[Amálgama]
O exercício da liberdade insustentável
Posted: 12 Nov 2008 09:03 PM CST
por Renato Medeiros - O homem está condenado a ser livre, já dizia Sartre, mas para o escritor tcheco Milan Kundera essa liberdade se mostra insustentável, pesa mais que o próprio peso. Essa é uma das conclusões que podem ser tiradas de seu clássico A insustentável leveza do ser (Cia. de Bolso, 2008), que mais parece um ensaio filosófico sobre a existência do que um romance. Nele, o autor investiga o que há por dentro dos seres, mergulhando no íntimo de suas personagens.
A jovem Tereza esbarrou na vida de Tomas, um respeitado médico de Praga, por causa de seis acasos. Porém, antes de Tereza, a pintora Sabina já era amante dele há muito tempo e não deixou de ser. A distância acaba separando os amantes e Sabina tenta encontrar em Franz, professor universitário suíço, as mesmas qualidades que via em Tomas. É nessa intrincada história de encontros e desencontros que temas como o amor, a traição, a lealdade e o sexo são abordados, na tentativa de detectar as particularidades da natureza humana.
Mas antes o autor explora o que há de mais singular em cada uma das personagens para só depois encontrar essas particularidades e concluir que a busca comum a todos os seres é a busca pela felicidade, que necessita de liberdade para ser plena. Uma liberdade tão leve que passa a ser inadmissível, imensurável, e que por isso é insustentável.
O romance também parece defender uma faceta política, principalmente na sexta parte, quando passa a ter uma preocupação mais intensa com questões vividas no leste europeu durante o período de Guerra Fria. Fica evidente a insatisfação do autor com o regime comunista instaurado na Checoslováquia na segunda metade do século XX, tanto que algumas vezes o texto assume um caráter de denúncia. Talvez esse tenha sido um dos motivos que fizeram com que o livro causasse tanta polêmica ao ser publicado em 1982, quando a União Soviética ainda controlava o país.
É nessa atmosfera pesada que vive Tomas e Tereza. Entretanto, mesmo sob a repressão de um regime ditatorial, sempre se é livre para pensar e sentir. É uma responsabilidade da qual não se pode escapar, da qual não se pode colocar a culpa no regime. A alma pesa mais que o próprio corpo e aqui ela deixa de lado as possíveis conotações religiosas para assumir o sentido de parte mais íntima de um ser. É sobre esse pedaço tão leve e não-palpável de humanidade que Milan Kundera pousa o seu olhar. É a investigação dessa leveza absurda que se sobrepõe a qualquer limitação carnal, espacial ou temporal.
O livro promove um diálogo constante entre o individual e o coletivo. O escritor considera que a existência em coletividade experimenta uma espetacularização contínua. É a vida de aparências, que ele chamou de Kitsch e que banaliza a individualidade dos seres. A humanidade mantém uma Grande Marcha em direção ao progresso, a uma evolução inesgotável. Entretanto, Tereza se afasta dessa marcha quando percebe que a felicidade, objetivo final daqueles que a percorrem, não anda em linha reta, mas sim em círculos. É na repetição que se encontra a felicidade.
Observa-se aí uma crítica não apenas àquele regime ditatorial, mas ao próprio caminhar da humanidade em direção a um desconhecido e incerto futuro, em busca de uma felicidade que poderia ser encontrada sem precisar ir tão longe ou arriscar tanto. Um caminho que o ser humano percorre desde que fora expulso do Paraíso, como é sugerido no livro.
Quanto à estrutura, a narrativa é dividida em sete partes, cada uma com vários capítulos curtos e que oferecem certa facilidade de leitura. Esse estilo de escrita pode ser considerado uma estratégia para atrair o leitor e prendê-lo até a última página. No caso de A insustentável leveza, esse recurso funciona.
O que não funciona é a insistência com que o autor responde às suas próprias indagações. Milan Kundera escreve para si mesmo, tanto é que são várias as passagens em que ele usurpa o papel de seu narrador e se coloca francamente diante do leitor, admitindo isso. Parece que ele quer utilizar a força da literatura para mascarar suas intenções, para não tornar-se tão explícito. As indagações não são detectadas nas entrelinhas. É como se a trama servisse apenas para exemplificar as idéias de seu autor.
Dessa maneira, nem o romance e nem as personagens sobrevivem sem Milan Kundera. Essas personagens parecem ser meras enunciadoras de conceitos, não conseguem pensar, sentir ou agir sem a presença do escritor. Afinal, ele pensa tanto por elas que, presas como marionetes em suas mãos, não exercem com leveza a liberdade de existir nas mentes dos leitores.
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