dezembro 22, 2015

A morte da democracia e a farsa neoliberal da neutralidade da moeda. Entrevista especial com Andrea Fumagalli (IHU)

PICICA: "Quando “hierarquias do mercado ditarem escolhas da política econômica e o próprio mercado estabelecer as regras das relações humano-sociais, a democracia, entendida como processo de decisão resultante de um princípio dialético, está morta”, adverte economista italiano"

A morte da democracia e a farsa neoliberal da neutralidade da moeda. Entrevista especial com Andrea Fumagalli

Quando “hierarquias do mercado ditarem escolhas da política econômica e o próprio mercado estabelecer as regras das relações humano-sociais, a democracia, entendida como processo de decisão resultante de um princípio dialético, está morta”, adverte economista italiano

Foto: direitoagesn.blogspot.com
“O pensamento neoliberal fundamenta-se no conceito de neutralidade da moeda e na suposição da perfeita competição nos mercados financeiros. Na verdade, os mercados financeiros não são imparciais e neutros, mas expressão de uma hierarquia bem precisa: longe de serem concorrenciais, escondem uma pirâmide que vê, na parte superior, poucos operadores financeiros controlando mais de 65% de fluxos globais e, na base, uma miríade de pequenos investidores e operadores desempenhando uma função passiva. Tal estrutura permite que poucas empresas tenham capacidade de atingir e afetar a dinâmica do mercado. As agências de rating (amiúde em conluio com as financeiras) ratificam, de modo instrumental, decisões oligárquicas, tomadas de tempos em tempos. Com tal farsa, o pensamento neoliberal tenta fazer passar como objetiva, neutra e naturalmente dada, uma estrutura de poder que, ao contrário, objetiva favorecer uma distribuição que vai dos mais pobres para os mais ricos”. A reflexão é do economista italiano Andrea Fumagalli, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E acrescenta: “A democracia está morta exatamente no momento que tem início a parábola do capitalismo cognitivo”.

Andrea Fumagalli (foto abaixo) é Doutor em Economia Política, professor no Departamento de Economia Política e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Itália. Seus temas de interesse são teoria macroeconômica, teoria do circuito monetário; economia da inovação e da indústria, flexibilidade do mercado de trabalho e mutação do capitalismo contemporâneo: o paradigma do capitalismo cognitivo, entre outros.


Dentre seus vários livros publicados, citamos: Il lavoro. Nuovo e vecchio sfruttamento (Milão: Punto Rosso, 2006), Bioeconomia e capitalismo cognitivo. Verso un nuovo paradigma di accumulazione (Roma: Carocci Editore, 2007) e La crisi economica globale (Verona: Ombre corte, 2009).


Em 2010 Fumagalli participou com uma conferência do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, quando falou sobre A financeirização como forma de biopoder.




Confira a entrevista.

Foto: wikimedia.org
IHU On-Line - O que une bioeconomia e capitalismo cognitivo?
 
Andrea Fumagalli - O atual paradigma de acumulação chama-se "capitalismo cognitivo". Conforme Carlo Vercellone, "o termo capitalismo designa aquelas variáveis fundamentais do sistema capitalista que permanecem, mesmo transformando-se: em particular, a preponderância do lucro e da relação salarial ou, mais precisamente, as diferentes formas de trabalho dependente, dais quais se extrai a mais-valia; o atributo cognitivo evidencia a nova natureza do trabalho, as fontes de valorização e a estrutura da propriedade, sobre as quais se funda o processo de acumulação e das contradições que esta mutação gera".


A centralidade das economias de aprendizagem e do trabalho em rede, típicas do capitalismo cognitivo, vai sendo questionada no início do novo milênio, na sequência do rebentamento da bolha especulativa da Net-Economy, em março de 2000. O novo paradigma cognitivo não é capaz de evitar sozinho a instabilidade do sistema socioeconômico que o caracteriza. É necessário injetar nova liquidez nos mercados financeiros.


A capacidade de os mercados financeiros gerarem "valor", na verdade, depende do desenvolvimento de "convenções" (bolhas especulativas), capazes de criar expectativas tendencialmente homogêneas, que empurram os principais operadores financeiros a se concentrarem em determinados tipos de atividades financeiras. Nos anos 1990, de fato, foi a Net-Economy, na década de 2000 a atração veio do desenvolvimento dos mercados asiáticos (a China entrando na OMC, em dezembro de 2001) e imobiliário.


Hoje a tendência é concentrar-se na manutenção do welfare europeu. Independentemente do tipo de acordo dominante, o capitalismo contemporâneo está constantemente procurando novas áreas sociais e vitais, onde devorar e mercantilizar, até interessar-se, crescentemente, nas que são as faculdades vitais dos seres humanos. É o que, nos últimos anos, chamou-se de bioeconomia e biocapitalismo. Podemos, então, propor a junção do capitalismo cognitivo com a bioeconomia: “capitalismo biocognitivo” é a definição terminológica do capitalismo contemporâneo.


“A polarização das rendas aumenta o risco de insolvência das dívidas, que estão na base do crescimento da mesma base financeira, e diminui o salário médio”


IHU On-Line - Por que a crise financeira, enfrentada em diversos países, é uma crise de governança financeira do biopoder atual? A partir deste cenário, em que medida se pode dizer que a financeirização atinge todas as áreas de nossas vidas? Quais são as implicações fundamentais?


Andrea Fumagalli - Os mercados financeiros são o coração batendo, o conhecimento do cérebro, as atividades relacionais, o sistema nervoso. O capitalismo biocognitivo é um corpo único, no qual não é possível separar a esfera do "real" da esfera "financeira"; a esfera produtiva, da esfera improdutiva; o tempo de trabalho, do tempo de vida; e a produção, da reprodução e do consumo.


Em geral, a financeirização marca a transição final do dinheiro-mercadoria para o dinheiro-símbolo. Com a desmaterialização total do dinheiro (após o colapso de Bretton Woods, em 1971, e do fim da paridade fixa dólar-ouro), os mercados financeiros definiram convenções sociais e hierárquicas capazes de fixar, em pouco tempo, o valor da moeda. E, ao mesmo tempo, permitem que se mantenham abertas as relações de débito e crédito, contanto que haja confiança suficiente nos operadores.


Os mercados financeiros, portanto, fornecem o lubrificante para o processo de acumulação: no sistema capitalista, no entanto, não existe acumulação sem endividamento. Não é por acaso que, dos anos 1990 em diante, proveem o financiamento das atividades de acumulação: a liquidez atraída pelos mercados financeiros premia a reestruturação da produção voltada a explorar os conhecimentos e os controles dos espaços externos da empresa.


Em segundo lugar, na presença de mais-valia, os mercados financeiros desempenham, no sistema econômico, o mesmo papel que no capitalismo fordista-industrial era desempenhado pelo multiplicador keynesiano (ativado pelos gastos deficitários). No entanto - ao contrário do clássico multiplicador keynesiano -, o novo multiplicador financeiro leva a uma redistribuição distorcida da renda. Para que este multiplicador seja operacional (>1) requer-se que a base financeira (ou seja, a extensão dos mercados financeiros) esteja constantemente em aumento, e que os ganhos de capital acumulados sejam, em média, superiores à perda do salário mediano. Por outro lado, a polarização das rendas aumenta o risco de insolvência das dívidas, que estão na base do crescimento da mesma base financeira, e diminui o salário médio. Daqui resulta que o biocapitalismo cognitivo é estruturalmente instável.


Quando o lucro vira renda


Em terceiro lugar, os mercados financeiros, canalizando de forma forçada parte crescente da renda do trabalho (liquidação e previdência, além das rendas que, através do Estado social, se traduzem em instituições de tutela da saúde e da educação pública), substituem, assim, o Estado como segurador social. Deste ponto de vista, eles representam a privatização da esfera reprodutiva da vida.


Finalmente, os mercados financeiros são o lugar onde se fixa hoje a valorização capitalista, ou seja, o local da medição da exploração da cooperação social e do intelecto geral através da dinâmica de valores de mercado. O lucro é transformado, assim, em renda (cf. Tese 3), e os mercados financeiros tornam-se o lugar da determinação do valor-trabalho, que é transformado em valor-financeiro, que não é senão a expressão subjetiva de futuros lucros obtidos pelos mercados financeiros, que se apropriaram, dessa forma, de uma anuidade. Os mercados financeiros exercem, por conseguinte, o biopoder.



“A democracia está morta exatamente no momento que tem início a parábola do capitalismo cognitivo”

 


IHU On-Line - Neste contexto, que importância tem o neoliberalismo como fundamento da financeirização?


Andrea Fumagalli - O pensamento neoliberal fundamenta-se no conceito de neutralidade da moeda e na suposição da perfeita competição nos mercados financeiros. Na verdade, os mercados financeiros não são imparciais e neutros, mas expressão de uma hierarquia bem precisa: longe de serem concorrenciais, escondem uma pirâmide que vê, na parte superior, poucos operadores financeiros controlando mais de 65% de fluxos globais e, na base, uma miríade de pequenos investidores e operadores desempenhando uma função passiva. Tal estrutura permite que poucas empresas tenham capacidade de atingir e afetar a dinâmica do mercado. As agências de rating (amiúde em conluio com as financeiras) ratificam, de modo instrumental, decisões oligárquicas, tomadas de tempos em tempos.


Com tal farsa, o pensamento neoliberal tenta fazer passar como objetiva, neutra e naturalmente dada, uma estrutura de poder que, ao contrário, objetiva favorecer uma distribuição que vai dos mais pobres para os mais ricos.


IHU On-Line - Quais são os espaços e os limites da democracia neste cenário? Que novas formas políticas surgem como resistência e confronto?


Andrea Fumagalli - No mesmo momento em que as hierarquias do mercado ditarem as escolhas da política econômica, e o próprio mercado estabelecer as regras das relações humano-sociais, a democracia, entendida como processo de decisão resultante de um princípio dialético, está morta. A democracia está morta exatamente no momento que tem início a parábola do capitalismo cognitivo.

IHU On-Line - Vale a pena analisar esta predominância da economia sobre a política como elemento explicativo da desconfiança da política e da apatia dos eleitores? Por quê?


Andrea Fumagalli - A desconfiança da "política" surge no exato momento em que ela se torna uma caixa vazia, que ratifica decisões tomadas em outros lugares. É consequência, não causa, da prevalência do poder econômico sobre o poder político e sobre o direito.


IHU On-Line - Como entender que governos de esquerda, como no Brasil, Bolívia e Equador, professem um modelo de desenvolvimento não sustentável, ignorando as terras indígenas com a construção de barragens e estradas, por exemplo?


Andrea Fumagalli - As compatibilidades econômicas e a subsunção da vida e da natureza são alheias às diferenças entre "direita" e "esquerda", enquanto normas garantem um processo de acumulação originária, da qual, junto à exploração e à comercialização da vida, o processo de valorização não pode prescindir. No limite, se houver alguma diferença entre direita e esquerda, elas dirão respeito não à esfera das modalidades de acumulação, mas à esfera da distribuição. Uma lei como o Bolsa Família, por exemplo, dificilmente teria sido promulgada por um governo de direita.


IHU On-Line - De que modo se pode falar de outra economia, num contexto marcado pela hegemonia do mercado financeirizado?


Andrea Fumagalli - Pode-se falar de "outra economia", se esta outra economia não só puder exercitar o poder de decisão sobre como produzir, o que produzir e de que modo produzir, mas, propedeuticamente, tiver autonomia de decisão, não sujeita às restrições e ao comando da financeira. E, para chegar a essa autonomia decisional (que, por exemplo, a Grécia não pode exercer, apesar de Syriza ter conquistado poder decisional), é necessário autonomia, do ponto de vista do circuito monetário-financeiro. Para isto, então, é necessário construir um circuito monetário alternativo, complementar e não substitutivo do tradicional, submetido ao comando da Troika, emitindo, sob controle democrático, uma moeda paralela, utilizável para produção de valor de uso interno, de trabalho e de impostos. Chamamos esta moeda complementar de Moeda Social!

 


“O nível de entropia da produção atual é tal, que o globo terrestre corre o risco de transformações climáticas irreversíveis”

IHU On-Line - No interior de uma companhia capturada pelo dispositivo financeirizado, como analisa as críticas do Papa Francisco à globalização da indiferença e o lançamento da encíclica Laudato Si’, que prega uma ecologia integral, em termos ambiental, econômico e social?


Andrea Fumagalli - Acredito que seja um convite à governança capitalística em grau de levar a sério os vínculos do ecossistema, que agora, em termos físicos, foram alcançados. O nível de entropia da produção atual é tal, que o globo terrestre corre o risco de transformações climáticas irreversíveis.


IHU On-Line – Em entrevista à IHU On-Line, em 2010, você disse que um dos principais efeitos do biocapitalismo sobre o trabalho é o controle das faculdades cognitivas do ser humano, e não apenas o disciplinamento do corpo. Quais são os impactos desta realidade para a autonomia e para a subjetividade dos contemporâneos?


Andrea Fumagalli - Este acompanhamento, que hoje chamaríamos de "subsunção da vida", é realizado através de três mecanismos principais: precariedade (envolvendo chantagem), dívida (que implica dependência e culpabilidade) e competição individual (que implica tendência ao reconhecimento social e ao mérito, em detrimento dos outros). Todos convergem em direção a um comportamento autointeressado e a uma ruptura dos laços sociais, como também à criação de um consenso passivo tal para garantir o poder existente e impotencializar quem luta por um mundo melhor.


IHU On-Line - Em que medida este controle das faculdades cognitivas torna-se trabalho precário e de sujeição do trabalhador?


Andrea Fumagalli - Por meio da chantagem, da dívida, da (parcial) lobotomia cerebral, da resignação.


Por Márcia Junges / Tradução: Ramiro Mincato

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  • A financeirização da vida. Revista IHU On-Line, Nº. 468
  • Por que não defender o default e o uso multitudinário do default?. Revista IHU on-Line, Nº. 372
  • Os impactos da financeirização sobre o sujeito. revista IHU On-Line, Nº. 343
  • Biocapitalismo e trabalho. Novas formas de exploração e novas possibilidades de emancipação. Revista IHU On-Line, Nº. 327
  • O capitalismo cognitivo e a financeirização da economia. Crise e horizontes. Revista IHU On-Line, Nº. 301

  • Fonte: IHU

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