agosto 31, 2013

"O êxodo da multidão: em busca de um mundo novo" por Silvio Pedrosa

PICICA: "À instabilidade e incerteza produtivas e constitutivas da multidão brasileira, que não se deixa nomear, impedindo qualquer homologação, a esquerda no poder responde com uma dupla operação, criminalizando o movimento dos movimentos, através de seus filósofos oficiais e dos seus sacerdotes da ordem ‘progressista’, enquanto tenta, ao mesmo tempo, se apropriar, capturando o novo, através de uma homilia que prega a renovação dos votos na democracia representativa, articulando a última ao mais novo arcaísmo produzido no país: a mídia de multidão que pretende se estabelecer como marca registrada do ‘novo’, identificando e capturando os desejos da plebe, enquanto se sustenta através de práticas exemplares do que há de mais velho. O Fora do Eixo/Mídia Ninja, entretanto, após passar pelo teste da mídia caduca, uma roda morta de debates, não resiste ao verdadeiro teste do novo e é destroçado por uma rede viva que faz lembrar: não existe amor fora da luta! A multidão é imediável!"


O êxodo da multidão: em busca de um mundo novo

31/08/2013
Por Silvio Pedrosa


Por Silvio Pedrosa
geiser

A multidão que tomou as ruas do Brasil em junho abriu uma brecha no consenso forjado pelo aparato midiático-policial: a guerra aos pobres, eixo articulador da dinâmica capitalista (o ‘neodesenvolvimentismo’) que se afirma no país, em suas variadas expressões (remoções, ‘guerra às drogas’, gentrificação, etc.), foi alçada ao centro do debate político. O(s) Amarildo(s) (homens e mulheres de rostos e nomes) de todo o Brasil vêm à tona através da fresta instaurada pelos mascarados que são ‘ninguém’, sem nome e sem rosto. O paradigma de segurança pública militarizada que produz o consenso da paz sem voz entra em crise, simultaneamente aos seus correlatos (e parceiros) no campo político e midiático: os partidos, cuja capacidade de dar um canal de expressão à potência da multidão se esgotou completamente, e a mídia oligopólica, anacronismo aberrante em tempos imediatos (e imediáveis), tornam-se alvos dos manifestantes que vão às ruas escancarar a crise da representação, que é também a crise da soberania, como deixa clara a corrosão do apoio à polícia militar como instituição.

No meio do turbilhão político e social em que o Brasil se debate, fica claro que o projeto do Brasil Maior – do neodesenvolvimentismo que se alimenta da renda e do consumo dos pobres, a quem a propaganda governamental chama de ‘nova classe média’ – unifica setores da esquerda e da direita, o processo acelerado de indiferenciação ideológica tornando-se claríssimo à luz das reações bastante similares com as quais ambos os lados respondem à ‘crise’ (admitindo-se que qualquer movimento fora da ordem é expressão de uma crise e não que a ordem – assassina de negros e pobres – seja a própria crise à qual a multidão vem às ruas responder). Cidadãos nas ruas expressando descontentamento são inaceitáveis, ainda mais quando à resposta policialesca tem a ousadia de não se calar, insistindo em protestar e mesmo, supremo escândalo, em resistir à violência policial.

À instabilidade e incerteza produtivas e constitutivas da multidão brasileira, que não se deixa nomear, impedindo qualquer homologação, a esquerda no poder responde com uma dupla operação, criminalizando o movimento dos movimentos, através de seus filósofos oficiais e dos seus sacerdotes da ordem ‘progressista’, enquanto tenta, ao mesmo tempo, se apropriar, capturando o novo, através de uma homilia que prega a renovação dos votos na democracia representativa, articulando a última ao mais novo arcaísmo produzido no país: a mídia de multidão que pretende se estabelecer como marca registrada do ‘novo’, identificando e capturando os desejos da plebe, enquanto se sustenta através de práticas exemplares do que há de mais velho. O Fora do Eixo/Mídia Ninja, entretanto, após passar pelo teste da mídia caduca, uma roda morta de debates, não resiste ao verdadeiro teste do novo e é destroçado por uma rede viva que faz lembrar: não existe amor fora da luta! A multidão é imediável!

Só ‘ninguém’, como dessubjetivação criadora, sabe o que a multidão deseja, porque a multidão é uma abertura à materialização de múltiplas vozes, rostos e desejos: multiplicidades. É um corte no tecido vivo do tempo do mundo que se abre ao instante do kairòs, borda do ser onde o trabalho vivo da própria multidão cria o porvir. E é nessa abertura, que instaura um novo porvir pela luta, essa abertura do kairòs (que é radicalmente diferente do porvir do tempo cronológico, repetição incessante e patológica do mesmo), que os pobres das favelas (da Maré, Rocinha e Vidigal), os índios da Aldeia Maracanã e os jovens pobres da periferia, revoltados com a paz da servidão em que vivem, conseguem fazer valer seus desejos. Aqueles que insistem nas definições sociológicas para entender os eventos recentes falham miseravelmente não apenas pelo fato dos manifestantes serem social e economicamente muito heterogêneos, mas porque sua revolta não se deixa definir por um recorte simplório de renda, antes significando um encontro de singularidades (e não indivíduos!) que produz novos horizontes de desejo e luta.

A gentrificação dos espaços das cidades, a precária mobilidade urbana, que restringe o direito à cidade para todos — e, portanto, abrevia também o direito à diferença nos encontros que a urbe possibilita –, assim como a subsunção de direitos constitucionais, como saúde e educação (transformados em serviços), no capital restringe a renda de todos, são os fenômenos que correspondem a uma economia reguladora que insistentemente diz ‘não!’, de forma escalonada, aos desejos, delineando novas hierarquias no interior das cidades. Essa ordem que vinha sendo inscrita nas capitais e cidades de todo o Brasil é o que a multidão recusa. Ela sai em êxodo em busca de um novo mundo, forjado na luta que constrói o amor.

Divulgue na rede

 

Fonte: Rede Universidade Nômade

"Saúde, cidadania e democracia", por José Gomes Temporão e Liliane Mendes Penello

PICICA: "E é possível ter saúde fora da democracia? Evidente que não!  Mas será que a democracia formal tem condições de garantir esse direito? Ou será necessário aprofundar a discussão sobre as iniciativas de democracia direta? Na verdade, esse é o nosso paradoxo: temos democracia representativa, garantias legais e constitucionais mas esse direito ainda não foi plenamente conquistado. Como pensar em vida plena e produtiva em um dos países mais violentos do mundo? Entre 2002 e 2010 praticamente 35 mil jovens negros foram assassinados no Brasil."

Blog do Cebes

Saúde, cidadania e democracia

Saúde, cidadania e democracia Foto: Elza Fiúza | ABr


José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde
Liliane Mendes Penello, coordenadora da Política Brasileirinhos Saudáveis do MS-IFF-Fiocruz

A relação estrutural entre saúde, democracia e cidadania em nosso país foi estabelecida no contexto da luta política pela redemocratização inserida no denominado movimento da Reforma Sanitária Brasileira. A máxima que guiava seus componentes nos anos 70 e 80 do século passado era: saúde é democracia e democracia é saúde!
Com a conquista do capítulo saúde da constituição de 88 dá-se uma nova perspectiva a essa relação rompendo com a visão hegemônica que prevalecia até então e abre-se uma nova dimensão nas relações entre saúde, desenvolvimento, liberdade e determinação social. Mas passados 25 anos  essa relação permanece como gigantesco desafio a ser enfrentado e ultrapassado. No início dos anos 90 o ideário reformista e a luta política para viabilizá-lo enfrentaram grandes obstáculos no contexto do desenvolvimento capitalista brasileiro onde, governos neoliberais criaram constrangimentos estruturais que impediram a plena implementação dos projetos reformistas.
Esses obstáculos ficam bem exemplificados na realidade do sub-financiamento do SUS e pelo desenvolvimento de um florescente mercado privado alavancado por subsídios diretos e indiretos ao mercado. 
Mas para nos aproximarmos da realidade em vivências que expressam a negação dessa relação (saúde, cidadania e democracia) soa pedagógico um exemplo bem próximo de todos nós: a questão da mobilidade urbana nas grandes cidades. Existe uma relação estreita entre a política de transportes públicos e seu inconteste impacto na saúde de seus usuários. Aqui surge a interface no contexto da vida urbana entre as possibilidades do homem comum interferir no padrão de transporte dominante, o privilégio dado ao transporte individual, a política tarifária, os acidentes, seus impactos sobre a saúde humana ou interrupção da vida.
Um exemplo mais complexo, e que muito facilmente nos tira o sono, é a relação entre o uso de drogas (no geral abuso) e as diversas formas de violência que acompanham seus usuários, mas não só eles, atingindo toda a sociedade. Concentram-se aqui situações inacreditáveis de perdas de referências pessoais, destruição da saúde do usuário e seus familiares, perdas de vidas de jovens que certamente não angariaram a condição de cidadania plena.
E a pergunta que não quer calar : como a política de saúde pode contribuir para o fortalecimento da democracia e sua fruição pelos brasileiros? Por meio da construção de sistemas universais voltados para a garantia de direitos fundamentais onde os iguais têm suas diferenças reconhecidas e contempladas. E o fortalecimento do mercado privado nos afasta ou aproxima desse ideário? O processo de crescimento do setor privado introduz gradualmente a diferenciação dos indivíduos e famílias pelo nível sócio-econômico garantindo o acesso de determinados grupos a determinados serviços com diferentes padrões de qualidade.
E é possível ter saúde fora da democracia? Evidente que não!  Mas será que a democracia formal tem condições de garantir esse direito? Ou será necessário aprofundar a discussão sobre as iniciativas de democracia direta? Na verdade, esse é o nosso paradoxo: temos democracia representativa, garantias legais e constitucionais mas esse direito ainda não foi plenamente conquistado. Como pensar em vida plena e produtiva em um dos países mais violentos do mundo? Entre 2002 e 2010 praticamente 35 mil jovens negros foram assassinados no Brasil.
Por fim cabe refletir como se dá o processo histórico através do qual determinada sociedade, em um determinado contexto histórico, constrói uma consciência coletiva sobre a saúde e suas determinações e como percebe seu sistema de saúde. Dando-lhe um valor diferenciado ao compreendê-lo como um espaço onde todos são iguais, mesmo em um sistema econômico social que produz permanentemente desigualdades? Compreendê-lo como uma conquista do esforço coletivo de gerações? Ou algo que se busca através do processo de ascensão social, status, produto que se compra no mercado?
Na verdade, entende-se que o início da construção desse processo vital está nos anos iniciais da vida, na oportunidade em que a pequena brasileira ou o pequeno brasileiro encontra-se totalmente dependente do ambiente físico e emocional que seus cuidadores poderão ou não prover de forma suficientemente boa para que seus fatores genéticos, suas tendências ao desenvolvimento, possam expressar-se de forma plena e saudável. Este ambiente facilitador a vida, como o temos chamado, coincide nas etapas precoces do desenvolvimento com o suporte ofertado pelo principal cuidador da criança. Pois é o vinculo entre eles, iniciando pela mãe com seu bebê,  que permite um apego seguro e uma confiança que concorre positivamente para a ousada tarefa de busca de autonomia e diferenciação criativa da criança sempre em relação com o seu meio. Claro está, que uma mãe, um pai, uma família que não usufruam de uma rede de proteção e de um sistema de garantia de direitos democraticamente estabelecido, terá dificuldades bem maiores em ofertar suporte adequado ao desenvolvimento de sua criança.
Muitas áreas do conhecimento tem reconhecido na primeira infância -  aqui no Brasil o período que vai de zero a seis anos - o espaço em que todos os aportes sociais devem confluir, especialmente em forma de políticas públicas de cunho intersetorial, para que uma atenção integral ao desenvolvimento infantil seja buscado, pavimentando-se com clareza a relação entre o desenvolvimento pessoal e o desenvolvimento social saudáveis. Tanto mais saudável quanto mais e melhor investirmos afetiva, emocional e financeiramente, como sociedade civil e como estado, nesta etapa da vida em que os padrões de saúde física, emocional, capacidades e habilidades cognitivas e de relacionamento social se estabelecem. Nesta perspectiva, de produção e promoção de saúde física e mental, o cuidado se apresenta como pilar da sustentabilidade para a vida. Uma reflexão bastante interessante que envolve a luta de toda a sociedade pela redução das iniquidades e fortalecimento da relação entre democracia e liberdade.
Para Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, que voltou-se ao trabalho com crianças e seus cuidadores durante a segunda grande guerra, “a democracia é uma aquisição de uma dada sociedade, que num certo momento conta com maturidade suficiente no desenvolvimento emocional de uma proporção de indivíduos que a compõem, a ponto de existir uma tendência em direção à criação, à recriação e a manutenção da máquina democrática”. O autor também se refere a algumas categorias básicas da máquina democrática como o voto livre e secreto, não só para que as pessoas escolham lógica e ilogicamente, mas também para que se livrem e removam seus líderes. E é essa escolha, acrescentamos, que permitirá mais ou menos celeremente a caminhada do projeto/processo civilizatório de uma dada cultura.
Essa capacidade de influência de cada um sobre o todo, e deste sobre todos e cada um, é característica importante do desenvolvimento de uma sociedade, estando relacionada à possibilidade de amadurecimento da personalidade individual ao longo da vida e dependente de todos os equipamentos que esta mesma sociedade coloca à disposição de seus cidadãos para este fim. Em seu livro Desenvolvimento como Liberdade, Sen (2000) enfatiza a importância de eliminar todas as privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas para exercerem sua condição de cidadão. Portanto, se democracia é maturidade, maturidade é saúde, e se saúde é desejável, então vamos trabalhar para sua produção, promoção, proteção, atenção e reabilitação, compreendendo que um de seus fatores essenciais repousa no reconhecimento da importância do homem comum, da mulher comum e do lar comum dos brasileiros no cuidado a suas crianças e a si próprios, devendo esse fator ser seriamente considerado, antecedendo e influenciando  o desenho de políticas públicas inovadoras para a área.
Fonte: Cebes

“Outro feminismo: que vem de cima, do centro à periferia” – breve história zapatista" (Passa Palavra)

PICICA: "Nos artigos críticos a um determinado tipo de feminismo excludente e seus impactos nas lutas sociais, o Passa Palavra procurou apontar exemplos de como a organização das lutas em torno da questão da situação concreta das mulheres pode levar a impulsionar as tendências antissistêmicas ou promover o seu contrário, o reforço das formas capitalistas."

“Outro feminismo: que vem de cima, do centro à periferia” – breve história zapatista

26 de agosto de 2013  



O subcomandante Marcos expõe a existência de mais de um tipo de feminismo. Por Passa Palavra

Nos artigos críticos a um determinado tipo de feminismo excludente e seus impactos nas lutas sociais, o Passa Palavra procurou apontar exemplos de como a organização das lutas em torno da questão da situação concreta das mulheres pode levar a impulsionar as tendências antissistêmicas ou promover o seu contrário, o reforço das formas capitalistas.

Num dos comentários ao artigo O feminismo no espelho dos comentários, foi indicado por Luiz, em 14 de agosto, um “vídeo bem ilustrativo do modus operandi dessa corrente do feminismo nas lutas sociais. Neste caso no movimento indígena chiapaneco”.

É possível que não se tenha dada a devida atenção ao vídeo, no qual o subcomandante Marcos expõe a existência de mais de um tipo de feminismo. Certo feminismo, “que vem de cima, do centro à periferia”, e que reproduz práticas machistas e capitalistas e tem servido para que suas promotoras ganhem algum protagonismo político que lhes permite viajar para palestras, lançar livros, ocupar cargos governamentais etc. E esse tipo de feminismo, como não leva em consideração as práticas organizativas concretas das comunidades em luta, procurou impor uma doutrina, “libertá-las”, buscou mandar nas mulheres zapatistas retirando-lhes sua autonomia.

Reproduzimos abaixo a intervenção do subcomandante Marcos.

Escutar o amarelo. O calendário e a geografia da diferença

“O perigo d@s diferentes está em logo parecerem-se muito entre si”. Dom Durito da Lacondona

A luta das mulheres, do centro à periferia?

Se antes falamos que no pensamento de cima existia um abismo entre teoria e realidade e da concomitante bulimia teórica que virou moda em uma parte da intelectualidade progressista, agora queremos nos deter nesse ponto da geografia pretensamente científica que é o centro onde a pedra conceitual, ou seja, a moda intelectual cai e se iniciam as ondas que afetarão a periferia.

Acontece que essas teorias e práticas surgidas no centro se estendem até a periferia afetando não só os pensamentos e práticas nesses lugares, mas também, e, sobretudo, impondo-se como verdade e modelo a seguir.

Já se falou do surgimento de novos atores ou sujeitos sociais, e se mencionou as mulheres, jovens e outros amores.

Pois bem, sobre estes “novos” protagonistas da história cotidiana, surgem novas elaborações teóricas que, sempre no centro emissor, se traduzem em práticas políticas e organizativas.

No caso da luta de gênero, ou mais especificamente, no feminismo, sucede o mesmo. Em uma das metrópoles surge uma concepção do que é, de seu caráter, de seu objetivo, de suas formas, de seu destino. Daí se exporta para pontos da periferia, que por sua vez, são centros de outras periferias.

Esse translado não se dá sem os problemas e “engarrafamentos” próprios das distintas geografias.

Tampouco se dá, paradoxalmente, em termos de equidade. E digo “paradoxalmente” porque um dos traços essenciais dessa luta é sua demanda de equidade, de equidade de gênero.

Espero que as companheiras e companheiros que levantam essa luta, e que estão me escutando ou lendo, desculpem o reducionismo e simplismo com que estou tocando este ponto. Não que eu queira salvar meu machismo, tão natural e espontâneo, na verdade, é porque não estamos pensando, na hora em que tratamos disto, nos esforços que levam adiante. Não dizemos que seus projetos não sejam questionáveis. São-no e em mais de um aspecto, mas estamos falando de outra luta de gênero, de outro feminismo: o que vem de cima, do centro à periferia.

Nos próximos dias, as mulheres zapatistas celebrarão um encontro onde sua experiência e palavra terá um espaço exclusivo, assim não me aprofundarei mais nesse tema. Contudo, quero contar-lhes a breve história de um desencontro.

Nos primeiros meses posteriores ao início de nosso levante, um grupo de feministas (assim se autodenominaram) chegou a algumas das comunidades zapatistas.

Não, não chegaram a perguntar, a escutar, a conhecer, a respeitar. Chegaram falando o que as mulheres zapatistas deviam fazer, chegaram para libertá-las da opressão dos machos zapatistas (começando, evidentemente, por libertá-las do Sup.), a dizê-lhes quais eram seus direitos, a mandar, portanto.

Cortejaram quem consideravam as chefes (por certo, com métodos muito masculinos, diga-se de passagem). Através delas tentaram impor, de fora, na forma e conteúdo, uma luta de gênero que sequer se detiveram em averiguar se existia ou não e em que grau nas comunidades indígenas zapatistas.

Nem sequer pararam para ver se as haviam escutado e entendido. Não, sua missão “libertadora” estava cumprida. Voltaram a suas metrópoles, escreveram artigos para jornais e revistas, publicaram livros, viajaram com despesas pagas ao estrangeiro dando conferências, tiveram cargos governamentais etc.

Não vamos questionar isto, cada um consegue suas férias como pode. Só queremos recordar que não fizeram coisa alguma nas comunidades nem trouxeram benefício algum às mulheres.

Este desencontro inicial marcou a relação posterior entre as mulheres zapatistas e as feministas, e levou a uma confrontação subterrânea que, claramente, as feministas imputaram ao machismo vertical e militarista do EZLN. Isto chegou até o ponto em que um grupo de Comandantas se negou a um projeto sobre direitos da mulher. Acontece que queriam dar uns cursos, planejados por cidadãs, ministrados por cidadãs e avaliados por cidadãs. As companheiras se opuseram, queriam ser elas quem decidisse os conteúdos, quem ministrassem o curso, quem avaliassem os resultados e o que se seguia.

O resultado vocês poderão conhecer ao assistir ao Caracol da Garrucha e escutarem, dos próprios lábios das zapatistas, essas e outras histórias. Talvez lhes ajudassem a entender melhor levar a disposição e o ânimo de compreender. Talvez, como Sylvia Marcos no Israel das beduínas, entenderiam que as zapatistas, como muitas mulheres em muitos cantos do mundo, transgridem as regras sem descartar sua cultura, se rebelam como mulheres, mas sem deixar de ser indígenas e também, não há como esquecer, sem deixar de ser zapatistas.

Faz uns anos, um jornalista me contou que havia encontrado na estrada uma senhora zapatista e lhe havia dado “carona” até o povoado. “Andava com uniforme ou calça ou botas?”, perguntei-lhe preocupado. O jornalista me esclareceu: “Não, carregava água, camisa bordada e estava descalça. Ainda levava seu filho carregado no xale”. “Como soube então que era zapatista?”, insisti-lhe. O jornalista me respondeu com naturalidade: “é fácil, as zapatistas param diferente, caminham diferente, olham diferente”. “Como?”, reiterei. “Pois, como zapatistas”, disse o jornalista e sacou seu gravador para perguntar-me sobre a proposta de diálogo do governo, as próximas eleições, os livros que tenho lido e outras coisas igualmente absurdas.

Contudo é necessário assinalar que essa distância tem diminuído graças ao trabalho e compreensão de nossas companheiras feministas da Outra Campanha, particularmente e de maneira destacada, nossas companheiras da Outra Jovel.

Segundo minha visão machista, em ambos os lugares entendeu-se a diferença entre umas e outras e, portanto, iniciou-se um reconhecimento mútuo que acabará em algo muito diferente, que seguramente poderá abalar não só o sistema patriarcal em seu conjunto, mas também nós que apenas estamos entendendo a força e o poder dessa diferença, e que nos leva a repetir, ainda que com outro sentido, o “Vive le difference!”, Viva a diferença!

Dessa tensão que, paulatinamente, se converte em liga e ponte, resultará um novo calendário e uma nova geografia. Um e uma onde a mulher, em sua igualdade e em sua diferença, tenha o lugar que conquiste nessa sua luta, a mais pesada, a mais complexa e a mais contínua de todas as lutas antissistêmicas.


Fonte: Outras Palavras

"Mais Médicos: uma vereda para os nossos grandes sertões", por Reinaldo Guimarães

PICICA: "A fonte de uma das maiores frustrações (e de aprendizado) dos especialistas brasileiros no terreno da educação e do trabalho em saúde foi a evidência de que reformas curriculares não mudam o mercado de trabalho e que o caminho de ajustar a formação médica às necessidades de saúde é o inverso. É a mudança do mercado que será capaz de ajustar os currículos. Se tomarmos a atual conformação do mercado médico brasileiro, com a deterioração paulatina e consentida do SUS e a expansão selvagem do sistema suplementar, concluiremos que a formação médica entre nós decididamente não vai ao encontro das necessidades de saúde, muito pelo contrário. Não foi por outra razão que os médicos brasileiros não atenderam ao chamado do “Mais Médicos”. A campanha dos líderes corporativos contra o programa, nesse sentido, interpreta corretamente os desejos da maioria dos nossos médicos, em particular os mais jovens."

Mais Médicos: uma vereda para os nossos grandes sertões

Mais Médicos: uma vereda para os nossos grandes sertões  

De Reinaldo Guimarães*

O programa “Mais Médicos” está focado na necessidade de colocar médicos onde não há médicos e onde médicos não querem ir. O “Mais Médicos” não está interessado em atender as expectativas da corporação e, principalmente, de seus representantes sindicais.

O “Mais Médicos” não está fazendo competição com o mercado de trabalho dos médicos brasileiros. Antes de importar médicos, houve uma chamada para médicos brasileiros que, lamentavelmente, não prosperou. Em parte, devido a uma feroz campanha contra o programa liderada pelos líderes corporativos sindicais e de vários Conselhos Regionais de Medicina.

Após a frustração da chamada de médicos brasileiros, o programa abriu uma chamada internacional que, apesar de ter atraído médicos de vários países, não logrou ainda atingir as metas estabelecidas pelo Ministério da Saúde. Foi então que, com a interveniência da Organização Panamericana da Saúde, foi assinado o convênio com Cuba.

Se a campanha contra o programa já era feroz, a partir daí os sindicalistas médicos entraram numa escalada de insanidades que atingiu o seu ápice com as declarações do presidente do CRM de Minas Gerais. Disse ele que, caso tenha notícia de algum médico em exercício com diploma obtido no exterior e sem revalidação, acionará o Ministério Público do Trabalho e a Polícia Federal para impedi-lo. Fora de si (imagino eu), disse que orientará os médicos mineiros a não cooperarem com os “sem Revalida” cubanos, caso haja algum pedido de ajuda técnica por parte desses. No meu ponto de vista, caso essa afirmativa de seu presidente seja confirmada, o CRM de Minas está sob suspeição para julgar quaisquer transgressões éticas vindouras, posto que o seu presidente está a instruir os médicos mineiros a discriminar colegas, infringindo o Código de Ética Médica. Este, em seu capítulo I (princípios fundamentais), reza que “A Medicina  é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza” (grifo meu).

Os representantes corporativos esbravejam: sem o Revalida, não dá! Digo eu: se a banca examinadora não quiser, o Dr. Pitanguyou ou Dr. Jatene não serão aprovados num exame para revalidação de diploma. Não é a toa que apenas 10% dos que tentaram revalidar seus diplomas obtidos no exterior, desde a instituição do teste, conseguiram a revalidação. Com o estado de espírito que a maioria dos meus colegas têm apresentado com relação ao “Mais Médicos”, seria uma carnificina.

No dia 23 de agosto, um artigo na Folha de São Paulo dizia que médicos são produzidos em série em Cuba, para exportação. O tom era discretamente derrisório. É verdade, médicos são produzidos em série e esta é, há décadas, a principal ferramenta para a projeção internacional de Cuba. Qual o problema? Há quem exporte soldados e armas e guerras, há quem exporte cocaína e por aí vai. Cuba exporta médicos. Nesse caso, trata-se do que, em diplomacia, se chama soft power. Tão legítimo quanto, por exemplo, a exportação de programas de ajuda realizada há décadas pela agência estatal de cooperação norte-americana USAID.

Cuba produz médicos “em série”, também porque, graças ao bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos e, mais tarde, com o colapso soviético, necessita, para subsistir, de divisas. O exercício do soft power médico contribui também para que entrem divisas em Cuba. Pessoalmente, não me sinto confortável em apoiar que a remuneração de um profissional seja, em parte, apropriada pelo Estado. Mas o meu desconforto diminui quando me dou conta de quase 40% dos meus rendimentos são religiosamente apropriados pelo Estado brasileiro na forma de impostos variados. Parte desses, na fonte, como é o caso dos médicos cubanos que um colunista hidrófobo da revista Veja denominou de “escravos do Partido Comunista cubano”.

Outro comentário lido sobre os médicos cubanos, “produzidos em série”, é que eles não prestam. Sua formação é precária e eivada de ideologia. Não é o que a opinião internacional informada sustenta (tomei como tal o American Journal of Public Health, o Lancet e uma carta publicada em Science) (1)(2)(3). A conclusão do artigo de Cooper et. al. sobre a prevenção e controle das doenças cardiovasculares em Cuba vale a pena ser transcrita: “Where as the social and political structure of societies can under go rapid and dramatic change, such cultural norms as food, music, and religion are sometimes more resilient. The goal of socialist revolutions in poor undeveloped countries has been first and foremost to catch up with the industrial economies of the world. In public health, this has meant almost exclusively the elimination of infectious diseases and the assurance of low death rates in childhood. Cuba stands as the prime example of the unequaled success of the socialist project in achieving that goal. Within that tradition, however, the need to aggressively intervene against engrained cultural patterns, particularly those related to consumption, was something of a foreign idea. A fundamental rethinking of this strategy will be required to take full advantage of the new knowledge in prevention science that could now make an important contribution to the future health of the Cuban people. The improvements in quality and duration of life in Cuba over the last 50 years have been astounding and set the standard for poor countries around the world. These achievements—for example, eliminating polio in 1962, two decades ahead of the United States—are evidence of the remarkable goals Cuba is capable of achieving. Similar leadership in CVD prevention could make enormously valuable contributions to the worldwide campaign to control what has already become the most severe epidemic ever faced by humanity. The Cuban experience thus demonstrates that control of CVD in non industrialized countries is by no means impossible, and it highlights the critical importance of population-based prevention strategies” (4).

Acredito que os médicos cubanos talvez não sejam peritos em “procedimentos” de última geração - nem os realmente úteis, nem os inúteis ou francamente prejudiciais. Entretanto, desconfio que a maior parte dos médicos brasileiros também não seja, embora atualmente talvez almejem sê-lo. Mas os médicos cubanos não estão entre nós como “procedimentólogos”, mas como profissionais no campo da atenção primária (promoção, prevenção e cuidados básicos de saúde). E, nesse terreno, creio que eles têm muito a nos ensinar. Aliás, de acordo com o presidente Barack Obama, têm a ensinar também aos médicos norte-americanos (“U.S. President Barack Obama hasacknowledgedthatthe United Statescouldlearn from Cuba's medical foreign aidprogram”).

A fonte de uma das maiores frustrações (e de aprendizado) dos especialistas brasileiros no terreno da educação e do trabalho em saúde foi a evidência de que reformas curriculares não mudam o mercado de trabalho e que o caminho de ajustar a formação médica às necessidades de saúde é o inverso. É a mudança do mercado que será capaz de ajustar os currículos. Se tomarmos a atual conformação do mercado médico brasileiro, com a deterioração paulatina e consentida do SUS e a expansão selvagem do sistema suplementar, concluiremos que a formação médica entre nós decididamente não vai ao encontro das necessidades de saúde, muito pelo contrário. Não foi por outra razão que os médicos brasileiros não atenderam ao chamado do “Mais Médicos”. A campanha dos líderes corporativos contra o programa, nesse sentido, interpreta corretamente os desejos da maioria dos nossos médicos, em particular os mais jovens.

Esta é a razão da convocação dos médicos estrangeiros e, em particular, dos cubanos que, pelas razões que expressei no início desse texto, parecem estar dispostos a enfrentar os desafios médico-sanitários do Brasil profundo. Pode vir a ser um bom exemplo ao mercado.

Em 1997, uma equipe liderada por Maria Helena Machado concluiu e publicou uma pesquisa sobre os médicos brasileiros. O panorama que nela se vislumbra permanece atual, a despeito de terem se passado 16 anos. A rigor, as tintas com que Machado e sua equipe descrevem a categoria médica brasileira de então devem ser hoje bastante mais carregadas. Uma cópia do livro pode ser encontrada em http://static.scielo.org/scielobooks/bm9qp/pdf/machado-9788575412695.pdf. A leitura desse clássico me parece indispensável para compreender os dilemas dos médicos e seus representantes corporativos frente ao “Mais Médicos”.

Julie Feinsilver é uma socióloga atualmente na American University. Esteve no Brasil como consultora da presidência da Fiocruz em 1996. Nos últimos 20 anos vem estudando a diplomacia médica cubana. Em 2010, publicou um artigo na revista CubanStudies (5) que fornece uma visão abrangente sobre a ação de Cuba nesse terreno durante os primeiros 50 anos da revolução cubana. O centro de sua argumentação se localiza no balanço entre a solidariedade e o pragmatismo como vetores da atuação internacional de Cuba no campo da saúde. Creio ser uma leitura essencial para compreender esse tema e uma cópia de seu trabalho pode ser encontrada em: http://www.academia.edu/1139326/Fifty_Years_of_Cubas_Medical_Diplomacy_From_Idealism_to_Pragmatism.

* - Médico Sanitarista
Notas

(1) Manuel Franco, Richard Cooper, Pedro Orduñez - Making Sure Public Health Policies Work. SCIENCE, Vol 311 www.sciencemag.org.  24 February 2006, p. 1098 (letters).

(2) R. S. Cooper, P. Orduñez, M. D. I. Ferrer, J. L. B. Munoz, A., Espinosa-Brito - Cardiovascular Disease and Associated Risk Factors in Cuba: Prospects for Prevention and Control. http://ajph.aphapublications.org/doi/abs/10.2105/AJPH.2004.051417, Am. J. Public Health 96, 94 (2006).
(3) Wakai S. - Mobilization of Cuban doctors in developing countries. Lancet 2002: 360;92
(4) Tradução: “Onde a estrutura social e política das sociedades pode ser afetada por mudanças rápidas e dramáticas, tais normas culturais como alimentos, música e religião são, por vezes, mais resistentes. O objetivo de revoluções socialistas em países subdesenvolvidos pobres tem acontecido em primeiro lugar para acompanhar as economias industriais do mundo. Na saúde pública, isso significa quase que exclusivamente a eliminação de doenças infecciosas e a garantia de baixas taxas de mortalidade na infância. Cuba permanece como o principal exemplo do sucesso inigualável do projeto socialista em alcançar esse objetivo. Dentro dessa tradição, no entanto, a necessidade de intervir de forma agressiva contra padrões culturais arraigadas, particularmente aqueles relacionados ao consumo, era algo de uma ideia estrangeira. Um repensar fundamental desta estratégia será obrigatório para se tirar o máximo proveito dos novos conhecimentos em ciência de prevenção que poderiam agora fazer uma contribuição importante para o futuro da saúde do povo cubano. As melhorias na qualidade e na duração da vida em Cuba ao longo dos últimos 50 anos têm sido surpreendentes e definem o padrão para os países pobres ao redor do mundo. Estas conquistas, por exemplo, a eliminação da poliomielite em 1962, duas décadas à frente dos Estados Unidos, são a prova dos objetivos notáveis que Cuba é capaz de alcançar. Liderança semelhante na prevenção de doenças cardiovasculares poderia fazer contribuições extremamente valiosas para a campanha mundial para controlar o que já se tornou a epidemia mais grave já enfrentada pela humanidade. A experiência cubana demonstra, portanto, que o controle de doenças cardiovasculares em países não industrializados é absolutamente impossível, e destaca a importância fundamental das estratégias de prevenção baseadas na população".

(5) Julie M. Feinsilver -Fifty Years of Cuba's Medical Diplomacy: From Idealism to Pragmatism. Cuban Studies, Volume 41, 2010, pp. 85-104


Fonte:  Cebes

agosto 30, 2013

"Um barco solto no nevoeiro, sem amarras", uma aula aberta de Peter Pál Pelbart

PICICA: As manifestações de junho levaram Peter Pál Pelbart a falar da boa nova: a vidência coletiva, a partir da qual passou-se a enxergar o que estava à frente do nariz, e que antes parecia opaco, vislumbrando-se o que parecia impossível: a inversão entre o público e o privado. E muito mais, algo que pede uma nova relação entre vida, coletivo, desejo e poder.

Watch live streaming video from agejor_pucsp at livestream.com

Fonte: agemt.org

"Quando a xenofobia veste branco", por Rosemberg Cariry

PICICA: "O que aconteceu no Ceará neste triste episódio ficará registrado nos anais da nossa história como o Dia da Vergonha, o dia em que o fascismo triunfou sobre a solidariedade e a universalidade que tem marcado, por definição cultural, o espírito do povo cearense e brasileiro.

Acredito que os médicos cearenses, humanistas e éticos, farão uma “Carta de Desagravo”, pedindo desculpas aos colegas estrangeiros que aqui chegaram. Da minha parte, como cidadão cearense, torno público que não compartilho com esta vileza e, em meu próprio nome, peço desculpas aos médicos estrangeiros hostilizados, acreditando que este pedido de desculpas é o pedido de milhões de cearenses e de brasileiros que padecem nos mais profundos sertões, praias, florestas e montanhas, sem médicos e solidariedade nenhuma por parte daqueles que deviam ter como missão o sagrado dever do amor e da solidariedade, acima da sede do lucro e da ascensão social.


Quando a xenofobia veste branco

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“Se ser ‘Ceará Moleque’ é vaiar médicos estrangeiros, afasto-me por inteiro de sua valia como modo de expressão, porque isto me cheira a fascismo

Por Rosemberg Cariry

(Este texto é dedicado ao Dr. Luiz Teixeira Neto e
à memória do Dr. Caetano Ximenes de Aragão,
dois médicos-poetas e humanistas,
que muito me ensinaram da vida e da solidariedade).


Um choque profundo, uma sensação de mal-estar, uma vontade de vomitar… Algo me atingiu em cheio, acho que não no corpo, mas no espírito. Não posso precisar o que senti naquele momento, em que vi, pela TV, o constrangimento que alguns médicos cearenses infligiram aos aqui aportados médicos estrangeiros, em franca ação de hostilidade. Esses senhores, vestidos de branco, em nome dos seus interesses corporativos e econômicos  fizeram um espécie de “corredor polonês”, por onde os médicos estrangeiros, que vieram para trabalhar pela saúde da população, nos mais distantes e miseráveis rincões do país, foram obrigados a passar, entre vaias e xingamentos. Talvez o melhor termo para traduzir o que senti seja a palavra VERGONHA. Acreditem, fui acometido de uma profunda vergonha, ao ver um ato de tamanha hostilização e incivilidade acontecer na minha terra, sob a tutela do Sindicato dos Médicos do Ceará. Pensei comigo: chegamos ao fundo do poço!
Posso compreender toda a mística que se faz em torno do “Ceará Moleque” e do sentido cultural do uso da vaia, ao longo de toda a nossa história. Porém, se ser “Ceará Moleque” é vaiar médicos estrangeiros, afasto-me por inteiro de sua valia como modo de expressão, porque isto me cheira muito mais a xenofobia e a fascismo.  Quanto ao significado deste ato, como ação política, podem os senhores sindicalistas ter a certeza de que atraíram para si o desprezo de milhões de cearenses e de brasileiros. Em todo canto deste imenso Brasil, nos últimos dias, não se comenta outra coisa, a não ser esta atitude vergonhosa.


Eu sou de um tempo em que os médicos eram conhecidos pela civilidade, pela erudição, pelo humanismo, pelo saber profundo que nascia de uma vocação, do ser e do construir-se na vida dentro de uma comunidade de destinos. A maioria destes médicos de boa cepa, pois, além de grandes profissionais, eram ainda homens que cultivavam as artes, que sabiam filosofia, que refletiam sobre a vida e o destino da humanidade, colocando a ética como um bem supremo.

Eram homens sábios, homens de tal grandeza, dos quais as comunidades se orgulhavam, chegando a nomear ruas e praças para que as futuras gerações deles se lembrassem, quando eles deixavam o nosso convívio. Quem na vida não conheceu um desses médicos, também escritores, poetas ou filósofos, com os seus ensinamento de caráter iniciático na vida e nas artes? Quem poderia imaginar um médico desta envergadura espiritual vaiando um colega estrangeiro, em um ato cheio de ódio e xenofobia? Impossível imaginar!

Mas o que acontece hoje? No Ceará, alguns médicos hostilizam, de forma escandalosa, estrangeiros com ameaças e xingamentos. É bem possível, que as universidades, sobretudo as universidade e faculdades particulares, fábricas de lucro e de técnicos destituídos de cultura e de humanismo, estejam produzindo estes “monstrinhos vestidos de branco”, analfabetos de qualquer humanismo, incapazes de ler a dimensão humana de um romance de Dostoievsky ou a metafísica de um conto de Guimarães Rosa. Falar em Darcy Ribeiro, Ariano Suassuna, Gilberto Freire, Graciliano Ramos ou Euclides da Cunha, perto deles, é falar em javanês. Pobres médicos-tecnocratas, jogados a um convívio viciado e naturalizado com a indústria farmacêutica, quantas vezes submetidos aos grandes laboratórios que, em nome do lucro e da ganância capitalista, erguem o seu reinado da morte, travestidos de tecnologias arrojadas e mascarados de patentes.

Quando vi estes jovens médicos, feito moleques incultos e incivilizados, vaiando e xingando os seus colegas estrangeiros de profissão, pensei comigo mesmo: esperem, mas não somos todos netos de estrangeiros? Não vivemos em um país que nasceu de um grande encontro de povos e culturas? Não é esta a grande característica do nosso país? Não é a generosidade e a hospitalidade o nosso maior tesouro? A cena brutal e humilhante imposta aos médicos estrangeiros, fez-me imaginar os nossos avós estrangeiros sendo vaiados, forçados a passar pela humilhação do xingamentos e do preconceito, nos corredores poloneses armados pelos “reacionários nacionalistas” da época (filhos também de estrangeiros).

Não devíamos receber estes irmãos cubanos, espanhóis, portugueses, ucranianos, venezuelanos, mexicanos e de tantos outros países, com água de coco e maracatu? Não devíamos recebê-los ao som de violas e rodas de coco? Não deveríamos aplaudir aqueles que quisessem ficar e ajudar na construção da grande nação, da mesma forma que fizeram os nossos avós, que aqui chegando, casaram-se com gente de todas as raças e nos fizeram mestiços e multiculturais? Não somos nós os herdeiros de mil e um povos e de mil uma culturas?

O que aconteceu no Ceará neste triste episódio ficará registrado nos anais da nossa história como o Dia da Vergonha, o dia em que o fascismo triunfou sobre a solidariedade e a universalidade que tem marcado, por definição cultural, o espírito do povo cearense e brasileiro.

Acredito que os médicos cearenses, humanistas e éticos, farão uma “Carta de Desagravo”, pedindo desculpas aos colegas estrangeiros que aqui chegaram. Da minha parte, como cidadão cearense, torno público que não compartilho com esta vileza e, em meu próprio nome, peço desculpas aos médicos estrangeiros hostilizados, acreditando que este pedido de desculpas é o pedido de milhões de cearenses e de brasileiros que padecem nos mais profundos sertões, praias, florestas e montanhas, sem médicos e solidariedade nenhuma por parte daqueles que deviam ter como missão o sagrado dever do amor e da solidariedade, acima da sede do lucro e da ascensão social.

Para concluir este meu simples ato de indignação, cito um fato cotidiano. Discutia o grave acontecimento com um motorista de táxi e dizia a ele que iria escrever sobre o assunto. Do alto da sua sabedoria, o motorista de táxi, aconselhou-me: “Escreva não. Um dia o senhor pode chegar em um hospital, cair nas mãos de um deles e eles podem desligar os aparelhos”. Eu que preparava-me para fazer duras acusações contra os “vândalos vestidos de branco”, terminei defendendo-os, quando de pronto respondi: “Nisto eu não posso acreditar! Sei sim, que estes médicos que hostilizaram os médicos estrangeiros, com vaias e xingamentos, agem como moleques, como xenófobos pequeno-burgueses e corporativistas, mas não acredito que as faculdades de medicina do meu país estejam também forjando potenciais assassinos”. Acreditar nisto seria descrer não apenas da medicina, mas da sua deontologia, como princípio e garantia de regulação ética das normas que regulam esta profissão, cunhada, desde os seus primórdios, para proteger e salvar a vida humana.

De qualquer forma, cito o fato, para que estes equivocados “médicos-moleques” saibam qual o conceito que terminaram por cravar no coração das pessoas, com tal espetáculo público de despreparo profissional.


 

Rosemberg Cariry é cineasta

Fonte: Blog da Redação

"Na rua: os horríveis vestem máscara" (Revista O viés)

PICICA: "O black bloc transfigura a violência de classe, naturalizada e generalizada, na figura de um amor brutal. Não é tanto guiado pelo ódio… bem menos do que se pensa. Horda odiosa você vê na repressão indiscriminada, em prazer sádico, por que o que move o protesto é o amor. Um amor que usa preto e calça botas, nada complacente. É um amor pela rua, a rua à espreita no interior da gente, o nosso próprio primitivismo. Afeta a gente ali, no limiar subdesenvolvido onde perdemos a “naturalidade” dos gestos, das muitas pequenas resignações ao cotidiano, das tantas culpas. É no limiar de onde saímos que nem um “bando de malucos” pela cidade, uma matilha querendo outra coisa e muito. É o limiar onde o medo se converte em determinação, a culpa em sentimento de poder e ação coletiva. Determinados a existir, a existir, além da situação de isolamento controlado, com que a nova sociedade pretende, com seu imaginário e seus remédios, modular a vida e o trabalho.

A eztetyka da revolução não é bonitinha e é bom que não seja. Não esperem marchas anódinas de 200 cupinchas com bandeiras vermelhas. Não aguardem procissões corporativistas comandadas por carros-de-som pedindo salário. Nem pessoas distribuindo flores em nome da redenção pela paz.

Por muito tempo, as elites brasileiras exploraram a cultura dos pobres repondo no lugar de sua alegria e vitalidade usurpadas o signo do horror. Só assim puderam reconhecer a força dessa cultura, demonizando-a. Hoje, novamente, o horror e o escândalo servem às caricaturas decadentes atrás da alta sociedade de sucesso, enquanto os “horríveis” vestem máscara. Não são mais anônimos. Amarildo finalmente tem um nome, e vive."

NA RUA: OS HORRÍVEIS VESTEM MÁSCARA


Você caminha no meio do black bloc e vê de tudo. Tem gente que se define anarquista, socialista, anticapitalista, autonomista, anarcocomunista, anarcoinsurrecional… longo etcétera. Tem também quem diga: “Eu? eu sou favela”. Ou “Eu sou Amarilda”, partilhando a indignação pelo sumiço de tantos Amarildos e Amarildas nas mãos do estado. Ou ainda, eu já ouvi, “Eu sou ninguém”. Estão unidos menos por uma causa ou bandeira do que por uma ética. Uma ética que também é uma estética. A revolução, já dizia Gláuber, é uma eztetyka.


É a ética da recusa radical: vou pra rua pra protestar e enfrento quem quer que tente me impedir. Finco pé e mando às favas. Protestar não funciona sem incômodo, sem transtorno, sem repor o inconveniente diluído no cotidiano em um ato direto, um propósito inequívoco. Sem transtorno você não prova sequer a sua existência.


Quem vê o black bloc passando sabe que eles não vão embora pra casa sem alguma intervenção. Dá pra sentir isso, essa iminência, especialmente quando começam os gritos de “sem violência”. Sente a excitação ventando de rosto em rosto, uma comunicação silenciosa à moda das formigas. Eles afirmam uma abundância, uma velocidade. Vão arrastando, pelo transe, pras ações precariamente planejadas. É outra experiência de cidade, correndo e bloqueando vias, dispersando e reagrupando, fugindo, mas fugindo com um sorriso no rosto. Uma experiência que parecia definitivamente enterrada pelo trânsito e seu magma sonoro, o grande protagonista do espaço urbano.


A grande imprensa, seus intelectuais orgânicos e sobretudo os partidos políticos só conseguem ver um bando de malucos quebrando tudo, sem nenhum objetivo senão uma autoafirmação irresponsável. Ou são “políticos” demais, porque manipulados por ideologias e grupelhos anacrônicos. Ou são despolitizados demais, porque sem liderança, voluntaristas e desprogramados. Insistem despudoradamente, sabe-se lá por qual pesquisa-relâmpago, que não passa de minoria sem respaldo da população. Tascam uma ou outra entrevista sob medida no noticiário, uma ou outra fala de especialista, para frisar: “manifestação sim, vandalismo não”. Não olham e quando olham não vêem. Se vêem, não enxergam. Em todo caso não entendem. Ou melhor: entendem que algo de visceralmente novo no Brasil está surgindo que eles não entendem, e isso dá medo.


O protesto é expressão de condições econômicas e sociais. O novo Brasil com chances pra todos propiciou à maioria da população o que ela não tinha: um futuro. Pensar um futuro. Os pobres conquistaram uma passagem para o futuro, em vez de existirem “presos” ao presente. Puderam livrar-se da lei da sobrevivência, que impunha a necessidade do aqui-agora. Agora, podem estudar, ter carreira, planejar as férias, projetar os filhos. Contudo, na medida em que o sucesso se torna acessível, o fracasso também vem a reboque. Na nova realidade brasileira, preciso fazer mil e uma coisas, me qualificar permanentemente, me produzir empreendedor, criativo, sustentável, para alcançar o cobiçado sucesso. E se não me esforçar e conseguir… terei fracassado. O acesso ao futuro me lança no jogo da vida entre o sucesso e o fracasso. O novo Brasil nasce com uma montanha de cobranças, expectativas e exigências de adaptação. Quanto medo do fracasso, da vergonha, quanta culpa acumulada! Esse o fardo da “nova classe média” ou “Classe C”, conclamada a participar do moinho satânico do mercado atual, de trabalho ou consumo.


No Brasil ascendente de hoje, ser bem sucedido é uma obrigação. Toda a publicidade das empresas, a psicologia motivacional, a pressão familiar e os slogans dos governos tentam te convencer disso. No Brasil desenvolvido, você já nasce devendo o sucesso, já brota sem direitos que não o de pagar por eles. Se está no ônibus atritando e disputando centímetros com a carne alheia, a culpa é sua, por não ter sido bem sucedido em comprar o conforto de um carro. Se o filho está na escola pública sem aulas, você deveria ter sido bem sucedido o suficiente para poder pagar a particular. Se está na fila do hospital com um familiar, humilhado e esperando o atendimento que nunca chega, a culpa é sua por não conseguir bancar um plano de saúde. A responsabilidade é sempre sua, nunca do sistema de transportes, da educação, da saúde. Somos concitados a um empenho individual hercúleo para pagar carro, plano de saúde e escola particular. Imagine se esses empenhos individuais, em geral inglórios, fossem reunidos num esforço coletivo para abrir as caixas pretas dos sistemas de transportes, hospitais e escolas públicos?


Eis as manifestações, o descarrego multitudinário das culpas. Uma revolta contra o “sucesso” de uma sociedade, contra um projeto civilizatório de mentes e afetos.


Grupo queima revistas Veja/ Foto: Mídia Ninja

Quando o Black bloc ataca os símbolos do poder, não está fazendo mais do que contestando uma ordem social que naturalizou a violência. A ponto de disfarçar-se de sucesso, desenvolvimento, pacificação, com a maior boa consciência de telejornal. Mas a baderna nunca deixou de ser um dos preços da democracia, e um dos menores. Thomas Jefferson, que não era nenhum anarquista, escreveu que não poderá haver regeneração das instituições democráticas “sem uma rebeliãozinha de vez em quando”. Que conquistas de direitos, afinal, se deram historicamente na base do consenso? Essa “violência” atribuída às manifestações é minúscula, desprezível, se comparada não somente com os sumiços e homicídios praticados pelas polícias e milícias contra a juventude negra e pobre, como também ao colossal acúmulo de violência impregnado no sistema de saúde, transporte e educação. 


Não fosse o interesse da grande mídia no abafamento de uma revolta que lhe ameaça os anéis e os dedos, certamente as coberturas teriam outras prioridades e preocupações. A pergunta certa não é porque se indignam com tanta ênfase. Mas, sim, como não se indignariam, quando sequer o básico é garantido, enquanto a cidade se transforma num playground exclusivo de rico? Como não se indignar o tempo todo? Quando violentam camelôs, sem tetos, estudantes, favelados e manifestantes, para que um punhado de rostos soberbos possa brindar ao triunfo da vontade modernizadora e suas grandes obras?


O black bloc transfigura a violência de classe, naturalizada e generalizada, na figura de um amor brutal. Não é tanto guiado pelo ódio… bem menos do que se pensa. Horda odiosa você vê na repressão indiscriminada, em prazer sádico, por que o que move o protesto é o amor. Um amor que usa preto e calça botas, nada complacente. É um amor pela rua, a rua à espreita no interior da gente, o nosso próprio primitivismo. Afeta a gente ali, no limiar subdesenvolvido onde perdemos a “naturalidade” dos gestos, das muitas pequenas resignações ao cotidiano, das tantas culpas. É no limiar de onde saímos que nem um “bando de malucos” pela cidade, uma matilha querendo outra coisa e muito. É o limiar onde o medo se converte em determinação, a culpa em sentimento de poder e ação coletiva. Determinados a existir, a existir, além da situação de isolamento controlado, com que a nova sociedade pretende, com seu imaginário e seus remédios, modular a vida e o trabalho.


A eztetyka da revolução não é bonitinha e é bom que não seja. Não esperem marchas anódinas de 200 cupinchas com bandeiras vermelhas. Não aguardem procissões corporativistas comandadas por carros-de-som pedindo salário. Nem pessoas distribuindo flores em nome da redenção pela paz.


Por muito tempo, as elites brasileiras exploraram a cultura dos pobres repondo no lugar de sua alegria e vitalidade usurpadas o signo do horror. Só assim puderam reconhecer a força dessa cultura, demonizando-a. Hoje, novamente, o horror e o escândalo servem às caricaturas decadentes atrás da alta sociedade de sucesso, enquanto os “horríveis” vestem máscara. Não são mais anônimos. Amarildo finalmente tem um nome, e vive. 

OS HORRÍVEIS VESTEM MÁSCARA, pelo viés de Bruno Cava*

*Bruno é autor do site Quadrado dos Loucos

Fonte: Revista O viés

agosto 29, 2013

"Xenofobia é eufemismo", por Bruno Cava

PICICA: "Os índios e os negros em seu devir histórico foram excluídos sistematicamente da cultura oficial, da possibilidade de criar uma cultura que não seja de pertencimento e homologação aos brancos. Para adaptar-se ao Brasil moderno, para ganhar o direito a um futuro, lhes é exigido que embranqueçam, embranquecendo consigo a própria memória do negro e do índio. Por isso que precisam lutar todos os dias para abrir um espaço que não seja aquele trocado por subserviência e renúncia subjetiva. Contra eles, a cultura oficial, onipresente no noticiário, continua secretando uma moral “neutra, imparcial e desracializada”, apenas para encobrir as violências cotidianas. Além de eximir-se de qualquer relação de causa e efeito, e muito menos de responsabilidade , constrói para si uma boa consciência, uma indignação moral e um civismo, que funcionam para reproduzir e perpetuar as desigualdades. O problema seria melhorar a (inefável e sempre distante) Base, já que uma injustiça não justifica outra… afinal, não queremos ser racistas, não é mesmo?"
 
Xenofobia é eufemismo
 


“A nigger on a horse!”, balbucia paralisado o homem branco ao ver Django passar na rua, no último filme de Tarantino. A cidadezinha simplesmente cristaliza com a visão inédita de um escravo montado. Não foi diferente nesta semana, quando os médicos cubanos desembarcaram no nordeste do país. “Um negro de jaleco! e doutor!” E eram vários. Uma comitiva sanitária inteira de mulheres e homens negros. Como pode? Parecem empregadas domésticas ou pais-de-santo…

À espera deles, colegas brasileiros horrorizados debochando e vaiando. Realmente impressionante. Com uma expressão de repulsa que se compraz da própria justeza, a mesma com que se queimavam as bruxas, mutilavam os escravos fugidos ou se bombardeiam até hoje os palestinos, iraquianos e afegãos. Xenofobia é eufemismo. Foi uma expressão de racismo sincero. Não importa que as pessoas não tenham intenção racista, que estejam convictas para si que isso nada tenha a ver com a questão da raça, e que apenas estariam exercendo um dever cívico de defender o justo, o certo. O racismo está no certo. Não está na cabeça das pessoas. Está entranhado na própria boa consciência que nos faz acreditar não sermos racistas.

Vergonha de quem se julga acima dessa realidade, como se nada tivesse a ver com o racismo. Vergonha da grande imprensa e seus jornalistas orgânicos, que vêm preparando o terreno para essas manifestações de ódio e a violência há semanas. O preconceito impregnado na mídia corporativa não está encoberto apenas pela atitude superior e imparcial, meticuloso em maquiar-se para emitir as opiniões mais violentas. Mas também pelas caretas, gestos, olhares, pequenos detalhes (o modo como cruzam as pernas, como sorriem irônicos, como trocam olhares, como franzem a testa na hora exata) com que os seus funcionários bem vestidos “passam a senha” para as audiências praticarem elas mesmas os atos mais abertos de rejeição e deboche. Dizendo-lhes: sem política, sem preconceito, sem interesses, a gente só quer o certo.

Sobre o caso, li este texto de Marcos Romão, chama-se “Negras médicas e domésticas” e é incontornável. O autor, negro, admite a sensação de estranheza. Uma comitiva médica majoritariamente formada por negras e negros, com aquele visual austero, afronta qualquer coisa de sólido na percepção. É uma inteira sensibilidade colocada em xeque. Marcos vê de positivo no episódio o choque terapêutico, a capacidade de os médicos cubanos porem a nu a vergonha nacional.
O episódio não reafirmou somente que o sistema de saúde é gradativamente mais péssimo quanto mais pro interior e mais pra norte do país. Também mostrou a responsabilidade direta da dita “classe médica”, e junto dela toda uma cultura de ensino, representação e defesa de interesses que contribui, em seu racismo cívico, ao péssimo atendimento. As resistências proliferam por dentro, e vão se fortalecer com outras culturas médicas, talvez, a de Cuba. O médico brasileiro tem muito a ganhar com o cubano.

Os índios e os negros em seu devir histórico foram excluídos sistematicamente da cultura oficial, da possibilidade de criar uma cultura que não seja de pertencimento e homologação aos brancos. Para adaptar-se ao Brasil moderno, para ganhar o direito a um futuro, lhes é exigido que embranqueçam, embranquecendo consigo a própria memória do negro e do índio. Por isso que precisam lutar todos os dias para abrir um espaço que não seja aquele trocado por subserviência e renúncia subjetiva. Contra eles, a cultura oficial, onipresente no noticiário, continua secretando uma moral “neutra, imparcial e desracializada”, apenas para encobrir as violências cotidianas. Além de eximir-se de qualquer relação de causa e efeito, e muito menos de responsabilidade , constrói para si uma boa consciência, uma indignação moral e um civismo, que funcionam para reproduzir e perpetuar as desigualdades. O problema seria melhorar a (inefável e sempre distante) Base, já que uma injustiça não justifica outra… afinal, não queremos ser racistas, não é mesmo?

Também pressinto que é positivo escancarar o conflito racial. Nesse sentido, o episódio é mais “um pouquinho de café num balde de leite”, como disse o Marcos. Porque o conflito já ocorre e tem lados, tem sua contagem de humilhados, deserdados e mortos. Romper o consenso da representação colonizada serve, sobretudo, para enfraquecer o lado vencedor. Em vez de encarar o dissenso, prefere lidar com as resistências na base da ignorância, da ridicularização, da supressão, em suma, com isso que se vê em qualquer telejornal.

Por alguns breves momentos, a sociedade brasileira saiu dos gonzos. Num país em que, como o personagem de Leonardo di Caprio de Django, as elites se orgulham de ser imitações caricatas do colonizador, a ocupação por tantos negros da reserva de status — que ainda é a profissão médica — só pode ser escandalosa em si mesma.

Fonte: Quadrados dos Loucos

"Convite aos Médicos", por Pedro Peruzzo

PICICA: "Nunca vi a comunidade médica saindo às ruas para protestar pela situação do Sistema Único de Saúde (SUS), mas atualmente tenho visto os senhores e as senhoras emputecidos protestando contra a vinda de médicos estrangeiros para atender nos locais em que os senhores não querem atender.
[...]
Portanto, senhores e senhoras, faço um convite para que vocês ou assumam que não querem dividir o bolo com ninguém e estão com receio de ter de assumir posturas mais humanas e respeitosas para com os pacientes (inclusive os pobres), ou saiam às ruas pela melhoria e universalização do SUS, pois só assim será possível acreditar que os protestos de vocês são, de fato, por um país melhor PARA TODOS e não um surto de egoísmo solipsista!"

 

CONVITE AOS MÉDICOS




por Pedro Peruzzo*

Nunca vi a comunidade médica saindo às ruas para protestar pela situação do Sistema Único de Saúde (SUS), mas atualmente tenho visto os senhores e as senhoras emputecidos protestando contra a vinda de médicos estrangeiros para atender nos locais em que os senhores não querem atender.

Inicialmente quero deixar claro que neste momento não falo como professor ou como advogado, mas como cidadão que precisa dos trabalhos dos senhores e das senhoras e que sabe a lamentável situação do Sistema Único de Saúde no Brasil. Agradeço também aos médicos que conversaram comigo a respeito e que, incrivelmente, demonstraram extrema sanidade mental, compromisso democrático e honestidade social. Não fosse a minha sorte de estar cercado de pessoas razoáveis, talvez eu estivesse num hospital sendo medicado por algum dos senhores, tamanha dor de estômago que me causa o descaso que a maioria dos colegas dos senhores tem para com as pessoas que não podem pagar R$ 300,00 pelas consultas. 

Não vou falar de xenofobia. Os médicos com quem conversei apresentaram argumentos importantes, como o fato de o governo estar trazendo médicos estrangeiros, mas não estar investindo em estrutura de saúde para que os médicos possam trabalhar. Esse argumento é importante, mas precisa ser analisado com honestidade. 

De fato, trazer médicos do exterior para trabalhar em condições precárias não é de todo inteligente. No entanto, precisamos ser honestos e reconhecer que não é pelo fato de inexistir infraestrutura no interior do país que falta médico em centenas de cidades do Brasil. Precisamos reconhecer que é necessário o mínimo de estrutura para que os médicos estrangeiros prestem serviços de qualidade, mas também precisamos reconhecer que o que faz os médicos “nacionais” permanecerem nos grandes centros urbanos é a absurda disponibilidade de dinheiro que esses centros oferecem aos “doutores da vida”. 

Se o único motivo para o fato de não existir médico bastante em alguns lugares do país ou nas periferias da cidade de São Paulo, por exemplo, fosse a falta de infraestrutura, essa classe letrada, de boa aparência (para lembrar o comentário psicótico da senhorita Micheline Borges), culta, já poderia ter conseguido melhorar muito essa situação saindo às ruas ou fazendo qualquer outra pressão política. No entanto, não foi isso que assistimos, certo doutores?

Considerando que a hipótese mais evidente é a de que não existe médico no interior do Brasil pelo fato de que, nessas localidades, o Dr. ou a Dra. não vai conseguir ganhar muito dinheiro, e considerando que, no Brasil, ninguém pode ser obrigado a exercer sua profissão nesse ou naquele outro lugar, o único motivo para os protestos dos médicos contra a entrada de médicos estrangeiros é o receio de perderem numa concorrência em que o respeito e o cuidado com o ser humano pesa consideravelmente na hora da escolha do profissional. 

Profissionais que aceitam prestar serviços tão relevantes a pessoas tão pobres certamente têm uma afeição pela humanidade e pela dignidade bem maior do que o profissional que só distribui respeito nos plantões em hospitais de alto padrão ou em suas clínicas particulares. Precisamos de mais médicos do tipo Drauzio Varella e menos Roberto Kalil, que deixou transparecer seus transtornos obsessivos no programa Roda Viva quando afirmou não tirar férias por não gostar de areia! Risível, pra não dizer triste! 

Portanto, senhores e senhoras, faço um convite para que vocês ou assumam que não querem dividir o bolo com ninguém e estão com receio de ter de assumir posturas mais humanas e respeitosas para com os pacientes (inclusive os pobres), ou saiam às ruas pela melhoria e universalização do SUS, pois só assim será possível acreditar que os protestos de vocês são, de fato, por um país melhor PARA TODOS e não um surto de egoísmo solipsista!

* Advogado, Defensor dos Direitos Humanos, Militante do Tribunal Popular: o Estado brasileiro no banco dos réus

"Introdução à vida não fascista- Michel Foucault" (Resistências e Resiliências)

PICICA: "Como se introduz o desejo no pensamento, no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve despender suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de mudança da ordem estabelecida?"

Introdução à vida não fascista- Michel Foucault

[Prefácio à edição americana do Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari [trad. F. Durand Bogaert, N. York, Viking Press, 1977]. Republicado em M. Foucault Dits et Écrits, vol III (1976-1979). Paris: Gallimard, 1994. Extraído de Carlos Henrique de Escobar (org), Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon Editorial, 1991. Tradução de Carmem Bello a partir do texto editado na revista Magazine Littéraire , n. 257, septembre, 1988.]
               Michel Foucault
     

Durante os anos 1945-65 (penso na Europa), havia uma maneira correta de pensar, um certo estilo de discurso político, uma certa ética do intelectual. Era preciso estar na intimidade com Marx, não deixar seus sonhos vagabundear muito longe de Freud, e tratar os sistemas dos signos - o significante - com o maior respeito. Tais eram as três condições que tornavam aceitável esta ocupação singular que é o fato de escrever e de enunciar uma parte da verdade sobre si mesmo e sua época.


Depois viriam cinco breves anos, apaixonados, cinco anos de júbilo e de enigma. Às portas do nosso mundo, o Vietnã, evidentemente, e o primeiro grande golpe levado aos poderes constituídos. Mas aqui, no interior dos nossos muros, o que se passava exatamente? Uma amálgama de política revolucionária e anti-repressiva? Uma guerra levada em duas frentes - a exploração social e a repressão psíquica? Uma elevação da libido modulada pelo conflito de classes? É possível. Seja o que for, é por esta interpretação familiar e dualista que se pretendeu explicar os acontecimentos destes anos. O sonho que, entre a I Guerra Mundial e o acontecimento do fascismo, havia tido sob seu charme as frações mais utopistas da Europa - a Alemanha de Wilhem Reich e a França dos surrealistas - havia retornado para abarcar a própria realidade: Marx e Freud iluminados pela mesma incandescência.

 Mas foi bem isso que se passou? Tratou-se de uma retomada do projeto utópico dos anos 30, desta vez à escala da prática histórica? Ou houve, ao contrário, um movimento em direção às lutas políticas que não se conformavam mais com o modelo prescrito pela tradição marxista? Em direção a uma experiência e uma tecnologia do desejo que não eram mais freudianas? Certamente brandiram-se os velhos estandartes, mas o combate se deslocou e ganhou novas zonas.

O Anti-Édipo mostra, em primeiro lugar, a extensão do terreno coberto. Mas é preciso muito mais. Ele não se dissipa no denegrimento dos velhos ídolos, mesmo se ele se diverte muito com Freud. E,sobretudo, nos incita a ir mais longe.

Seria um erro ler o Anti-Édipo como a nova referência teórica (essa famosa teoria que se nos anunciaram tantas vezes: essa que vai tudo englobar, aquela que é absolutamente totalizante e tranqüilizadora, aquela que nos asseguram da qual “temos tanta necessidade” nesta época de dispersão e de especialização, de onde a “esperança” desapareceu). Não é preciso procurar uma “filosofia” nesta profusão extraordinária de noções nova e de conceitos-surpresa. O Anti-Édipo não é um Hegel escandaloso. A melhor maneira, creio eu, de ler o Anti-Édipo é abordando-o como uma “arte”, no sentido em que se fala de “arte erótica”, por exemplo. Apoiando-se sobre noções aparentemente abstratas de multiplicidades, de fluxo, de dispositivos e de alternativas, a análise da relação do desejo com a realidade e com a “máquina” capitalista contribui para responder a questões concretas.

Questões que se preocupam menos com o «porquê» das coisas que com seu «como». Como se introduz o desejo no pensamento, no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve despender suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de mudança da ordem estabelecida? Ars erótica, ars theoretica, ars política.
Daí os três adversários com os quais o Anti-Édipo se encontra confrontado. Três adversários que não têm a mesma força, que representam graus diversos de ameaça, e que o livro combate por diferentes meios.

1- Os ascetas políticos, os militantes morosos, os terroristas da teoria, aqueles que queriam preservar a ordem pura da política e do discurso político. Os burocratas da revolução e os funcionários da verdade.

2- Os deploráveis técnicos do desejo - os psicanalistas e semiólogos que registram cada signo e cada sintoma, e que querem reduzir a organização múltipla do desejo à lei binária da estrutura e da falta.

3- Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (já que a oposição de O Anti-Édipo a seus outros inimigos constitui antes um engajamento tático): o fascismo. E não apenas o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini - que soube tão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas - mas também o fascismo que está em todos nós, que assombra nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa mesma que nos domina e nos explora.

Eu diria que O Anti-Édipo (que seus autores me perdoem) é um livro ético, o primeiro livro de ética que foi escrito na França desde há muito tempo (é talvez a razão pela qual o seu sucesso não se limitou a um «leitorado» particular: ser anti-Édipo tornou-se um estilo de vida, um modo de pensamento e de vida). Como fazer para não vir a ser fascista mesmo quando (sobretudo quando) se crê ser um militante revolucionário? Como desembaraçar nossos discursos e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como caçar o fascismo que se incrustou em nosso comportamento? Os moralistas cristãos procuravam os traços da carne que estavam alojados nas dobras da alma. Deleuze e Guattari, por sua parte, vigiam os traços mais ínfimos do fascismo no corpo.

Rendendo uma modesta homenagem a S. Francisco de Salles [Homem da igreja do séc. XVII, que foi cardeal de Genebra. É conhecido por sua Introdução à vida devota], poder-se-ia dizer que o Anti-Édipo é uma introdução à vida não-fascista.

Esta arte de viver, contrária a todas as formas de fascismo, quer estejam já instaladas ou próximas do ser, se faz acompanhar de um certo número de princípios essenciais, que eu resumiria como se segue,se tentasse fazer deste grande livro um manual ou um guia da vida cotidiana:

- Libere a ação política de toda a forma de paranóia unitária e totalizante.

- Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, antes que por submissão e hierarquização piramidal.

- Libere-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna) que o pensamento ocidental por tanto tempo manteve sagrado enquanto forma de poder e modo de acesso à realidade. Prefira o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os agenciamentos móveis aos sistemas, considere que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade.

- Não imagine que precise ser triste para ser militante, mesmo se a coisa que combatemos é abominável. É o elo do desejo à realidade (e não sua fuga nas formas da representação) que possui uma força revolucionária.

- Não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política para desacreditar um pensamento, como se ele não fosse senão pura especulação. Utilize a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política.

- Não exija da política que ela restabeleça os «direitos» do indivíduo, tais como a filosofia os definiu.O indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é «desindividualizar» pela multiplicação e pelo deslocamento, pelo agenciamento de combinações diferentes. O grupo não deve ser o elo orgânico que une indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de «desindividualização».

- Não se apaixone pelo poder.

Poder-se-ia mesmo dizer que Deleuze e Guattari gostam tão pouco do poder que procuraram neutralizar os efeitos de poder ligados a seu próprio discurso. Daí os jogos e armadilhas que se encontram um pouco em todo o livro, e que fazem de sua tradução uma verdadeira prova de força. Mas não são as armadilhas familiares da retórica, aquelas que procuram seduzir o leitor sem que ele esteja consciente da manipulação, e acabam por ganhá-lo para a causa dos autores contra sua vontade. As armadilhas de O Anti-édipo são aquelas do humor: tantos convites a se deixar expulsar, a autorizar o adeus ao livro em fechando a porta. O livro leva muitas vezes a pensar que ele não é senão humor e jogo lá onde, no entanto,qualquer coisa de essencial acontece, qualquer coisa que é da maior seriedade: a caça a todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos circundam e nos comprimem, até as formas pequenas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas.


Fonte: Resistências e Resiliências