agosto 03, 2013

"Para acabar com o julgamento dos corpos livres", por Ricardo Gomes

PICICA: "É preciso acabar com o homem. Assim também é preciso acabar com o pensamento que são formados a partir do homem. Seus segredinhos tolos, concessões mesquinhas, identificações violentas, universalidade limitante e etc. É preciso não ser razoável quando a razoabilidade forja consensos violentos, resguardam o moralismo de quem não luta mas tem a doce e fácil coragem de tentar afirmar o que é ou deixa de ser nos movimentos e lutas.

Acabar com o homem é partir de uma desorganização que não tem nada de erro diante do qual devemos nos resignar. Uma desorganização que é comunicação e mais valia de intensidades que deformam os corpos acabados. Em todo processo de criação imanente há uma crueldade necessária. Trazer uma deformação é um ato inseparável da destruição de uma cara, de uma identidade que desde fora tenta se impor e punir." 


Para acabar com o julgamento dos corpos livres

corpo livre

‘Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é espírito’ (Friedrich Nietzsche, Assim Falou Zaratustra)

‘Pois Van Gogh tinha chegado a esse estágio de iluminismo no qual o pensamento em desordem reflui diante das descargas invasoras da matéria e no qual pensar já não é consumir-se e nem sequer é e no qual nada mais resta senão juntar pedaços do corpo…” Antonin Artaud, O Suicidado pela sociedade. 

Os corpos foram multilados, ainda hoje o são, mas respondem. Dentro deste embate o que é uma resposta? Parece tratar-se de um ruído, de uma sujeira na aparência profunda das verdades seculares. Ranhura que abre. Mas quem aranha e de onde vem? Por que estas ranhuras trariam alguma preocupação nos longos processos de acumulação e manutenção de uma antiga relação entre saber e poder?

Os embates e encontros de forças que forjam as mais variadas organizações sociais são perpassadas por grandes blocos de poder e de incontáveis forcas que desviam da tentativa de fechamento e de endurecimento coletivos que este grandes blocos tentam articular. Não se trata porem de uma visão dualista porque esta mesma organização segue em todas as mulitplas inter-relações de cada um dos participantes provisórios dos grupos citados anteriormente, ou, ‘toda coisa é uma sociedade’ (Maurizzio Lazzarato, As Revoluções do Capitalismo).

O que há de indefinível torna-se indecidível. As individualidades se perdem e o processo de individuação cria milhares de pequenas instituições coletivas. Passamos de um estado de mistura genérico para uma relação inclusiva de trocas abertas e fugidias, precárias. Ser fugitivo e agrupador é próprio destas forças que antes de existir (de ser), insistem e assim seguem inventando outros mundos. O desejo que nada quer dizer ou exprimir alem de sua própria efetivação funciona ai como elemento que atravessa as relações e compõe uma concretude. Sua forma é força e conteúdo e tudo ali é variação de graus e intensidades diferenciais. Os núcleos ou encontros das linhas do desejo que perpassam cada multiplicidade cria mundos possíveis onde o coletivo não é mais uma oposição ao individual e sim uma situação real onde se tudo se desloca. Eis que não temos mais somente uma multidão, já podemos falar em termos de ‘noções sociais comuns’, sem confundir isso com nenhum consenso gregário, como já deixamos claro.

Portanto menos do que ranhuras e mais do que ranhuras. Estas frestas que se abrem são processos constituintes de toda a vida social tanto quanto o conjunto molar, que é perpassado por elas e assim o constitui. No fim das contas a grande diferença é no desejo. Desejo de acumulação, identificação, regulamentação, de conservação reacionário, indignação paralizante em suas diversas formas e por outro lado, o desejo pela expansão e pela produção de formas de vidas autónomas. Colocando assim ainda resta uma imagem dicotómica, mas esta imagem erra, e se repetimos e embolamos é justo para tentar chegar na incorporação constante entre as duas, o que cria comunicações e/ou direcionamentos entre as forças.

É preciso acabar com o homem. Assim também é preciso acabar com o pensamento que são formados a partir do homem. Seus segredinhos tolos, concessões mesquinhas, identificações violentas, universalidade limitante e etc. É preciso não ser razoável quando a razoabilidade forja consensos violentos, resguardam o moralismo de quem não luta mas tem a doce e fácil coragem de tentar afirmar o que é ou deixa de ser nos movimentos e lutas.

Acabar com o homem é partir de uma desorganização que não tem nada de erro diante do qual devemos nos resignar. Uma desorganização que é comunicação e mais valia de intensidades que deformam os corpos acabados. Em todo processo de criação imanente há uma crueldade necessária. Trazer uma deformação é um ato inseparável da destruição de uma cara, de uma identidade que desde fora tenta se impor e punir.

A deformação dança, alegria de jorrar consubstacialidades carnais, indecifráveis, vivas! Espirito de um traço que nos joga numa ‘zona de indiscernibilidade’ (Gilles Deleuze, Lógica da Sensação), onde homem e outros já não se distinguem mais, isto é o corpo sem homem.

Voltamos aqui ao início, o indefinível torna-se indecidível, a multidão sem nome agora caminha conjugando organizações reais num espaço onde sempre sobra mais do que um espaço, sobra algo que possibilita outros espaços. Trata-se do que Deleuze e Guattari chamam de ‘subida até as nuvens dos virtuais’ (Gilles Deleuze e Felix Guattari, O Que é a Filosofia). No nosso caso trata-se de uma subida imanente, um movimento transcendental feito na própria imanência. Nada fora do processo de atualização, mas para alem do estado de coisas atuais. O que é chamado de acontecimento é isto, uma conjunção onde necessariamente sobra algo alem do estado de coisas atuais, a multiplicidade real devindo, deformando, insistindo.

Nesta conjunção não pode haver termos medianos, diplomacias vazias, vista grossa diante das relações de poder que se espalham.


Na marcha das vadias ocorreu uma performance de um Coletivo artístico/político que participava da marcha como qualquer outro grupo. A performance foi feita com os corpos dos artistas e estátuas de santos, penetrações, máquinas de torturas reinventadas, atrações e conflitos físicos friccionados, matéria, sofrimentos e devir entrelaçados. Eis que o excesso de que falávamos apareceu, a forca própria do acontecimento, como não podia deixar de ser, a proliferação do que possibilita o outro. A performance gerou reclamação mesmo entre alguns militantes da esquerda, que via desrespeito religioso na atividade artística do coletivo. Acho que não se trata de exigir o respeito como um princípio ideal numa relação onde antes não havia respeito real algum, ao contrário, a igreja foi e é uma das mais perversas maquinas de violenta regulação dos corpos, agindo ainda hoje contra as minorias e suas práticas (seu posicionamento contra o uso de camisinhas, o banho neo liberal no banco do vaticano e muitas outras ações). Se trata de saber que antes de tudo se deve avançar nos direitos de quem nunca os teve e que isso implica sim a perda de certos privilégios de outros, ou melhor dos mesmos, aqueles que sempre tiveram privilégios (chamo a atenção para a diferença entre direitos e privilégios, é inegável a diferencia de tratamento estatal e do senso comum em relação as religiões cristãs e de matriz africana, por exemplo). Ora, nenhum heterossexual ou católico perde a vida por performances como essa. Mas dizer isso ainda é absolutamente pouco, não devemos parar neste jogo onde o que viabiliza a vida são o sentido e a ordem correta das palavras, ‘é chegado o momento do despedaçamento final’ (nunca ultimo mas final em relação a algo que o aprisionava), o signo sangra. Chegou a hora de descarrilar os limites impostos, desfazer as alianças pesadas que nos fazem andar devagar quase parando. Momento de machucar o corpo unitário que teima em nos torturar e partir para o combate altivo em favor de deslimites minoritários e da matéria revolucionária que deforma unidades reformistas e consoladoras. Não podemos ser pautados pelas conversas indignadas dos almoços de domingo das casas piedosas e cristãs, as vezes é necessário avançar nas acões, principalmente nestas ações que conseguem desdobrar as forças do acontecimento. Por isso e por muito mais que já foi dito por outros e que não cabe aqui repetir, vale afirmar que vemos que as propostas da performances do Coletivo Coiote atualizam um devir revolucionário que deforma os corpos e produz outras formas de vida.

Por Ricardo Gomes

Fonte: PegaroSolcomaMão

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