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PICICA - Blog do Rogelio Casado - "Uma palavra pode ter seu sentido e seu contrário, a língua não cessa de decidir de outra forma" (Charles Melman) PICICA - meninote, fedelho (Ceará). Coisa insignificante. Pessoa muito baixa; aquele que mete o bedelho onde não deve (Norte). Azar (dicionário do matuto). Alto lá! Para este blogueiro, na esteira de Melman, o piciqueiro é também aquele que usa o discurso como forma de resistência da vida.
setembro 30, 2015
Love, ponto de atrito entre amor e sexo. POR José Geraldo Couto (BLOG DO IMS)
PICICA: "Em algum momento da história humana
Eros cindiu-se em dois: de um lado o amor romântico, de outro o amor
carnal ou, mais sucintamente, o sexo. Na Idade Média cristã essa cisão
aprofundou-se, virou dilaceramento. A carne precisava ser negada em prol
do “espírito”. Love, de Gaspar Noé, busca de algum modo
reaproximar as metades separadas. Não é o primeiro nem será o último
nessa tentativa, que parece fadada ao fracasso, mas nem por isso deixa
de produzir frutos interessantes e, eventualmente, belos."
Love, ponto de atrito entre amor e sexo
POR José Geraldo Couto José Geraldo Couto: no cinema | 18.09.2015
Em algum momento da história humana
Eros cindiu-se em dois: de um lado o amor romântico, de outro o amor
carnal ou, mais sucintamente, o sexo. Na Idade Média cristã essa cisão
aprofundou-se, virou dilaceramento. A carne precisava ser negada em prol
do “espírito”. Love, de Gaspar Noé, busca de algum modo
reaproximar as metades separadas. Não é o primeiro nem será o último
nessa tentativa, que parece fadada ao fracasso, mas nem por isso deixa
de produzir frutos interessantes e, eventualmente, belos.
Desde a primeira imagem – um homem e uma mulher nus na cama, masturbando-se mutuamente, vistos do alto – é de corpos que se trata aqui. Da presença e da ausência deles. Mais importante que o recurso ao 3-D, a meu ver, é a maneira como Noé articula essa dialética.
O presente narrativo do filme resume-se a um dia na vida do protagonista, o norte-americano aspirante a cineasta Murphy (Karl Glusman), que vive em Paris com sua jovem mulher, Omi (Klara Kistin), e o filho de colo dos dois. Ele recebe no celular, de madrugada, um recado da mãe de uma ex-namorada sua, Electra (Aomi Muyock), preocupada com o desaparecimento desta. A ligação desencadeia em Murphy lembranças de sua história de amor com Electra e passamos então a acompanhar flashbacks dessa história entremeados com as tentativas do protagonista de localizar a ex-namorada enquanto toca sua vidinha de casado.
Intercâmbio de corpos
Uma estrutura simples e bastante manjada, portanto. O que me parece original e estimulante é a maneira como o filme concatena passado e presente, real e imaginário, ausência e presença.
Um procedimento recorrente da montagem é cortar de uma imagem para o mesmo enquadramento, só que em outro momento e com (ou sem) outra personagem além do protagonista, de tal maneira que uma pessoa – em geral a ex-namorada, mas não sempre – “aparece” ou “some” da cena abruptamente, como que convocada pelo desejo ou pela memória de Murphy. Em grande medida, o filme se passa na cabeça dele.
É com esse dispositivo que a narrativa se constitui: Murphy, não por acaso um cineasta, “projeta” no espaço real (em 3-D ainda por cima) o produto de sua memória afetiva. No intercâmbio de personagens, ou melhor de corpos, que contracenam com Murphy há toda uma discussão silenciosa sobre a duração do amor, sua transmutação em outros sentimentos, sua migração de um ser a outro. Um exemplo: numa cena crucial, ao mesmo tempo dramática e autoirônica, o protagonista abraça o filho na banheira, ambos aos prantos, e sentimos que o que se dá ali é uma transferência de afeto, com o menino servindo como receptáculo do amor destinado a outra pessoa.
Reação crítica
Falou-se muito sobre a suposta superficialidade dos diálogos, como se a densidade de uma obra cinematográfica devesse ser buscada na “profundidade” das falas. (Um filme que se passasse numa sala de pós-graduação em filosofia na Sorbonne seria, assim, o suprassumo do “profundo”.) Com isso esqueceu-se de atentar para as imagens e sua organização.
Aliás, tão interessantes quanto o filme propriamente dito talvez sejam as reações a ele. Boa parte dos críticos e dos espectadores vem se dividindo entre duas respostas, ambas negativas. Uns, dizendo que Love não consegue escandalizar; outros, queixando-se de que ele não causa excitação, “não dá tesão”, para usar a expressão mais corrente e chula.
Depreende-se dessas reações que existe uma ideia arraigada, ainda que não explicitada, de que filmar o sexo é algo que tem necessariamente intenção de escândalo e/ou que deve excitar a libido. Pelo menos desde O último tango em Paris, passando por O império dos sentidos, é possível observar, quase com as mesmas palavras, reações semelhantes.Repressão e voyeurismo, duas faces da mesma moeda.
Tudo somado, Love levanta ou atualiza algumas questões: é possível falar de amor nos dias de hoje sem cair na pieguice ou na autoajuda? É possível filmar o sexo sem resvalar na crueza vulgar ou, no extremo oposto, na estetização publicitária dos “cinquenta tons de cinza”? Gaspar Noé resolveu pegar esses dois touros à unha, ao mesmo tempo. Mas seu filme acaba por suscitar uma outra pergunta: é possível ver nos dias de hoje um filme de amor e sexo sem tentar enquadrá-lo nos parâmetros estreitos e desfocados de meio século atrás?
Desde a primeira imagem – um homem e uma mulher nus na cama, masturbando-se mutuamente, vistos do alto – é de corpos que se trata aqui. Da presença e da ausência deles. Mais importante que o recurso ao 3-D, a meu ver, é a maneira como Noé articula essa dialética.
O presente narrativo do filme resume-se a um dia na vida do protagonista, o norte-americano aspirante a cineasta Murphy (Karl Glusman), que vive em Paris com sua jovem mulher, Omi (Klara Kistin), e o filho de colo dos dois. Ele recebe no celular, de madrugada, um recado da mãe de uma ex-namorada sua, Electra (Aomi Muyock), preocupada com o desaparecimento desta. A ligação desencadeia em Murphy lembranças de sua história de amor com Electra e passamos então a acompanhar flashbacks dessa história entremeados com as tentativas do protagonista de localizar a ex-namorada enquanto toca sua vidinha de casado.
Intercâmbio de corpos
Uma estrutura simples e bastante manjada, portanto. O que me parece original e estimulante é a maneira como o filme concatena passado e presente, real e imaginário, ausência e presença.
Um procedimento recorrente da montagem é cortar de uma imagem para o mesmo enquadramento, só que em outro momento e com (ou sem) outra personagem além do protagonista, de tal maneira que uma pessoa – em geral a ex-namorada, mas não sempre – “aparece” ou “some” da cena abruptamente, como que convocada pelo desejo ou pela memória de Murphy. Em grande medida, o filme se passa na cabeça dele.
É com esse dispositivo que a narrativa se constitui: Murphy, não por acaso um cineasta, “projeta” no espaço real (em 3-D ainda por cima) o produto de sua memória afetiva. No intercâmbio de personagens, ou melhor de corpos, que contracenam com Murphy há toda uma discussão silenciosa sobre a duração do amor, sua transmutação em outros sentimentos, sua migração de um ser a outro. Um exemplo: numa cena crucial, ao mesmo tempo dramática e autoirônica, o protagonista abraça o filho na banheira, ambos aos prantos, e sentimos que o que se dá ali é uma transferência de afeto, com o menino servindo como receptáculo do amor destinado a outra pessoa.
Cena de Love (2015), de Gaspar Noé
A fronteira entre erotismo e pornografia, às vezes tão tênue e embaçada, é explorada argutamente, a meu ver, na sequência em que Murphy e Electra vão a um clube de orgias. Eles flertam com a pornografia, isto é, o lugar em que os corpos não têm nome, nem rosto, nem “dono”, mas não conseguem imergir totalmente nela. Murphy, em especial, vê suas limitações, contradições e fragilidades aflorarem com ainda mais força.Reação crítica
Falou-se muito sobre a suposta superficialidade dos diálogos, como se a densidade de uma obra cinematográfica devesse ser buscada na “profundidade” das falas. (Um filme que se passasse numa sala de pós-graduação em filosofia na Sorbonne seria, assim, o suprassumo do “profundo”.) Com isso esqueceu-se de atentar para as imagens e sua organização.
Aliás, tão interessantes quanto o filme propriamente dito talvez sejam as reações a ele. Boa parte dos críticos e dos espectadores vem se dividindo entre duas respostas, ambas negativas. Uns, dizendo que Love não consegue escandalizar; outros, queixando-se de que ele não causa excitação, “não dá tesão”, para usar a expressão mais corrente e chula.
Depreende-se dessas reações que existe uma ideia arraigada, ainda que não explicitada, de que filmar o sexo é algo que tem necessariamente intenção de escândalo e/ou que deve excitar a libido. Pelo menos desde O último tango em Paris, passando por O império dos sentidos, é possível observar, quase com as mesmas palavras, reações semelhantes.Repressão e voyeurismo, duas faces da mesma moeda.
Tudo somado, Love levanta ou atualiza algumas questões: é possível falar de amor nos dias de hoje sem cair na pieguice ou na autoajuda? É possível filmar o sexo sem resvalar na crueza vulgar ou, no extremo oposto, na estetização publicitária dos “cinquenta tons de cinza”? Gaspar Noé resolveu pegar esses dois touros à unha, ao mesmo tempo. Mas seu filme acaba por suscitar uma outra pergunta: é possível ver nos dias de hoje um filme de amor e sexo sem tentar enquadrá-lo nos parâmetros estreitos e desfocados de meio século atrás?
José Geraldo Couto
José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.
Fonte: BLOG DO IMS
Donizete Galvão, por Eduardo Sterzi (ESCAMANDRO)
PICICA: "Donizete Galvão foi um mestre da poesia: um mestre do que podemos chamar, pensando em Bandeira mas também em Deleuze, de poesia menor
– daquela poesia que se recusa ao espetáculo, que sobretudo não cabe na
lógica da espetacularização e da mercadoria (confira-se, a propósito, o
depoimento «O poeta em pânico», publicado como posfácio a Do silêncio da pedra);
poesia que insiste em olhar para as coisas miúdas e para os seres à
margem, que sabe que o poeta é fiel sobretudo ao que se perdeu (como
formularam Adorno a propósito de Hölderlin e De Robertis a propósito de
Dante). E fiel, mais ainda, ao que desde o início já estava perdido, ao
que nunca se teve realmente, àqueles objetos e situações que só se dão a
ver, outrora e para sempre, como perda: devoradora, devastadora – no
limite, aniquiladora. Não deve surpreender, portanto, que
pressentimentos de morte tenham atravessado essa poesia do primeiro ao
último livro; e interpretar tais pressentimentos apenas por um ângulo
biográfico seria, a meu ver, perder de vista o essencial, que é o
compromisso vital – isto é, fatal – com a experiência poética que eles, a
seu modo, condensam. Ser poeta é dançar com a morte, é experimentar
continuamente a vizinhança do nada, é se confrontar constantemente com o
fato de que a existência mais verdadeira, quando se vive para a poesia,
talvez seja a da obra, condição radicalmente póstuma daquilo que só
começa a viver em toda sua potência depois da morte do seu criador, que
extrai da morte mesma do seu criador a força com que se comunica com o
mundo (neste sentido, toda obra talvez seja, desde sempre, póstuma e
todo autor esteja, desde o princípio, morto)."
Donizete Galvão por Eduardo Sterzi
Perda e salvação
O poeta Donizete Galvão – meu amigo Doni – morreu no dia 30 de janeiro de 2014. Tinha 58 anos, era mineiro de Borda da Mata e vivia em São Paulo desde 1979. Sua obra consiste fundamentalmente em oito livros de poemas: Azul Navalha (Excelsior, 1988), As faces do rio (Água Viva, 1991), Do silêncio da pedra (Arte Pau-Brasil, 1996), A carne e o tempo (Nankin, 1997), Ruminações (Nankin, 1999), Pelo corpo (com Ronald Polito, Alpharrabio, 2002), Mundo mudo (Nankin, 2003) e O homem inacabado (Portal, 2010). Também publicou dois livros para crianças: O sapo apaixonado (Musa, 2007), sua única narrativa em prosa, e Mania de bicho (Positivo, 2009), poemas.
Preparei, há alguns meses, uma breve antologia (dois poemas de cada livro) para um jornal que, no entretempo, deixou de existir, assim como escrevi uma rápida nota crítica. Publico-as aqui neste ano em que o poeta faria 60 anos (mais exatamente, no dia 24 de agosto).
*
Donizete Galvão foi um mestre da poesia: um mestre do que podemos chamar, pensando em Bandeira mas também em Deleuze, de poesia menor
– daquela poesia que se recusa ao espetáculo, que sobretudo não cabe na
lógica da espetacularização e da mercadoria (confira-se, a propósito, o
depoimento «O poeta em pânico», publicado como posfácio a Do silêncio da pedra);
poesia que insiste em olhar para as coisas miúdas e para os seres à
margem, que sabe que o poeta é fiel sobretudo ao que se perdeu (como
formularam Adorno a propósito de Hölderlin e De Robertis a propósito de
Dante). E fiel, mais ainda, ao que desde o início já estava perdido, ao
que nunca se teve realmente, àqueles objetos e situações que só se dão a
ver, outrora e para sempre, como perda: devoradora, devastadora – no
limite, aniquiladora. Não deve surpreender, portanto, que
pressentimentos de morte tenham atravessado essa poesia do primeiro ao
último livro; e interpretar tais pressentimentos apenas por um ângulo
biográfico seria, a meu ver, perder de vista o essencial, que é o
compromisso vital – isto é, fatal – com a experiência poética que eles, a
seu modo, condensam. Ser poeta é dançar com a morte, é experimentar
continuamente a vizinhança do nada, é se confrontar constantemente com o
fato de que a existência mais verdadeira, quando se vive para a poesia,
talvez seja a da obra, condição radicalmente póstuma daquilo que só
começa a viver em toda sua potência depois da morte do seu criador, que
extrai da morte mesma do seu criador a força com que se comunica com o
mundo (neste sentido, toda obra talvez seja, desde sempre, póstuma e
todo autor esteja, desde o princípio, morto). Fazer-se poeta, Donizete
Galvão bem o sabia, é cindir-se em pelo menos duas figuras, aquelas que,
no seu último livro, ele denominou «homem inacabado» – aquele que
jamais consegue se desligar de uma originária «vida minúscula», aquele
que é por esta moldado até o fim de seus dias – e «anjo distraído» –
aquele a quem caberia proteger quem foi esmagado pela história, a
começar pelo próprio «homem inacabado». Fazer-se poeta é, portanto,
suspeitar-se desde sempre morto, à espera da hora de renascer, que é
sempre incerta: hipótese, aposta, poema. A poesia, para Donizete Galvão,
foi antes de tudo um incessante drama de perda e salvação. Daí a
melancolia duradoura e os fulgurantes êxtases, daí o sentimento trágico
que não elimina o humor, daí o tenso enlace – aos seus olhos, em suas
palavras – de decrepitude e beleza, pobreza e religiosidade, trabalho e
poesia, cidade e natureza, solidão e comunidade.Eduardo Sterzi
* * *
Das frutas
Das frutas não soube o sumo
nem tampouco
toquei suas carnes.
As melhores delas
ofereci aos senhores
que cruzei na vida.
Outras, mais belas,
apodreceram na fruteira
enquanto mastigava
sonhos de moço
na janela.
[de Azul navalha]
Quase
No início
tudo se resolveria.
Até que apareceu um problema
e no meio do problema havia um x.
Por um triz
não fui feliz.
[de Azul navalha]
§
O poço1
O poço não é um buraco com água a céu aberto,
mas cristal líquido, cravado no tijuco cinza.
Cada dia o poço é um e está mudado em outro:
à custa de tanto uso, cada manhã mais novo.
Sempre outra é a dança dos círculos até a borda,
que pouca pedra basta para infinitos movimentos.
A primeira água do poço não serve para o pote,
pois sempre há cisco, insetos ou pele de ferrugem.
Entretanto, o fundo do poço tem belezas de parto:
a mina lança brotos de água e insufla areia fina.
Se à noite chove, o poço turva-se como quem morre.
Não amanhece espelho e sim buraco com água suja.
2
Beber água do poço, direto, sem caneca, exige tento,
pois a concha da mão não basta para quem tem sede.
Um modo elegante de para o poço fazer reverência
é tirar o chapéu e mergulhá-lo, agora mudado em copo.
O suor pode botar gosto de sal na água doce do chapéu,
mas o que refresca a garganta, também a cabeça esfria.
Outro modo, é quando há por perto folhas de inhame.
A água desliza no verde com sua película de prata.
E as gotas, na corda bamba, quais aquáticas bailarinas,
bailam tão puras, que a gente sente pena de bebê-las.
Mais um modo, é como o papa deitar-se de corpo inteiro:
a boca beija a água e, do fundo, outro olho nos enxerga.
Enquanto se engole a água, as costelas roçam o chão.
Não se sabe se o pulsar é dela, terra, ou dele, coração.
[de As faces do rio]
§
A dureza do instanteUm tapete de goiabas
estende-se sobre a grama.
Os jacintos em bloco
ergueram suas flores.
Poderia ser este o lugar.
Este o tempo do repouso.
Mas a roda dentada nunca para.
Mói o caramujo envolto em formigas.
Mói o cão içado do poço por um balde.
Mói os fios de cabelo de Anita
que protegem os pés de rosa.
Mói as rosas.
(Em direção ao rio,
lá vai a mulher com a pedra no bolso.
Lá está ele na cama
com os tubos no nariz.)
Há perfumes de jacintos
e goiabas vermelhas de outono.
Cada instante tem sua polpa
e no centro o áspero caroço.
[de As faces do rio]
§
Rumor das águas
“Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer.”
(Mário de Andrade)
Se o Rumor é também um deus,(Mário de Andrade)
nas águas dessas grotas é que ele mora.
Nasce, reverbera e estertora.
Rompe estreitos de rocha. Lambe seixos.
Espumas saltam-lhe dos cantos da boca.
Da fricção das águas, surge uma ópera.
Glossolalia divina. Protomúsica.
Que soava desde o princípio
antes da entrada do homem na paisagem.
[de Do silêncio da pedra]
§
FósseisSalmões exaustos na busca da fonte,
suaves melusinas gemem nas escarpas,
peixes albinos bailam nas cavernas,
cavalos-marinhos imersos em sal e anil
ouçam o que o tambor das nuvens anuncia:
uma maré de lavas engolirá as águas
e todos vocês serão souvenirs para turistas.
[de Do silêncio da pedra]
§
Evocação a PríapoEvoé, deus Príapo.
Assuste as ninfas nas matas
e faça com que procurem abrigo
sob nossas coxas.
Dê a nós, homens-traça,
comedores de páginas de livros,
corpo de perfeita arquitetura,
com todas as belezas possíveis.
Parca a matéria-prima,
iluda os olhos com miragens,
para que sejamos irresistíveis.
Dê-nos gozos demorados
para que sejam esquecidas
rugas, manchas de pele,
bulas, farmácias e asilos
que nos oferta a velhice.
Livre-nos do mijo nas calças,
das quimioterapias e escleroses.
Quando chegar o enfado,
dê-nos o prêmio da morte limpa e súbita.
Insufle o sangue em nossas veias,
de forma tal que o músculo, sempre teso,
esteja a contento de nossas mulheres,
para que, exaustas e satisfeitas,
elas ignorem os moços que passam.
Agora, que a juventude arisca se afasta,
mantenha-nos assim: sedentos e tarados.
[de A carne e o tempo]
§
Carta a Miss E. B.De manhã, os pavões nos despertam com seus gritos
que parecem lamentos ou distorcidos miados de gato.
O sol, por entre as folhagens do terraço, invade o quarto.
Há uma mistura de cheiros tomando conta do chalé:
protetor solar, creme hidratante, perfume,
suor dos corpos, água salgada e gel de aloé.
O enorme búzio comprado do garoto da ilha
fede no banheiro e solta gosmas amarelas,
minúsculas moscas saem de dentro de seu labirinto.
Há roupas de banho penduradas por todo lado
e livros maltratados pelas idas e vindas na sacola de praia.
À mesa do café, todos ficam muito exigentes:
– Não há mais suco de pitanga na jarra de vidro –,
reclamamos como se isso fosse um costume antigo.
Adoramos caju. Nenhum de nós tem alergia.
Não concordamos de maneira alguma com você
quanto a dizer que o fruto tem aparência sinistra.
Não lhe faz lembrar Gauguin a gradação de cor
que vai do amarelo até os tons do vermelho?
E depois, chamar a castanha de obscena?
Concordamos com que é um comentário tipicamente Wasp.
Bem perto do rio, há uma plantação de coqueiros-anões.
A trama das palmas forma um teto todo verde.
Temos deitado na rede (continuamos indolentes)
e lido numa vertigem suas cartas.
Leio algumas em voz alta para A. T.
Ler as cartas de alguém é como uma violação,
pois penetramos no lado oculto das pessoas,
conhecemos suas manias, doenças, vaidades.
Logo, nos tornamos íntimos dela e de seus amigos.
É como se, em poucos dias, tecêssemos um laço forte
e, depois de setecentas páginas,
este se rompesse e deixasse um vazio.
A melhor hora para ler é à tardinha.
A maré sobe e enche o rio de água esverdeada.
Por entre os troncos dos coqueiros, vem a brisa,
que vira as páginas do seu livro.
Mais tarde, quando a maré baixa, expondo o mangue,
um séquito de galinhas-d’angola chega ligeiro
e (você vai detestar saber disso)
devora os pequenos caranguejos que apontam na lama.
Acho que você não gosta muito de praia
e prefere as costas bravas do Maine.
Mas a areia é tanta, que encontramos seus grãos
até mesmo na hora de escovar os dentes.
Esta é uma reserva de peixe-boi marinho,
mas apenas vemos a escultura de pedra no lago.
Os sapos são muito grandes e com aquela orquestração
que você conhece tão bem: ferreiam, martelam e cellam.
Os pavões nos acompanham até no buffet.
Depois das seis horas da tarde, encarapitam-se
nas colunas de pedra da varanda.
Quando venta forte, a cauda segue o mesmo ritmo.
Incomodados, eles, com toda majestade, mudam de posição.
Em contrapartida, há um gato muito reles e magro,
daqueles rajadinhos-sem-vergonha de branco e amarelo.
Vive sempre perto do restaurante e não é bem-vindo.
Nós lhe damos uma grossa fatia de presunto,
mas foge assustado escada acima, com olhos esbugalhados,
quando os empregados se aproximam.
Cruzamos sempre com suíços gordos e sanguíneos,
velhas absurdas, com brancos vestidos rodados
e as mais impossíveis sandálias douradas.
Uma, de cabelos vermelhos, presos com pentes,
usa longos vestidos pretos mesmo durante o dia.
Nada bem cedo e sem molhar os cabelos.
Tem nariz adunco, queixo proeminente e é muito magra.
Parece uma bruxa saída de um livro de Andersen.
Ficamos o tempo todo inventando-lhe profissões:
atriz dramática, cantora, escritora de romances góticos.
Sei que temporada de férias é apenas um escape.
Esquecemo-nos da asma, dos antidepressivos
e até das consultas do Dr. P. ou da Dra. J. K.,
que querem curar-nos dos males, inclusive o da poesia.
Cometemos quase todos os pecados capitais,
menos a ira e a avareza. A moeda: uma conta colorida.
Invejamos corpos. Desejamos outros. Rimos de alguns.
E os casais com seu bebê cor-de-rosa
ficam unanimemente insuportáveis com sua filmadora.
Numa mesa, a jovem evangélica comenta:
– O casamento é mesmo um sonho.
Mas o melhor de tudo é que a paisagem
(mar, vegetação, rios, cachos de buganvílias
e de espirradeiras, mimos, damas-da-noite)
ainda não foi devorada por nossa mágoa e dor.
Nosso olho só vê a beleza. Sem saudades.
A sensação do provisório, a suspensão do tempo,
tudo isso deixa as coisas intocadas.
Sobram-nos horas para escrevermos
às nossas novas velhas amigas.
[de A carne e o tempo]
§
MioloLembro-te mata,
tenda de folhas
ninhal de minas,
casulo de sombras,
alcova de brotos,
renda de luzes,
vertigem de avencas,
friagem de sapos,
labirinto de cipós,
manto de limos,
frescor de cambraias,
grafias de cascas,
acridez de sumos,
açúcar de flores.
Recorro a todos os nomes
sem nunca recuperar
o frêmito de espanto,
o susto da criança
inaugurando a mata.
[de Ruminações]
§
Reboco
para Niura Bellavinha
Sexta-feira:dia de rebocar o chão.
É preciso ir ao curral
e trazer na bacia
o estrume das vacas.
Melhor aquela pasta
que solta fumaça,
ainda cheirando a capim.
Na beira do barranco,
perto do córrego,
cava-se a tabatinga.
Do branco do barro
com o verde da bosta,
que se mistura com os dedos,
surge uma argamassa
com que se barreiam
o piso da cozinha,
a taipa e os lados da trempe.
Para quem não tem muito,
tudo tem serventia:
a argila, a bosta da vaca,
o perfume da grama,
o giro ágil das mãos.
Faz-se sem saber como,
sabendo-se desde sempre
essa alquimia.
[de Ruminações]
§
OcoO incômodo
dos braços
diante
do espaço
exíguo
A sofreguidão
das unhas
roídas
até o toco
dos dedos.
O frio
do estômago
à espera
de um corte
de faca.
A dor
que ronda
um corpo
partido,
à deriva.
[de Pelo corpo]
§
Os olhos de Charlotte Ramplingas esmeraldas liquefeitas gaze dos musgos rasgos de luz na caverna marinha tela que se esgarça marés de vidro murano esgazear de folhas fruta de vez júbilo de janelas horizonte de vidro desejo em placenta jamais maturado onde um vento? um gesto? uma mão espalmada? O pavão abre seu leque o frescor do dia se vai os olhos continuam fluidos interrogativos os olhos teus nunca fitaram os olhos meus dói-me a visão do que quis e nunca pude tê-lo nuvem contrapelo dói-me mais a beleza em fuga da mulher o lampejo a textura do efêmero quebra de uma onda os tons do mar o que amei e se evanesceu tudo se foi sem gesto de adeus
[de Pelo corpo]
§
Miss E. B. come o fruto proibido
para Paulo Henriques Britto
Zanzando pelas ruas do Rio,a gringa dá com o cesto de caju.
A fruta demasiadamente escandalosa
exibe tons intensos de amarelo
que, na ponta, passam a vermelho.
Cravada no seu corpo, nua,
há uma indecente castanha.
O caju lhe parece uma mulher
que deixa à mostra aquilo
que deveria estar entre as dobras.
Miss E. B. cai em tentação.
Morde a polpa fibrosa da fruta.
O sabor travoso impregna-lhe as papilas.
O líquido leitoso escorre-lhe
pelos cantos da boca.
Sofre um curto-circuito alérgico.
A cabeça fica do tamanho de uma abóbora.
Em New York, sua médica,
quem sabe, lhe diagnosticasse:
– O caju faz mal aos calvinistas.
Nos corredores da casa,
tão extremosos, os criados
– cuja indolência ela criticará mais tarde –
entre risos, cantam o baião:
“Eu tô doente, morena.
Doente eu tô, morena.
Cabeça inchada, morena.”
[de Mundo mudo]
§
ExílioNa beira da porta de aço,
ela tricota: faz bicos vermelhos
em alvos panos de algodão.
Não sou daqui, não.
Sou de Aracaju, Sergipe.
Vim em busca da minha irmã.
Mudou para o Mato Grosso.
Meu cunhado mora em Marília.
Não sou daqui, não.
Sou de Aracaju, Sergipe.
Tenho dinheiro pra passagem, não.
Não sou daqui, não.
Sou de Aracaju, Sergipe.
[de Mundo mudo]
§
Anedota japonesaPeixes mecânicos nadam,
raros, no aquário em Osaka.
Seu terno de vidro quebrou
no armário de espanto.
Um corvo com bico de aço
volta a furar seu cérebro.
As vísceras de Mishima
pulam debaixo da cama.
Nenhum cão na imensa Tóquio
ganirá por sua solidão.
[de O homem inacabado]
§
Tribo da noiteAqueles da tribo da noite
têm cem mil grilos nos ouvidos.
Têm cem mil grilos nos ouvidos
a torturá-los com zumbidos.
Aqueles da tribo da noite
percebem a inércia das horas.
Percebem a inércia das horas
nos ponteiros com suas demoras.
Aqueles da tribo da noite
habitam na areia dos olhos secos.
Habitam na areia dos olhos secos
e recontam seus frutos pecos.
Aqueles da tribo da noite
caçam fantasmas na memória.
Caçam fantasmas na memória
e comem fiapos de história.
Aqueles da tribo da noite
protegem-se em seus caracóis.
Protegem-se em seus caracóis
quando o sol bate nos lençóis.
[de O homem inacabado]
Fonte: ESCAMANDRO
Que cidade queremos? | Cidades Rebeldes |
PICICA: "Transmitido ao vivo em 12 de jun de 2015
Que cidade queremos? Apontamentos para o futuro da cidade
Com Maria Rita Kehl, Ermínia Maricato, Jean Wyllys, Paulo Lins e Nabil Bonduki. Leonardo Sakamoto (mediação).
O presente e o futuro das cidades como palco de disputas políticas, ideológicas e sociais norteiam o Seminário Internacional Cidades Rebeldes, que reunirá entre os dias 9 e 12 de junho mais de 40 conferencistas do país e do exterior para um ciclo de debates e curso no Sesc Pinheiros.
Realizado pelo Sesc São Paulo e pela Boitempo Editorial, o Seminário busca ir além da discussão acadêmica, envolvendo também palestrantes ligados à vida pública, ao poder institucional, a movimentos sociais e políticos e às artes, trazendo em comum um histórico de pensamento em relação às cidades, à questão urbana e ao seu papel nas transformações sociais.
Para isto, compõe-se de duas etapas simultâneas. A primeira conta com alguns dos principais nomes do urbanismo e da economia crítica brasileira, como Marcio Pochmann e Ermínia Maricato, reunidos em torno de um curso de introdução à obra do geógrafo britânico David Harvey, professor emérito da Universidade da Cidade de Nova Iorque (EUA). Já a segunda, formada por uma série de conferências, promove o encontro entre pensadores do país e do exterior para debates acerca dos temas propostos no Seminário – além de Harvey, estarão presentes Domenico Losurdo, professor de História da Filosofia na Universidade de Urbino (Itália); Moishe Postone, professor de História na Universidade de Chicago (EUA); o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad; o filósofo Vladimir Safatle; o jornalista e cientista político André Singer; os arquitetos e urbanistas Raquel Rolnik e Guilherme Wisnik; os psicanalistas Christian Dunker e Maria Rita Kehl; o deputado federal Jean Wyllys (PSOL), entre outros convidados.
Mais em http://sescsp.org.br/cidadesrebeldes"
Com Maria Rita Kehl, Ermínia Maricato, Jean Wyllys, Paulo Lins e Nabil Bonduki. Leonardo Sakamoto (mediação).
O presente e o futuro das cidades como palco de disputas políticas, ideológicas e sociais norteiam o Seminário Internacional Cidades Rebeldes, que reunirá entre os dias 9 e 12 de junho mais de 40 conferencistas do país e do exterior para um ciclo de debates e curso no Sesc Pinheiros.
Realizado pelo Sesc São Paulo e pela Boitempo Editorial, o Seminário busca ir além da discussão acadêmica, envolvendo também palestrantes ligados à vida pública, ao poder institucional, a movimentos sociais e políticos e às artes, trazendo em comum um histórico de pensamento em relação às cidades, à questão urbana e ao seu papel nas transformações sociais.
Para isto, compõe-se de duas etapas simultâneas. A primeira conta com alguns dos principais nomes do urbanismo e da economia crítica brasileira, como Marcio Pochmann e Ermínia Maricato, reunidos em torno de um curso de introdução à obra do geógrafo britânico David Harvey, professor emérito da Universidade da Cidade de Nova Iorque (EUA). Já a segunda, formada por uma série de conferências, promove o encontro entre pensadores do país e do exterior para debates acerca dos temas propostos no Seminário – além de Harvey, estarão presentes Domenico Losurdo, professor de História da Filosofia na Universidade de Urbino (Itália); Moishe Postone, professor de História na Universidade de Chicago (EUA); o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad; o filósofo Vladimir Safatle; o jornalista e cientista político André Singer; os arquitetos e urbanistas Raquel Rolnik e Guilherme Wisnik; os psicanalistas Christian Dunker e Maria Rita Kehl; o deputado federal Jean Wyllys (PSOL), entre outros convidados.
Mais em http://sescsp.org.br/cidadesrebeldes"
Uma antropologia processual para pensar novos sujeitos e o comum. Entrevista especial com Sandro Chignola (IHU)
PICICA: "“Um dos problemas que
temos de pensar é o marco que qualifica nossa atualidade como sendo
neoliberal. E, nesse sentido, o problema da filosofia política é pensar a
liberdade à altura da razão governamental neoliberal. Para fazê-lo
necessitamos fazer a história das transformações que são postas pela
razão neoliberal como o horizonte atual da política global”, diz o
filósofo"
Uma antropologia processual para pensar novos sujeitos e o comum. Entrevista especial com Sandro Chignola
“Um dos problemas que
temos de pensar é o marco que qualifica nossa atualidade como sendo
neoliberal. E, nesse sentido, o problema da filosofia política é pensar a
liberdade à altura da razão governamental neoliberal. Para fazê-lo
necessitamos fazer a história das transformações que são postas pela
razão neoliberal como o horizonte atual da política global”, diz o
filósofo.
Imagem: veredasdoinconsciente.blogspot.com.br |
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line pessoalmente, durante sua participação no XVII Simpósio Internacional IHU Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade,
que ocorreu entre os dias 21 e 24-09-2015 na Unisinos, o filósofo
italiano explica que “para pensar o comum” é preciso “pensar que há algo
como um indivíduo subjetivado”, que não é mais um indivíduo burguês
moderno, mas algo diferente, que “tem de ser pensado de outra maneira”.
Uma nova compreensão de “sujeito” e de “comum”, esclarece, deve ser pensada à luz do capitalismo
contemporâneo e, nesse sentido, “temos de pensar mecanismos de êxodo,
não de enfrentamento com o Estado, ou seja, temos de pensar novas formas de vida
que não sejam simplesmente estatais ou institucionais, e pensar a
antropologia de maneira processual para pensarmos algo completamente
novo”.
Uma questão atual para pensar tanto o
“sujeito” quanto o “comum”, explica, é o fenômeno das migrações. “Meu
problema com a questão dos imigrantes não é pensar
somente acerca dos direitos deles, mas a maneira pela qual os imigrantes
me obrigam a repensar minha própria posição de cidadão branco e
democrático”. Para pensar um novo “sujeito”, frisa, é preciso romper com
a compreensão de que podemos partir de uma compreensão antropológica
universal.
“Não creio que há algo — e nisso sou
foucaultiano —, que existe um sujeito natural que pode se pôr na base da
instituição. Creio que há um efeito circular: a maneira pela qual a
instituição conhece sua ideia de sujeito é um sujeito que se adapta à
instituição. Por isso concordo que o problema da antropologia é um
problema sério. Agora temos de pensar outros sujeitos, para pensar
outras instituições”.
Neste processo, pontua, a filosofia política
tem de assumir a “responsabilidade” sobre o fenômeno dos imigrantes.
“Antes de pensar como enfrentamos a situação dos imigrantes, temos de
considerar como pensamos o espaço europeu, e como pensamos nossas
fronteiras, porque é muito simples pensar que as fronteiras são
permeáveis pelas finanças, mas são muros contra as pessoas”.
Sandro Chignola
é professor de Filosofia Política no Departamento de Filosofia,
Sociologia, Pedagogia e Psicologia Aplicada na Universidade de Pádua,
Itália. É autor, entre outros, de História de los conceptos y filosofia
política (Madrid: Biblioteca Nueva, 2010).
O Cadernos IHU ideias publicou recentemente o artigo Sobre o dispositivo. Foucault, Agamben, Deleuze, de autoria de Chignola.
Ele proferiu a conferência A política dos saberes, no XVII
Simpósio Internacional IHU / V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica
| III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação, Saberes e
Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade que será publicada nos Cadernos IHU ideias, proximamente.
Confira a entrevista.
Sandro Chignola no IHU Foto: Cristina Guerini/IHU |
Sandro Chignola – Creio que há uma grande divisão na filosofia contemporânea, principalmente entre a filosofia política de marco analítico e a de marco continental, que é a que pratico. A filosofia analítica
trabalha a clarificação dos conceitos, das palavras, e constrói teorias
normativas, porque a ideia dessa perspectiva é, por exemplo, formular
um conceito de justiça que tenha um valor que permita a compreensão
entre os povos, como se fazer filosofia política
poderia ser entendido como fazer uma “legislação universal” para o
mundo. Essa posição me parece bastante débil, porque pressupõe uma ideia
transcendental da razão, que muitas vezes pressupõe uma visão ocidental
de mundo, uma língua franca, que seria a inglesa, e tem uma visão
bastante problemática da existência, porque essa ideia de uma razão
transcendental pela qual todos possam se entender, tende a desaparecer
nos conflitos, nas lutas políticas.
A outra grande corrente é a continental, que faz uma filosofia política que tem um marco mais histórico. Deve se entender que não se trata somente de pensar a história da filosofia, mas as diferentes tradições, culturas, porque cada cultura tem sua história e, se temos de tratar de uma relação entre diferentes culturas, temos de ter presente que as culturas são diferentes. Aí tem uma questão de tradução que não é somente linguística, mas de identidade.
A outra grande corrente é a continental, que faz uma filosofia política que tem um marco mais histórico. Deve se entender que não se trata somente de pensar a história da filosofia, mas as diferentes tradições, culturas, porque cada cultura tem sua história e, se temos de tratar de uma relação entre diferentes culturas, temos de ter presente que as culturas são diferentes. Aí tem uma questão de tradução que não é somente linguística, mas de identidade.
Eu me interesso por essa perspectiva
histórica, porque para chegar à segunda questão que você me faz, tenho
de pensar quais são os problemas filosóficos atuais e para isso tenho de
fazer uma história da problematização. Michel Foucault
[1], que estudei, dizia que temos de nos colocar numa perspectiva
genealógica, ou seja, a atualidade é algo que se move, e cada vez que
temos de pensar nos problemas da atualidade, temos de entender a
atualidade como algo que está mudando, ou seja, é a atualidade que te
mostra os problemas nos quais têm de pensar.
Atualidade neoliberal
Gilles Deleuze
[2], que é um filósofo francês, dizia que pensamos somente onde uma
verdade nos obriga a pensar. Nesse sentido, penso que um dos problemas
que temos de pensar é o marco que qualifica nossa atualidade como sendo
neoliberal. E, nesse sentido, o problema da filosofia política é pensar a
liberdade à altura da razão governamental neoliberal. Para fazê-lo
necessitamos fazer a história das transformações que são postas pela
razão neoliberal como o horizonte atual da política global. Nesse
sentido, Foucault ajuda: o termo biopolítica, que ele usou, nos ajuda a explicar o que é a governabilidade neoliberal.
A razão neoliberal trabalha de maneira diversa nas diferentes regiões
do mundo e com instituições diferentes. Em uma perspectiva histórica,
temos de entender que tipo de problema a razão neoliberal solucionou
para se pôr de forma hegemônica, e que tipo de problema nós poderemos
pôr em frente a essa razão neoliberal. Creio que isso não pode ser feito
de modo racional como pensam os analíticos, mas tem de ser feito no
âmbito da história.
“O termo biopolítica, que Foucault usou, nos ajuda a explicar o que é a governabilidade neoliberal” |
IHU On-Line – Por que não se
pode ter uma compreensão antropológica universal, como ponto de partida,
por exemplo, apesar das diversidades que existem nas culturas, para
justamente garantir uma unidade apesar da diversidade?
Sandro Chignola –
Porque o problema é que isso implica numa obrigação de pensar as mesmas
leis. O que existe é um monolinguismo do outro, ou seja, como se para
entender-se, o outro tenha de te dar a sua própria língua. Parece que
esse é o limite fundamental da filosofia analítica. Os
filósofos desta posição pensam que para solucionar os problemas dos
conceitos políticos, imaginar uma teoria universalizante, necessita que o
outro pense como eu. É o que chamo de uma “sorte do monolinguismo do
outro”. Como se outro não tivesse uma história, sua própria tradição, e
pode falar contigo só se pensa no marco da filosofia analítica, inglesa,
americana. Penso que claramente há um problema de universalização,
mas universalização é um processo de tradução, que necessita que todos
que entrem num processo de reconhecimento recíproco, saibam a cultura
que têm, do tipo de problema político que enfrentam em sua realidade, e
que podem se entender somente traduzindo um a língua do outro, e não
pressupondo uma língua universal prévia.
IHU On-Line – Então, para fazer filosofia política não é necessário uma concepção antropológica universal?
Sandro Chignola – Essa é
uma questão que me interessa muito. Creio que o conceito de ser humano
teve uma significação muito diferente ao longo da história. Não se pode
partir do pressuposto de que todos entendem ser humano de um modo tal
que sempre foi assim ou que todos entendem ser humano de uma determinada
forma. Um exemplo é a visão de Aristóteles [3], na Política, quando diz que o homem é um animal racional e político, que necessita do outro e que sua finalidade é a felicidade. Hobbes [4], no princípio da modernidade política, no capítulo XIII do Leviatã,
desconstrói essa característica quando pensa o homem como um “lobo”,
que vive em guerra com outros homens. Há uma antropologia política
radicalmente diferente. Por isso te digo que nós somos modernos e o
problema é repensar como reconstruir uma antropologia política à altura
das diferenças e conflitos que existem.
IHU On-Line – Dado que uma das
preocupações da filosofia é a verdade, as definições de Aristóteles e
Hobbes acerca do homem ou podem ser complementares ou uma delas pode
compreender o homem de maneira equivocada. A partir dessas duas visões e
das mudanças históricas, quais são os novos pressupostos que devem
estar presentes em uma concepção antropológica neste momento histórico
da contemporaneidade?
Sandro Chignola –
Claro, a filosofia busca a verdade e esse é um problema filosófico muito
sério, porque se analisarmos somente as visões dos filósofos sobre as
coisas, a filosofia pode parecer somente uma série de opiniões, mas
sabemos que a filosofia não deve ser feita com opiniões, ou seja, a doxa
[5], aquelas ideias que os homens têm antes de fazer filosofia. Filosofia é uma prática que tem de chegar a uma verdade, e a verdade é uma conquista.
Vou dar um exemplo: todos os filósofos
do século XX partiam de um pressuposto antropológico que pensa o sujeito
como masculino e se pensava que o masculino era o sujeito universal.
Aí, chegamos à Revolução Francesa e uma mulher põe o problema de que a Declaração Universal dos Cidadãos
tem de ser modificada para Declaração Universal dos Cidadãos e Cidadãs,
e diz ainda que a terceira palavra do lema da Revolução Francesa,
“fraternidade”, tem de ser implementada com a “solidariedade”. Por isso
temos de pensar os pressupostos antropológicos da política nesta dimensão histórica, porque o pressuposto antropológico da política é uma conquista histórica.
Hoje, na filosofia política
contemporânea, ninguém pode pensar um pressuposto antropológico que não
inclua a diferença sexual entre homens e mulheres, mas na tradição
filosófica prévia não havia essa questão. Creio que isso diz respeito a
um problema de tradução, e um problema contemporâneo sério é o problema
da tradução, porque, por exemplo, a perspectiva feminina da política e a
perspectiva masculina são completamente diferentes. Para um filósofo
analítico, isso não é um problema, porque a mulher pode falar uma língua
dos direitos, embora essa língua seja masculina.
Problema dos sujeitos
De todo modo, não gosto de pensar nessa
perspectiva de uma concepção antropológica. Penso que um dos problemas
filosóficos políticos mais relevantes é o problema dos sujeitos, que
entendo como um processo, como uma subjetivação, porque como dizia
antes, creio que temos de pensar numa perspectiva histórica. Se penso
que há algo como o sujeito, penso numa perspectiva histórica, ou seja,
que o sujeito político é algo que se põe em movimento,
tomando a palavra nas situações, e em geral os sujeitos se movem à
margem do que se pensa ser a cidadania normal.
O problema é a parte dos que não têm parte. No mesmo momento da Revolução Francesa, quando as mulheres tomaram a palavra, havia outro sujeito político, que se colocou como sujeito político novo: os escravos haitianos.
O Haiti é colônia francesa, e esses escravos fizeram uma revolução
contra os revolucionários franceses, porque pensaram o seguinte: “Como
podem os revolucionários franceses falar em igualdade, liberdade e
fraternidade de todos os homens, e manter a escravidão em suas
colônias?”
A antropologia política é um problema muito interessante no século XVI, porque quando os colonizadores chegaram ao Brasil, houve um problema teológico, porque eles tomaram a antropologia bíblica como algo muito sério. Há um debate teológico, na segunda escolástica, de pensar se todas as pessoas são seres humanos ou se não são. Esse problema volta na Revolução Francesa quando se diz que os escravos negros não são humanos e mostra que essa visão muda à medida que a vamos construindo. Assim, não há um processo antropológico na política, mas sim processos de subjetivação: os escravos do Haiti perdem sua própria independência, mas a experiência de subjetivação política radical se põe como um mito de referência por dois séculos seguintes. Mulheres e escravos representam a contradição imanente de uma antropologia política pensada de maneira tranquila.
A antropologia política é um problema muito interessante no século XVI, porque quando os colonizadores chegaram ao Brasil, houve um problema teológico, porque eles tomaram a antropologia bíblica como algo muito sério. Há um debate teológico, na segunda escolástica, de pensar se todas as pessoas são seres humanos ou se não são. Esse problema volta na Revolução Francesa quando se diz que os escravos negros não são humanos e mostra que essa visão muda à medida que a vamos construindo. Assim, não há um processo antropológico na política, mas sim processos de subjetivação: os escravos do Haiti perdem sua própria independência, mas a experiência de subjetivação política radical se põe como um mito de referência por dois séculos seguintes. Mulheres e escravos representam a contradição imanente de uma antropologia política pensada de maneira tranquila.
“Não posso pensar um imigrante somente como uma vítima” |
IHU On-Line – Como essa sua
compreensão do sujeito que se constrói na história nos ajuda a entender o
problema dos imigrantes hoje?
Sandro Chignola – Sempre que falo dessa questão, falo à luz do princípio da sociologia: há a coincidência entre o saber da sociologia
e a invenção da fotografia. O saber da sociologia é mais ou menos como
se pode fotografar a realidade. Quando se fala desse tipo de coisa,
penso que é como fazer uma fotografia em movimento, porque falar do que
está acontecendo agora é complicado, não é algo simples, não é como
falar de um processo que já terminou.
Assim, o que me parece importante são dois dados. Primeiro, que boa parte da imigração
é causada por intervenções ocidentais em países orientais. Ou seja, se o
Ocidente exporta a guerra, tem de importar os imigrantes. A segunda
coisa é um problema que pertence à filosofia política: é
necessário encontrar uma forma de enfrentar o racismo, a xenofobia e o
fascismo, onde parecia que tudo isso fazia parte de uma história
terminada. A filosofia política também tem de assumir a responsabilidade
de pensar como enfrentar esse tipo de fenômeno: antes de pensar como
enfrentamos a situação dos imigrantes, temos de considerar como pensamos
o espaço europeu e como pensamos nossas fronteiras, porque é muito
simples pensar que as fronteiras são permeáveis pelas finanças, mas são
muros contra as pessoas. Desde os anos 2000 se tem uma ideia de que as
finanças devem fazer parte de um modelo econômico global,
mas quando se trata dos homens, surgem os muros, que são necessários
para que essa gente entre na Europa ou nos EUA em uma posição débil,
para desfrutar do seu trabalho, mas que é um trabalho precário, como de
semiescravidão.
Imigração para além da vitimização
Ainda sobre as migrações, o que me parece importante pensar são os projetos de subjetivação.
Não posso pensar um imigrante somente como uma vítima, porque ele é
alguém que investe em sua própria vida e quer viver melhor e sujeita a
uma posição às margens da cidadania europeia, o que nos obriga também a
repensar a cidadania europeia. Não podemos pensar que nós europeus somos
sempre bons, que ajudamos as pessoas; não, nós também somos maus,
exportamos a guerra, e isso me parece algo que nos propõe uma
responsabilidade de pensamento antes de tudo, ou seja, repensando o que é
a Europa, o que é a cidadania europeia, sem dar todas as coisas por
tranquilas, como faz a filosofia analítica, quando diz: já temos uma
ideia de justiça, já temos uma visão antropológica e agora vamos
discutir.
IHU On-Line – Como, a partir da
sua compreensão de filosofia política e da sua compreensão de sujeito,
podemos compreender o fenômeno da imigração do ponto de vista dos
imigrantes e da história política deles?
Sandro Chignola – Esse é
um problema que está sendo muito debatido na filosofia política, em
particular na Inglaterra e na França, onde houve um debate sobre a crise do multiculturalismo,
ou seja, daquele modelo de integração dos imigrantes dos anos 1950 e
1960. A França e a Inglaterra sempre tiveram colônias e imigrantes de
culturas diferentes, que estavam incluídos e integrados. Esse fenômeno
ficou conhecido como perspectiva multicultural, que consistia em dizer
que o Ocidente europeu reconhecia que havia, também na periferia de
Paris, cidadãos islâmicos. Com os problemas da França nos anos 2000, e
com problemas na Inglaterra, houve um debate dizendo que o modelo de
integração do multiculturalismo fracassou, porque na periferia francesa
há processos de identificação reativos pelos quais os jovens migrantes
da terceira geração redescobrem suas origens islâmicas, que são
polêmicas em relação ao Ocidente.
O problema fundamental pertence à representação de multiculturalismo,
ou seja, dizer que há esse suposto universal, que permanecia ao centro
desse jogo de reconhecimento, como o que administrava as posições. Eu
penso que o verdadeiro problema é o de implementar processos
de tradução e de reforma, porque um menino que cresce na periferia das
metrópoles europeias sem perspectiva de trabalho e de integração
efetiva, que agora é jogado à cultura do consumo,
tende, de maneira reativa, se pôr contra uma sociedade. São dois
processos que vão mobilizando uns junto aos outros no sentido de pensar
integrações econômicas que permitam uma nova forma de integração, e
mecanismos de tradução que permitam que nós discutamos sem pressupor que
há um que fale por todos, que está no centro, e que nunca põe sua visão
em discussão, que é a representação que o Ocidente faz de si mesmo.
“É necessário encontrar uma forma de enfrentar o racismo, a xenofobia e o fascismo, onde parecia que tudo isso fazia parte de uma história terminada” |
IHU On-Line – Você fala que o Ocidente tem uma visão universal de si mesmo. Entre os orientais de modo geral, existe uma visão universal também?
Sandro Chignola – Não
sei, mas trabalhei politicamente com os imigrantes na Itália e sempre
pensei que um dos problemas principais era organizar politicamente os
imigrantes. E todos os imigrantes com os quais conversei, percebiam sua
identidade islâmica como algo reativo, como uma defesa à exclusão
que viviam. O que me chamava a atenção era mais o processo de
hibridação cultural que havia, no sentido de que as meninas islâmicas
usavam véu, mas queriam ir dançar aos domingos com outras meninas. Ou
meninos islâmicos que eram praticantes, mas queriam organizar formas de
hip-hop entre eles.
Benjamin
pensava que a tradução era a língua universal em si mesma, porque é um
mecanismo que te põe na perspectiva de ver que a tua identidade nunca é
uma identidade pura, mas de movimento entre outros. Essa perspectiva é
interessante porque a única língua universal é a do intercâmbio.
IHU On-Line - Você estudou Eric
Voegelin. Esse é um autor pouco conhecido no Brasil. Em que aspectos da
obra dele concentrou seus estudos?
Sandro Chignola – Eric Voegelin
[6] é um pensador bastante raro, que se formou na Áustria e na Alemanha
nos anos 1930 e teve contato com círculos de intelectuais freudianos.
Quando os nazistas ocuparam a Áustria, ele fugiu e foi para os EUA. Lá
ele desenvolveu uma perspectiva sobre a filosofia política em relação
com outros intelectuais imigrantes, como Leo Strauss [7] e Hannah Arendt [8]. Depois, nos anos 1950, ele voltou para a Alemanha e obteve a mesma cátedra de sociologia que foi de Max Weber
[9]. Ele teve uma trajetória de formação bastante interessante e
escreveu sobre muitas coisas, principalmente a obra que se chama Ordem e
história, que reúne cinco volumes, na qual desenvolveu a ideia de que o
centro da ordem histórica é a experiência que a consciência faz de si
mesmo. Mas eu me interessei por outra coisa, pelo fato de que ele era um
dos primeiros filósofos políticos da cultura histórica que tentava
pensar uma ciência política a partir de Max Weber, ou da ciência
política como pensava a tradição americana, ou seja, uma ciência
política nova que recorria à política antiga, ou seja, recolocava Platão [10] e Aristóteles ao centro da política.
A outra perspectiva de sua obra que me interessava muito era sua teoria do êxodo,
a qual dizia que a experiência da consciência que permitia a
experiência da ordem da história é uma experiência que se centra sobre a
experiência de processos de subjetivação política, que sempre foi meu
interesse principal como um processo de êxodo, de saída. Ou seja, pode
se ter uma ordem política quando se toma distância dela, justamente
porque se rechaça essa ordem. Ele também trabalhou as Confissões de Santo Agostinho. [11]
Trata justamente dessa conexão entre
desejo, êxodo e saída, que permitia ler toda a tradição da Bíblia, e
depois permitiu ler a colonização da América, como um mecanismo de
desejo, liberdade e movimento, que possibilitava tanto a crítica da
ordem a partir de uma distância, quanto, por meio da crítica, um
processo de subjetivação que te põe em outro lugar, em outra ordem de
pensamento. Além disso, a partir da obra de Voegelin, tive a possibilidade de reconstruir uma série de relações com a migração alemã nos EUA, nos anos da Guerra.
IHU On-Line - Como você passou do estudo de Voegelin para Foucault? Percebe relações entre os dois?
Sandro Chignola – O
centro principal da minha investigação até agora foi a história dos
conceitos políticos. A história dos conceitos políticos na minha
perspectiva não era simplesmente fazer a história das palavras, porque
as palavras veiculam, em particular na modernidade política, efeitos de
verdade, como diria Foucault, ou seja, constroem a realidade. Como dizia antes, quando Hobbes
põe uma imagem de homem por meio de um conceito, o qual usa para
dizê-lo, produz o efeito de verdade do surgimento do Estado moderno, da
soberania. Ou seja, a história dos conceitos políticos permite dizer
isso: há uma época na qual os conceitos políticos modernos foram postos e
com os quais nós pensamos.
Eu não gosto dessas ideias de Estado, soberania, de uma visão universal de homem. A experiência da política ocidental,
que fundamentalmente trabalha com os conceitos de indivíduos, vontade,
representação política, soberania, Estado, diz respeito a uma época
determinada que não coincide com nenhuma universalidade histórica. Essa
experiência de política desconstrói, por exemplo, toda a antropologia
política da experiência filosófica política anterior.
Fim do Estado
Hoje, estamos em uma época em que penso que o Estado
está terminando, por conta da globalização, de problemas que mostram
que o Estado não tem a relevância que tinha antes. Cada vez que digo
isso na Argentina, eles respondem: “Não diga isso, nós queremos o Estado, porque ele nos serve”. Talvez seja o que digam aqui no Brasil também, mas do meu ponto de vista privilegiado da Europa, a impressão que tenho é de que o grande mecanismo de regulação global cruza os Estados, utiliza o Estado, mas não há mais possibilidade de pensar um Estado soberano como conhecemos nos anos 1960.
“Não há mais possibilidade de pensar um Estado soberano como conhecemos nos anos 1960” |
IHU On-Line – O que imagina que pode substituir o Estado, ou viveremos sem o Estado no futuro?
Sandro Chignola – Isso eu não sei. Foucault
te diria: “Não sei o que colocaremos no lugar, mas é preciso fazer a
genealogia desse processo para entender em que ponto estamos”. Isso
porque já nos damos conta de que o Estado não é mais suficiente para
solucionar o problema político, e isso nos coloca a pensar para além do
Estado, que é meu problema de investigação, atualmente.
Eu te dizia que esses dispositivos de
conceitos políticos remove toda a filosofia política clássica que tem
mil ferramentas para pensar de maneira diferente a política, e adiante
nos obriga a pensar de outra maneira. Então, por que Voegelin? Porque ele foi um dos primeiros que conheci que colocava esse problema de redescobrir os antigos, Platão e Aristóteles, para pensar de maneira diferente a ciência política weberiana que está formulada com a ideia de que o Estado tem o monopólio da violência e que esse é o único horizonte político que se pode pensar.
Foucault, por outro
lado, foi o primeiro pensador que já ao final dos anos 1960 intui que o
Estado estava terminando, quando introduziu o termo governabilidade, governança.
Ele também é um dos primeiros que pensa que a nova regulação política
iria armar-se de instrumentos administrativos. Pensa quem são as grandes
instituições globais que governam o mundo: não são organizações
soberanas, porque elas não são eleitas; não são instituições
parlamentares do Estado, são grandes organizações técnicas da
administração global, como o Fundo Monetário Internacional - FMI, o Banco Central,
que governam as pessoas. Não há nenhuma instituição representativa que
permite pensar de maneira democrática clássica a contemporaneidade
política.
Criação de subjetividade
Foucault é interessante
para mim porque pensava que, para pensar além do Estado, não pensava a
solução, mas antes ajudava a pôr o problema. Outra questão que me
interessa na obra dele, é o último Foucault, que é o primeiro que põe o
problema da subjetivação de maneira claríssima. Numa entrevista que
concedeu, ele disse: “Todos pensaram que meu problema era o poder. Mas
meu problema foi sempre o sujeito”. Ou seja, o sujeito que é sujeitado, e
depois o problema da subjetivação, porque o problema fundamental do governo neoliberal
é a produção da subjetividade, ou seja, disciplina com instrumentos
pedagógicos: a ideia que cada sujeito pense a si mesmo como um
empreendedor de si mesmo, que pode construir-se a si mesmo e, a partir
disso, se pôr em concorrência com os outros no mercado de trabalho. É um
trabalho disciplinar de subjetividade.
Foucault intuiu por primeiro que a razão neoliberal
trabalha no coração da subjetividade, levando a pensar a ti mesmo como
um consumidor, como um sujeito que é livre, mas só é livre de escolher o
que quer do mercado. Contra esse processo de subjetivação, tem de se
pensar processos de subjetivação livres. Os últimos cursos de Michel
Foucault foram dados na Grécia, onde ele trabalhou sobre os gregos, Platão, os estoicos. O problema da subjetivação é pensado como formas de vida que não são sujeitadas a algo como a forma jurídica moderna, disciplinar, são formas de modificação constante de si mesmo.
Os gregos e o governo
Os gregos não conhecem a soberania, conhecem o governo. E Aristóteles
diz na Política: “Governar e ser governado”. O problema é: Como se pode
pensar uma subjetivação livre ao interior de dispositivos políticos que
são dispositivos de governo? É por isso que me interesso por Foucault,
porque é uma das ferramentas que temos para pensar a atualidade. Minha
questão não é reabilitar a filosofia grega, mas pensar a subjetividade como um processo de subjetivação, que é o que nos permite pensar a identidade queer,
a identidade masculina e feminina para além da ideia de que porque
alguém nasce homem é homem, ou nasce mulher, é mulher [12]. Devemos
pensar processos de transformações dessas identidades, e é isso que me
permite pensar a subjetividade dos imigrantes, que têm uma subjetividade
em movimento.
“Como se pode pensar uma subjetivação livre ao interior de dispositivos políticos que são dispositivos de governo?” |
IHU On-Line – Como essas
instituições, a exemplo do FMI, que você menciona, criam subjetividades?
As instituições, enquanto parte do processo histórico, não existem por
si mesmas, mas são uma criação dos homens. Logo, não lhe parece que
antes das instituições, existem os homens e, novamente, a raiz dos
problemas que temos de enfrentar hoje tem uma perspectiva antropológica?
Sandro Chignola – Não
sei se vou responder da forma que você gostaria, mas penso que as
instituições sempre fabricaram os sujeitos de um modo tal que era
necessário para o funcionamento das instituições. Quando Hobbes
pensa o homem como um lobo, valoriza o homem a partir de um ponto de
vista, porque quer construir um sujeito dócil, obediente, um soberano,
sem a existência do qual o próprio homem está morto. Creio que neste
sentido há uma antropologia que é efeito da instituição. Para pensar o Estado dessa maneira, há que se pensar a pessoa dessa maneira, como lobos, como perigosos e concorrentes.
Não creio que há algo - e nisso sou
foucaultiano -, que existe um sujeito natural que pode se pôr na base da
instituição. Creio que há um efeito circular: a maneira pela qual a
instituição conhece sua ideia de sujeito é um sujeito que se adapta à
instituição. Por isso concordo que o problema da antropologia é um
problema sério. Agora temos de pensar outros sujeitos, para pensar outras instituições.
Para os gregos a filosofia era uma forma de vida segundo a qual um vivente produzia sua própria subjetividade. À altura do capitalismo contemporâneo,
temos de pensar mecanismos de êxodo, não de enfrentamento com o Estado,
ou seja, temos de pensar novas formas de vida que não sejam
simplesmente estatais ou institucionais, e pensar a antropologia de
maneira processual para pensarmos algo completamente novo.
IHU On-Line – O que você tem em mente sobre o que seria essa nova forma de vida a ser desenvolvida?
Sandro Chignola – Isso é complicado, mas eu penso que estou próximo de meu amigo Toni Negri [13] e assim penso como Agamben
[14], que a forma produtiva contemporânea é uma forma na qual a vida
dos homens está posta ao trabalho; é uma vida produtiva. Por exemplo,
quando alguém posta algo em seu Facebook ou no Youtube,
não faz disso seu tempo livre, mas está trabalhando, porque o valor da
empresa Facebook vai subindo a partir do próprio desejo de comunicação
das pessoas. Assim, há um capitalismo que vai assumindo a figura de quem tem a estrutura digital e ganha dinheiro com isso.
Não tenho soluções, mas te digo que o problema político contemporâneo é pensar esses processos de subjetivação do trabalho e instituições para além da dimensão pública e privada, o que Agamben e Negri chamam de “comum”.
Temos de pensar processos de subjetivação e comunicação que ponham em
comum as identidades, as experiências, linguagens. Estamos num processo
de transformação e a crise econômica é um sintoma que
nos leva a pensar de outras formas essas categorias de sujeito,
soberania, Estado, público, privado. Há que se pensar instituições
comuns e não instituições estatais clássicas. As soluções para isso não
se encontram na filosofia, mas nos homens e mulheres, nos movimentos.
“O problema contemporâneo político é pensar esses processos de subjetivação do trabalho e instituições para além da dimensão pública e privada, o que Agamben e Negri chamam de 'comum'” |
IHU On-Line – Que aspectos da política, Agamben ajuda a compreender?
Sandro Chignola – Penso que poucos, mas essa é uma polêmica pessoal minha. Ele é um filósofo muito sério, trabalhou com Heidegger [15], casou-se com uma mulher muito rica na Itália (risos). Mas tenho um problema com seu pensamento, porque sua perspectiva sobre a sacralização da vida sobre esse dispositivo de exclusão e inclusão radical da vida é muito forte de uma perspectiva crítica, mas muito débil de uma perspectiva política. Ele tem uma perspectiva muito vitimizada do sujeito, ou seja, o sujeito é uma vítima, um sujeito que não é um sujeito porque tem uma vida que está para ser perdida.
Reconheço que é um pensador importante,
mas sempre achei que essa perspectiva que ele trabalha é vitimária e não
me ajuda a pensar processos de subjetivação. Nesse sentido, o imigrante pode ser visto como “a vida nua”, que está no barco entre a Líbia e a Sicília, que morre, como o menino que morreu
esses dias, cuja foto circulou pelo mundo todo, ou pode ser visto como
um sujeito em movimento, que tem seu desejo de liberdade e que sofre,
mas que é mais forte do que seu sofrimento e que nos ajuda a pensar
processos de subjetivação para nós mesmos. Porque meu problema com a
questão dos imigrantes não é pensar somente acerca dos
direitos deles, mas a maneira pela qual os imigrantes me obrigam a
repensar minha própria posição de cidadão branco e democrático.
Responsabilidade política
Uma das minhas polêmicas com a filosofia política
é que muitas vezes se faz filosofia política sem haver responsabilidade
pelo que se faz. Ou seja, achar que temos um conjunto de autores e é
com esses que devemos trabalhar. Há um processo de subjetivação
acadêmica que responsabiliza a produção acadêmica.
Há uma responsabilidade do trabalho intelectual e essa é uma perspectiva weberiana que gosto muito. Weber tem duas palestras de 1919, uma chamada O trabalho intelectual como profissão, e outra, A política como profissão, que são muito interessantes. Ele faz referência específica a Platão, sobre o diálogo da coragem da verdade, no qual ele coloca o mesmo problema que Foucault se colocou ao dizer que a Filosofia
é pensamento que tem responsabilidade pelo que faz, pelo tipo de
autores que se trabalha, ou seja, há um motivo para trabalhar uma coisa e
não outra. Esse estilo de pensamento de Foucault me influenciou muito.
Ou seja, a filosofia tem de pensar os problemas que a realidade nos põe.
IHU On-Line – Como vê a receptividade dos estudos de Foucault no Brasil?
Sandro Chignola – Percebo que no Brasil muitos estudam Foucault e Agamben,
mas não conheço a produção brasileira sobre Foucault, porque não leio
em português e também porque as obras brasileiras não chegam à Europa.
Não sei se é um limite dos foucaultianos ou limite dos brasileiros que
não se colocam em relação com foucaultianos de outras partes do mundo.
Meu amigo Edgardo Castro
[16], que é argentino, sempre é convidado a participar de eventos que
acontecem em outros locais do mundo. Foucault veio ao Brasil muitas
vezes, mas penso que haja uma limitação da língua ou talvez os
brasileiros não queiram sair e discutir. Nunca encontrei brasileiros em
congressos internacionais na Europa, por exemplo. Essa é uma coisa que
tem de ser solucionada, porque se há uma receptividade de Foucault aqui
no Brasil, os brasileiros deveriam divulgar suas produções.
“A desconstrução da universalidade ou simplesmente de alguns conceitos políticos é necessária. Depois, temos de construir concepções novas” |
IHU On-Line – Durante algum
tempo, os filósofos que optaram por uma teoria da desconstrução tiveram
muito sucesso, foram bastante lidos. Essa ainda tende a ser a tendência
da filosofia ou isso foi apenas uma “moda”?
Sandro Chignola – Eles
foram fortes, mas a diferença é entender o que é forte no sentido de que
está na moda e está sendo muito lido, e o que é forte porque é. Esse é
um tema com o qual polemizo muito, porque há uma operação em curso, que
creio que vai evaporar, porque não tem muito sentido falar de uma teoria
francesa, como se falava nos anos 1970, ou de uma teoria italiana.
Dizia-se nessa época que o futuro da filosofia era a teoria francesa: Foucault, Derrida [17]. Mas há poucos dias estive num colóquio e alguém dizia que hoje há algo como uma teoria italiana, com Toni Negri, Agamben,
e nós italianos que estudamos esses problemas. Mas acho que isso é
moda. E, de outro lado, existem coisas que são de fato influentes e que
nos permitem pensar.
A desconstrução genealógica de Foucault
tem um sentido, porque há de se desconstruir a pretensão de
universalidade, de neutralidade, de democracia — eu sou marxiano, e não
pensar que todo problema político está solucionado dentro dos mecanismos
clássicos da representação política, que esta pode funcionar para
sempre; isso me parece muito débil. Não sou antidemocrático, mas penso
que temos de pensar para além da democracia. É nesse sentido que a
desconstrução é importante para desconstruir algumas coisas e pensar
para além delas.
Nessa perspectiva, a desconstrução da
universalidade ou simplesmente de alguns conceitos políticos é
necessária. Depois, temos de construir concepções novas. Não creio que
simplesmente o problema será fazer uma referência canônica a um autor.
Foucault, por exemplo, escreveu sua filosofia a partir do princípio da
morte do autor. Ele não queria ser um mestre, um filósofo do mundo, ao
contrário, numa entrevista dos anos 1970 ele disse que queria que seu
livro fosse lido para incendiar, fazer pensar o momento, e não ser
recordado como um autor acerca do qual se fazem teses e comentários.
Foucault, quando escreveu Vigiar e Punir, tinha em
mente o problema das reformas das prisões na França e as revoltas nas
prisões francesas. Ele queria pensar como era o cárcere e foi
construindo seus conceitos a partir de uma responsabilidade que tinha no
presente.
IHU On-Line – O que você está estudando hoje?
Sandro Chignola – Hoje
estou trabalhando fontes do século XIX, porque me interessa pensar algo
como a transindividualidade do sujeito, a partir de Gabriel Tarde [18], que perdeu a batalha com Durkheim [19] na fundação da sociologia francesa, e disse que a sociedade
não é feita de indivíduos, mas cada indivíduo é uma sociedade, porque
não se pode pensar um indivíduo sem pensar o complexo das relações que
têm intenção com o que se vê, se escuta, se imita.
Meus problemas de investigação atuais são: como pensar o sujeito hoje e como pensar o comum
hoje. Uma das coisas para pensar o comum é pensar que há algo como um
indivíduo subjetivado, com uma vontade que é própria do direito burguês
moderno, que não serve mais, porque não há algo como um indivíduo. Cada
um de nós tem de ser pensado de outra maneira, porque estamos permeados
de uma série de informações que a própria biologia nos apresenta a cada
dia.
“A filosofia está caminhando ao regresso de sua própria história” |
IHU On-Line – Quais são os filósofos mais importantes para compreender esses problemas filosóficos que você estuda?
Sandro Chignola – Foucault
é muito importante, não para dar uma volta ao que Foucault disse, mas
para retomar o trabalho a partir de onde ele interrompeu. Foucault é
útil se retomamos esse estilo de pensamento, e não me interessa se
alguém utiliza a palavra de Foucault ou de Agamben. Outro muito importante é Deleuze, pela ontologia, e não pelas coisas que escreveu em seu livro mais conhecido; mas me interessa o Deleuze que escreve sobre Nietzsche, Spinoza,
porque creio que nos ajuda a modificar os quadros da ontologia com a
qual pensamos, ou seja, uma ontologia antiplatônica, que nos permite
pensar as intenções e não simplesmente ideias e sujeitos definidos. Além
disso, tem Toni Negri, Michael Hardt [20], Pierre Hadot [21].
Este é um problema que não é posto por
nós que somos subversivos, mas a globalização é subversiva ao dizer que
existem algumas organizações privadas e sistemas de poder que se valem
de instituições que antes eram públicas, como a assistência de saúde. Na
Itália a assistência à saúde era feita pelo Estado, mas agora pertence
às instituições privadas, ou seja, são eles os inimigos que vão cruzando
a linha que separava antes o público e privado.
IHU On-Line – Esses problemas que você investiga têm repercussão na Europa? Qual é a tendência da Filosofia na Europa?
Sandro Chignola – Essa é uma vantagem que estamos perdendo, porque na Europa
está se difundindo muito a filosofia analítica americana, porque ela
permite conseguir recursos financeiros para pesquisa, permite parcerias
com universidades americanas, permite que os jovens encontrem trabalho
em universidades que falam inglês, ou seja, uma filosofia que pode ser
exercida em qualquer lugar de língua inglesa.
Mas creio que a batalha por essa intervenção continental de filosofia
tem de ser entendida no sentido que temos uma tradição que nos permite
pensar a filosofia como uma prática e não somente como um saber ao lado
de outros saberes. Essa é a coisa que me interessa: que a filosofia não é
simplesmente um saber teórico, mas uma coisa que tem de ser feita com a
vida das pessoas, a eleição de uma forma de vida pela qual se necessita
metafísica, geometria, guerra, matemática, música, educação, e tudo
isso. Não é só filosofia no sentido banal.
“O grande risco é transformar a filosofia em mera opinião” |
IHU On-Line - Como o senhor
define o atual momento em que vivemos? É um momento de crise? Por quais
razões? De que modo a filosofia, para além da filosofia política, pode
nos ajudar a entender e a encontrar formas de resolver os problemas da
contemporaneidade?
Sandro Chignola – Sim, a crise é um dos sintomas do presente. Há uma marginalização institucional progressiva. A Itália
era o único país onde havia três anos de filosofia e agora isso não
existe mais, porque pensam que é mais importante estudar direito,
economia ou coisas do tipo. O segundo sintoma da crise são os cortes dos
recursos financeiros nos departamentos de filosofia,
porque se preferem saberes que tragam resultados imediatamente. Em
terceiro lugar, há mutação antropológica dos estudantes,
que leem menos, e têm uma concentração menor do que se tinha antes. O
quarto elemento da crise é esse processo de transformação da filosofia
em opiniões. Na Itália virou moda falar de um determinado assunto, como
uma espécie de talk show em que se convida um filósofo e ele
fala sobre qualquer coisa, mas isso é completamente diferente da
responsabilidade da filosofia. A filosofia está
caminhando ao regresso de sua própria história. Para os gregos, a
filosofia tinha de se separar da doxa, da opinião, mas parece que a
filosofia faz o caminho inverso e parece que ela tem sido uma opinião,
assim como se escuta a opinião de um político.
Por outro lado, onde mais cresce o perigo, cresce o que o salva. Penso a crise da filosofia como uma ocasião de salvar a filosofia. O grande risco é transformar a filosofia em mera opinião.
IHU On-Line - O fato de a
filosofia poder estar virando um amontoado de opiniões não tem a ver com
o que Nietzsche disse: “Não existem fatos, só interpretações”?
Sandro Chignola – Tem uma leitura que se faz de Nietzsche
a partir dessa perspectiva, mas penso que ele nos ajuda a pensar que a
verdade é uma perspectiva de parte, uma perspectiva em que se toma a
responsabilidade pelo que se diz, por isso que acho que a verdade não é
neutra e universal. É essa ideia de Nietzsche que interessava também a Foucault. O que me interessa é a perspectiva de como eu participo da realidade, e a realidade é tensão e conflito. Porque participar quer dizer fazer parte, e não diluir sua própria parte no universal.
Por Patricia Fachin
NOTAS
[1]
Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas obras, desde a
História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não pôde
completar devido a sua morte) situam-se dentro de uma filosofia do
conhecimento. Foucault trata principalmente do tema do poder, rompendo
com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, a IHU On-Line
dedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de 18-10-2004,
disponível em http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 06-11-2006, disponível em http://bit.ly/ihuon203; edição 364, de 06-06-2011, intitulada 'História da loucura' e o discurso racional em debate, disponível em http://bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des)governo biopolítico da vida humana, de 13-09-2010, disponível em http://bit.ly/ihuon343, e edição 344, Biopolitica, estado de exceção e vida nua. Um debate, disponível em http://bit.ly/ihuon344. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em Formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel Foucault. (Nota da IHU On-Line)
[2]
Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. Assim como Foucault, foi
um dos estudiosos de Kant, mas tem em Bérgson, Nietzsche e Espinosa,
poderosas interseções. Professor da Universidade de Paris VIII,
Vincennes, Deleuze atualizou ideias como as de devir, acontecimentos,
singularidades, conceitos que nos impelem a transformar a nós mesmos,
incitando-nos a produzir espaços de criação e de produção de
acontecimentos-outros. (Nota da IHU On-Line)
[3]
Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a. C.): filósofo nascido na
Calcídica, Estagira. Suas reflexões filosóficas — por um lado,
originais; por outro, reformuladoras da tradição grega — acabaram por
configurar um modo de pensar que se estenderia por séculos. Prestou
significativas contribuições para o pensamento humano, destacando-se nos
campos da ética, política, física, metafísica, lógica, psicologia,
poesia, retórica, zoologia, biologia e história natural. É considerado,
por muitos, o filósofo que mais influenciou o pensamento ocidental.
(Nota da IHU On-Line)
[4]
Thomas Hobbes (1588–1679): filósofo inglês. Sua obra mais famosa, O
Leviatã (1651), trata de teoria política. Neste livro, Hobbes nega que o
homem seja um ser naturalmente social. Afirma, ao contrário, que os
homens são impulsionados apenas por considerações egoístas. Também
escreveu sobre física e psicologia. Hobbes estudou na Universidade de
Oxford e foi secretário de Sir Francis Bacon. A respeito desse filósofo,
confira a entrevista O conflito é o motor da vida política, concedida
pela Profa. Dra. Maria Isabel Limongi à edição 276 da revista IHU
On-Line, de 06-10-2008. O material está disponível em http://bit.ly/ihuon276. (Nota da IHU On-Line)
[5] Doxa é uma palavra grega que significa crença comum ou opinião popular. (Nota da IHU On-Line)
[6]
Eric Voegelin (1901-1985): estudioso alemão que causou comoção nos meios
acadêmicos ao classificar movimentos políticos modernos - como o
positivismo e o marxismo - como gnósticos, de modo que não passariam de
novas versões de uma velha heresia combatida pela Igreja Católica. Foi
aluno de Hans Kelsen, mas acabou emigrando para a Louisiana, no Sul dos
Estados Unidos, durante a ditadura de Hitler. Foi lá que escreveu a
maioria de seus livros. Em grande parte devido à difusão das teses de
Voegelin, inspiradas por autores modernistas, tem havido recentemente
uma onda de estudos "revisionistas" sobre gnose, questionando a validade
do termo e buscando redefinir seu significado. De suas obras, citamos A
nova ciência da política (2ª ed. Brasília : Universidade de Brasil,
1982). (Nota da IHU On-Line)
[7]
Leo Strauss (Kirchhain, 20 de setembro de 1899 — Annapolis, 18 de
outubro de 1973): foi um filósofo político teuto-americano ateu de
origem judaica [1] . Especialista no estudo da Filosofia Política
Clássica, passou a maior parte de sua carreira como professor de Ciência
Política na Universidade de Chicago. (Nota da IHU On-Line)
[8]
Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e socióloga alemã, de origem
judaica. Foi influenciada por Husserl, Heidegger e Karl Jaspers. Em
consequência das perseguições nazistas, em 1941, partiu para os Estados
Unidos, onde escreveu grande parte das suas obras. Lecionou nas
principais universidades deste país. Sua filosofia assenta numa crítica à
sociedade de massas e à sua tendência para atomizar os indivíduos.
Preconiza um regresso a uma concepção política separada da esfera
econômica, tendo como modelo de inspiração a antiga cidade grega. A
edição mais recente da IHU On-Line que abordou o trabalho da filósofa
foi a 438, A Banalidade do Mal, de 24-03-2014, disponível em http://bit.ly/ihuon438.
Sobre Arendt, confira ianda as edições 168 da IHU On-Line, de 12-12-
2005, sob o título Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três
mulheres que marcaram o século XX, disponível em http://bit.ly/ihuon168, e a edição 206, de 27-11-2006, intitulada O mundo moderno é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906-1975, disponível em http://bit.ly/ihuon206. (Nota da IHU On-Line)
[9]
Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão, considerado um dos fundadores
da Sociologia. Ética protestante e o espírito do capitalismo (Rio de
Janeiro: Companhia das Letras, 2004) é uma das suas mais conhecidas e
importantes obras. Cem anos depois, a IHU On-Line dedicou-lhe a sua 101ª
edição, de 17-05-2004, intitulada Max Weber. A ética protestante e o
espírito do capitalismo 100 anos depois, disponível para download em http://bit.ly/ihuon101. De Max Weber o IHU publicou o Cadernos IHU em Formação nº 3, 2005, chamado Max Weber – o espírito do capitalismo disponível em http://bit.ly/ihuem03.
Em 10-11-2005, o professor Antônio Flávio Pierucci ministrou a
conferência de encerramento do I Ciclo de Estudos Repensando os
Clássicos da Economia, promovido pelo IHU, intitulada Relações e
implicações da ética protestante para o capitalismo. (Nota da IHU
On-Line)
[10]
Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. Criador de sistemas
filosóficos influentes até hoje, como a Teoria das Ideias e a Dialética.
Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre suas
obras, destacam-se A República (São Paulo: Editora Edipro, 2012) e Fédon
(São Paulo: Martin Claret, 2002). Sobre Platão, confira e entrevista As
implicações éticas da cosmologia de Platão, concedida pelo filósofo
Marcelo Perine à edição 194 da revista IHU On-Line, de
04-09-2006,disponível em http://bit.ly/pteX8f. Leia, também, a edição 294 da Revista IHU On-Line, de 25-05-2009, intitulada Platão. A totalidade em movimento, disponível em http://bit.ly/xdSEVn. (Nota da IHU On-Line)
[11]
Santo Agostinho (Aurélio Agostinho, 354-430): bispo, escritor, teólogo,
filósofo foi uma das figuras mais importantes no desenvolvimento do
cristianismo no Ocidente. Ele foi influenciado pelo neoplatonismo de
Plotino e criou os conceitos de pecado original e guerra justa. Confira a
entrevista concedida por Luiz Astorga à edição 421 da IHU On-Line, de
04-06-2013, intitulada A disputatio de Santo Tomás de Aquino: uma
síntese dupla, disponível em http://bit.ly/ihuon421. (Nota da IHU On-Line)
[12] A IHU On-Line nº 463, intitulada Todas as possibilidades de gênero, aborda essa questão. Está disponível em http://migre.me/rCxP4. (Nota da IHU On-Line)
[13]
Antonio Negri (1933): filósofo político e moral italiano. Durante a
adolescência, foi militante da Juventude Italiana de Ação Católica, como
Umberto Eco e outros intelectuais italianos. Em 2000 publicou o
livro-manifesto Império (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003), com
Michael Hardt. Em seguida, publicou Multidão. Guerra e democracia na era
do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005), também com Michael
Hardt – sobre esta obra, publicamos um artigo de Marco Bascetta na 125ª
edição da IHU On-Line, de 29-11-2004. O último livro da “trilogia”
entre os dois autores Commonwealth (USA: First harvaard University Press
paperback, 2011), ainda não foi publicado em português. (Nota da IHU
On-Line) (Nota da IHU On-Line)
[14]
Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano. É professor da Facolta di
Design e arti della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e do College
International de Philosophie de Paris. Formado em Direito, foi professor
da Universitá di Macerata, Universitá di Verona e da New York
University, cargo ao qual renunciou em protesto à política do governo
estadunidense. Sua produção centra-se nas relações entre filosofia,
literatura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre suas principais
obras, estão Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2002), A linguagem e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005),
Infância e história: destruição da experiência e origem da história
(Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado de exceção (São Paulo: Boitempo
Editorial, 2007), Estâncias – A palavra e o fantasma na cultura
ocidental (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo:
Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-2007, o sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU publicou a entrevista Estado de exceção e biopolítica
segundo Giorgio Agamben, com o filósofo Jasson da Silva Martins,
disponível em http://bit.ly/jasson040907.
A edição 236 da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou a entrevista
Agamben e Heidegger: o âmbito originário de uma nova experiência, ética,
política e direito, com o filósofo Fabrício Carlos Zanin, disponível em
http://bit.ly/ihuon236. A edição
81 da publicação, de 27-10-2003, teve como tema de capa O Estado de
exceção e a vida nua: a lei política moderna, disponível para acesso em http://bit.ly/ihuon81. (Nota da IHU On-Line)
[15]
Martin Heidegger (1889-1976): filósofo alemão. Sua obra máxima é O ser e
o tempo (1927). A problemática heideggeriana é ampliada em Que é
Metafísica? (1929), Cartas sobre o humanismo (1947), Introdução à
metafísica (1953). Sobre Heidegger, confira as edições 185, de
19-06-2006, intitulada O século de Heidegger, disponível em http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 03-07-2006, intitulada Ser e tempo. A desconstrução da metafísica, em http://bit.ly/ihuon187. Confira, ainda, Cadernos IHU Em Formação nº 12, Martin Heidegger. A desconstrução da metafísica, que pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem12. Confira, também, a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-05-2010, disponível em http://bit.ly/ihuon328,
intitulada O biologismo radical de Nietzsche não pode ser minimizado,
na qual discute ideias de sua conferência A crítica de Heidegger ao
biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do
ciclo de estudos Filosofias da diferença - pré-evento do XI Simpósio
Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana. (Nota da
IHU On-Line)
[16]
Edgardo Castro é doutor em Filosofia pela Universidad de Friburgo,
pesquisador do CONICET e professor da Universidad Nacional de San
Martín. Tem trabalhado como professor em diversas universidades
argentinas, e é professor convidado no Instituto Italiano di Scienze
Umane de Nápoles, na Universidade Federal de Santa Catarina e na
Universidad de Chile. Suas publicações versam sobre a filosofia
contemporânea, particularmente francesa e italiana. É um dos principais
tradutores da obra de Giorgio Agamben ao espanhol. Entre seus livros,
destacamos Pensar a Foucault (Buenos Aires: Biblos, 1995), Giorgio
Agamben. Una arqueología de la potencia (Buenos Aires: Unsam Edita,
2008) traduzido para o português sob o título Introdução a Agamben. Uma
arqueologia da potência (São Paulo: Autêntica, 2012) e Diccionario
Foucault (Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2012). Castro participou do
XVII Simpósio Internacional IHU | V Colóquio Latino-Americano de
Biopolítica | III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação.
Saberes e Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade,
que ocorreu entre os dias 21 a 24-09-2015, na Unisinos. A última
entrevista de Edgardo Castro à IHU On-Line está disponível no link http://migre.me/rCyyx.
[17]
Jacques Derrida (1930-2004): filósofo francês, criador do método chamado
desconstrução. Seu trabalho é associado, com frequência, ao
pós-estruturalismo e ao pós-modernismo. Entre as principais influências
de Derrida encontram-se Sigmund Freud e Martin Heidegger. Entre sua
extensa produção, figuram os livros Gramatologia (São Paulo:
Perspectiva, 1973), A farmácia de Platão (São Paulo: Iluminuras, 1994), O
animal que logo sou (São Paulo: UNESP, 2002), Papel-máquina (São Paulo:
Estação Liberdade, 2004) e Força de lei (São Paulo: WMF Martins Fontes,
2007). Dedicamos a Derrida a editoria Memória da IHU On-Line nº 119, de
18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119. (Nota da IHU On-Line)
[18]
Jean-Gabriel de Tarde (Sarlat, 12 de março de 1843 — Paris, 12 de maio
de 1904): foi um filósofo, sociólogo, psicólogo e criminologista
francês. A família de Tarde era de origem nobre e vivia na região de
Sarlat, desde a Idade Média. Tarde começa a sua carreira de investigação
primeiro na Criminologia publicando vários artigos, nos quais entra em
polémica com o criminologista italiano César Lombroso. Para além da
Criminologia, publica também artigos nas áreas da Sociologia, Filosofia,
Psicologia Social e Economia. Em 1894, é nomeado diretor da secção de
estatística criminal do Ministério da Justiça em Paris, cargo que
conserva até à morte. Nesta cidade, continua uma vida intensa ligada à
investigação nas Ciências Sociais e Humanas: colóquios, congressos,
artigos e polémicas (desta vez com Émile Durkheim, ao qual se opõe na
definição e metodologia da Sociologia). (Nota da IHU On-Line)
[19]
David Émile Durkheim (1858-1917): conhecido como um dos fundadores da
Sociologia moderna. Foi também, em 1895, o fundador do primeiro
departamento de sociologia de uma universidade européia e, em 1896, o
fundador de um dos primeiros jornais dedicados à ciência social,
intitulado L'Année Sociologique. (Nota da IHU On-Line)
[20]
Michael Hardt (1960): téorico literário americano e filósofo político
radicado na Universidade de Duke. Com Antonio Negri escreveu os livros
internacionalmente famosos Império (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003)
e Multidão. Guerra e democracia na era do império (Rio de Janeiro/São
Paulo: Record, 2005). (Nota da IHU On-Line)
[21]
Pierre Hadot: filósofo francês, é um dos co-autores do livro Dicionário
de ética e Filosofia Moral. São Leopoldo: Unisinos, 2003. Sus pesquisas
concentraram-se primeiramente nas relações entre helenismo e
cristianismo,em seguida, na mística neoplatônica e na filosofia da época
helenística. Elas se orientam atualmente para uma descrição geral do
fenômeno espiritual que a filosofia representa. Em português pode ser
lido o livro de sua autoria O que é a filosofia antiga? (São Paulo:
Loyola, 1999). Para uma resenha da obra confira a revista Síntese
75(1996), p. 547-551. A resenha do original francês é de Henrique C. de
Lima Vaz. (Nota da IHU On-Line)
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Fonte: IHU
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