técnicas “precarizadas”. No passado, a
ditadura militar também abriu espaço para um jornal como O Pasquim, tecnicamente precário em face dos recursos midiáticos na época, mas um sucesso de crítica e público.
Diante de fenômenos dessa natureza, pilotados
por gente jovem ou disposta a experimentar, é comum assistir-se à
desconfiança dos profissionais mais velhos e integrados na ordem da
“velha senhora” para com os que lhes pareçam insurgentes. É o que
transparece nas colunas da grande imprensa ou em entrevistas, como a
realizada pelo Roda Vida, TV Cultura de São Paulo (ver aqui).
Nesta última, alguns entrevistadores insistiam em detalhes do que
chamavam “o négocio” dos Ninjas. As respostas tinham algo de hilário
porque estavam geralmente vazadas numa terminologia ininteligível, tudo
menos “jornalístico” no sentido técnico do termo. O que ficou muito
claro é que havia dinheiro da Petrobras por detrás.
Depois, a questão é saber se aquela turma
engajada no movimento das ruas está ou não fazendo “jornalismo”. Mas é
também claro que estão! Alguém se lembra de Carlos Lacerda? Ninguém lhe
contestava a condição de jornalista por se engajar na política o tempo
inteiro com seus textos. E a grande mídia atual? É uma política que não
ousa confessar o seu nome, a exemplo daquele amor louvado por Oscar
Wilde.
É hipócrita e jurássica a definição de
jornalismo atravessada por protestos de objetividade. Foi rara a
objetividade da grande imprensa brasileira sob a ditadura militar. Mas
quase todo mundo brandia como slogan profissional a frase de Joel
Silveira: “Repórter não desfila na banda, vê a banda passar”.
Só que para desgosto desse magnífico repórter
que foi Joel Silveira, a objetividade sempre pôde servir de álibi para
tudo. Na redação do órgão “jornalístico” em que fomos brevemente
contemporâneos de Joel, a objetividade frente à realidade apresentada
(socialites, artistas, moças de biquíni etc.) consistia em ver não a
banda, mas a bunda passar. Há um notável precedente para esta
expressão na crítica feita por Jean-Paul Sartre ao jornalismo
sensacionalista, que ele chamou de “imprensa de bunda e sangue”. Não é
um trocadilho vão, portanto, mas uma metáfora válida hoje mais do que
nunca para a “objetividade” de uma mídia comprometida até a alma com a
difusão do espetáculo e com comércio dos gadgets eletrônicos. O
objetivo pretende equivaler ao real. Mas a objetividade corporativa
costuma equivaler à realidade dos objetos postos à venda.
Espaço aberto
Por um lado, a Mídia Ninja apresenta
características de empresa em nascimento: tem patrocinadores, espalha-se
em rede, arrisca um vocabulário próprio e ataca as corporações de
jornalismo, ou melhor, ataca nas ruas os supostos colegas de jornalismo.
Isso é tática velha da competição em mercado, ainda que os jovens
possam não se dar conta do fato: proclamando-se mídia nova, atacam a
velha. Novo mesmo, porém, é o uso de gadgets eletrônicos e de
redes sociais, além do envolvimento com os eventos. Resta determinar se o
fenômeno é jornalismo inovador ou se é uma nova mídia velha.
Já em 1920, o educador e filósofo pragmatista
John Dewey dizia que o jornalismo tinha de ir além do mero relato
objetivo de acontecimentos para se tornar um meio de educação e debate
públicos. A imprensa favoreceria o diálogo mais direto entre cidadãos e
jornalistas. Mais do que “reportar”, a atividade jornalística teria em
seu âmago a promoção da “conversa” pública.
A comunicação eletrônica oferece hoje
recursos para se viabilizar as prescrições democratizantes de Dewey. Há
um espaço aberto para experiências no atual vazio cívico da imprensa
jurássica. No empuxo delas, cabe à sociedade dizer com que tipo de
imprensa gostaria de conviver em termos mais duradouros.
Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Fonte: Observatório da Imprensa
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