PICICA: "Quando “hierarquias do
mercado ditarem escolhas da política econômica e o próprio mercado
estabelecer as regras das relações humano-sociais, a democracia,
entendida como processo de decisão resultante de um princípio dialético,
está morta”, adverte economista italiano"
A morte da democracia e a farsa neoliberal da neutralidade da moeda. Entrevista especial com Andrea Fumagalli
Quando “hierarquias do
mercado ditarem escolhas da política econômica e o próprio mercado
estabelecer as regras das relações humano-sociais, a democracia,
entendida como processo de decisão resultante de um princípio dialético,
está morta”, adverte economista italiano
Foto: direitoagesn.blogspot.com |
Andrea Fumagalli (foto
abaixo) é Doutor em Economia Política, professor no Departamento de
Economia Política e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e
Comércio da Università di Pavia, Itália. Seus temas de interesse são
teoria macroeconômica, teoria do circuito monetário; economia da
inovação e da indústria, flexibilidade do mercado de trabalho e mutação
do capitalismo contemporâneo: o paradigma do capitalismo cognitivo,
entre outros.
Dentre seus vários livros publicados, citamos: Il lavoro. Nuovo e vecchio sfruttamento (Milão: Punto Rosso, 2006), Bioeconomia e capitalismo cognitivo. Verso un nuovo paradigma di accumulazione (Roma: Carocci Editore, 2007) e La crisi economica globale (Verona: Ombre corte, 2009).
Em 2010 Fumagalli participou com uma conferência do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, quando falou sobre A financeirização como forma de biopoder.
Na próxima semana, dia 23-09-2015 o economista profere a conferência Bioeconomia e capitalismo cognitivo, dentro da programação do V
Colóquio Latino-Americano de Biopolítica | III Colóquio Internacional
de Biopolítica e Educação | XVII Simpósio Internacional IHU. Saberes e
Práticas na Constituição dos Sujeitos na Contemporaneidade.
Confira a entrevista.
Foto: wikimedia.org |
Andrea Fumagalli - O atual paradigma de acumulação chama-se "capitalismo cognitivo". Conforme Carlo Vercellone, "o termo capitalismo
designa aquelas variáveis fundamentais do sistema capitalista que
permanecem, mesmo transformando-se: em particular, a preponderância do
lucro e da relação salarial ou, mais precisamente, as diferentes formas
de trabalho dependente, dais quais se extrai a mais-valia; o atributo
cognitivo evidencia a nova natureza do trabalho, as
fontes de valorização e a estrutura da propriedade, sobre as quais se
funda o processo de acumulação e das contradições que esta mutação
gera".
A centralidade das economias
de aprendizagem e do trabalho em rede, típicas do capitalismo
cognitivo, vai sendo questionada no início do novo milênio, na sequência
do rebentamento da bolha especulativa da Net-Economy,
em março de 2000. O novo paradigma cognitivo não é capaz de evitar
sozinho a instabilidade do sistema socioeconômico que o caracteriza. É
necessário injetar nova liquidez nos mercados financeiros.
A capacidade de os mercados financeiros
gerarem "valor", na verdade, depende do desenvolvimento de "convenções"
(bolhas especulativas), capazes de criar expectativas tendencialmente
homogêneas, que empurram os principais operadores financeiros a se
concentrarem em determinados tipos de atividades financeiras. Nos anos
1990, de fato, foi a Net-Economy, na década de 2000 a
atração veio do desenvolvimento dos mercados asiáticos (a China entrando
na OMC, em dezembro de 2001) e imobiliário.
Hoje a tendência é concentrar-se na manutenção do welfare europeu. Independentemente do tipo de acordo dominante, o capitalismo contemporâneo
está constantemente procurando novas áreas sociais e vitais, onde
devorar e mercantilizar, até interessar-se, crescentemente, nas que são
as faculdades vitais dos seres humanos. É o que, nos últimos anos,
chamou-se de bioeconomia e biocapitalismo. Podemos, então, propor a
junção do capitalismo cognitivo com a bioeconomia: “capitalismo biocognitivo” é a definição terminológica do capitalismo contemporâneo.
“A polarização das rendas aumenta o risco de insolvência das dívidas, que estão na base do crescimento da mesma base financeira, e diminui o salário médio” |
IHU On-Line - Por que a crise
financeira, enfrentada em diversos países, é uma crise de governança
financeira do biopoder atual? A partir deste cenário, em que medida se
pode dizer que a financeirização atinge todas as áreas de nossas vidas?
Quais são as implicações fundamentais?
Andrea Fumagalli - Os mercados financeiros são o coração batendo, o conhecimento do cérebro, as atividades relacionais, o sistema nervoso. O capitalismo biocognitivo
é um corpo único, no qual não é possível separar a esfera do "real" da
esfera "financeira"; a esfera produtiva, da esfera improdutiva; o tempo
de trabalho, do tempo de vida; e a produção, da reprodução e do consumo.
Em geral, a financeirização
marca a transição final do dinheiro-mercadoria para o dinheiro-símbolo.
Com a desmaterialização total do dinheiro (após o colapso de Bretton Woods,
em 1971, e do fim da paridade fixa dólar-ouro), os mercados financeiros
definiram convenções sociais e hierárquicas capazes de fixar, em pouco
tempo, o valor da moeda. E, ao mesmo tempo, permitem que se mantenham
abertas as relações de débito e crédito, contanto que haja confiança
suficiente nos operadores.
Os mercados financeiros, portanto, fornecem o lubrificante para o processo de acumulação: no sistema capitalista, no entanto, não existe acumulação sem endividamento.
Não é por acaso que, dos anos 1990 em diante, proveem o financiamento
das atividades de acumulação: a liquidez atraída pelos mercados
financeiros premia a reestruturação da produção voltada a explorar os
conhecimentos e os controles dos espaços externos da empresa.
Em segundo lugar, na presença de mais-valia, os mercados financeiros desempenham, no sistema econômico, o mesmo papel que no capitalismo fordista-industrial era desempenhado pelo multiplicador keynesiano
(ativado pelos gastos deficitários). No entanto - ao contrário do
clássico multiplicador keynesiano -, o novo multiplicador financeiro
leva a uma redistribuição distorcida da renda. Para que este
multiplicador seja operacional (>1) requer-se que a base financeira
(ou seja, a extensão dos mercados financeiros) esteja constantemente em
aumento, e que os ganhos de capital acumulados sejam,
em média, superiores à perda do salário mediano. Por outro lado, a
polarização das rendas aumenta o risco de insolvência das dívidas, que estão na base do crescimento da mesma base financeira, e diminui o salário médio. Daqui resulta que o biocapitalismo cognitivo é estruturalmente instável.
Quando o lucro vira renda
Em terceiro lugar, os mercados financeiros, canalizando de forma forçada parte crescente da renda do trabalho
(liquidação e previdência, além das rendas que, através do Estado
social, se traduzem em instituições de tutela da saúde e da educação
pública), substituem, assim, o Estado como segurador social. Deste ponto
de vista, eles representam a privatização da esfera reprodutiva da
vida.
Finalmente, os mercados financeiros são o
lugar onde se fixa hoje a valorização capitalista, ou seja, o local da
medição da exploração da cooperação social e do intelecto geral através
da dinâmica de valores de mercado. O lucro é
transformado, assim, em renda (cf. Tese 3), e os mercados financeiros
tornam-se o lugar da determinação do valor-trabalho, que é transformado
em valor-financeiro, que não é senão a expressão subjetiva de futuros
lucros obtidos pelos mercados financeiros, que se apropriaram, dessa
forma, de uma anuidade. Os mercados financeiros exercem, por conseguinte, o biopoder.
“A democracia está morta exatamente no momento que tem início a parábola do capitalismo cognitivo” |
IHU On-Line - Neste contexto, que importância tem o neoliberalismo como fundamento da financeirização?
Andrea Fumagalli - O pensamento neoliberal
fundamenta-se no conceito de neutralidade da moeda e na suposição da
perfeita competição nos mercados financeiros. Na verdade, os mercados
financeiros não são imparciais e neutros, mas expressão de uma hierarquia
bem precisa: longe de serem concorrenciais, escondem uma pirâmide que
vê, na parte superior, poucos operadores financeiros controlando mais de
65% de fluxos globais e, na base, uma miríade de pequenos investidores e
operadores desempenhando uma função passiva. Tal estrutura permite que
poucas empresas tenham capacidade de atingir e afetar a dinâmica do mercado.
As agências de rating (amiúde em conluio com as financeiras) ratificam,
de modo instrumental, decisões oligárquicas, tomadas de tempos em
tempos.
Com tal farsa, o pensamento neoliberal
tenta fazer passar como objetiva, neutra e naturalmente dada, uma
estrutura de poder que, ao contrário, objetiva favorecer uma
distribuição que vai dos mais pobres para os mais ricos.
IHU On-Line - Quais são os
espaços e os limites da democracia neste cenário? Que novas formas
políticas surgem como resistência e confronto?
Andrea Fumagalli - No mesmo momento em que as hierarquias do mercado
ditarem as escolhas da política econômica, e o próprio mercado
estabelecer as regras das relações humano-sociais, a democracia,
entendida como processo de decisão resultante de um princípio dialético,
está morta. A democracia está morta exatamente no momento que tem início a parábola do capitalismo cognitivo.
IHU On-Line - Vale a pena
analisar esta predominância da economia sobre a política como elemento
explicativo da desconfiança da política e da apatia dos eleitores? Por
quê?
Andrea Fumagalli - A
desconfiança da "política" surge no exato momento em que ela se torna
uma caixa vazia, que ratifica decisões tomadas em outros lugares. É
consequência, não causa, da prevalência do poder econômico sobre o poder político e sobre o direito.
IHU On-Line - Como entender que
governos de esquerda, como no Brasil, Bolívia e Equador, professem um
modelo de desenvolvimento não sustentável, ignorando as terras indígenas
com a construção de barragens e estradas, por exemplo?
Andrea Fumagalli - As
compatibilidades econômicas e a subsunção da vida e da natureza são
alheias às diferenças entre "direita" e "esquerda", enquanto normas
garantem um processo de acumulação originária, da qual,
junto à exploração e à comercialização da vida, o processo de
valorização não pode prescindir. No limite, se houver alguma diferença
entre direita e esquerda, elas dirão respeito não à esfera das modalidades de acumulação, mas à esfera da distribuição. Uma lei como o Bolsa Família, por exemplo, dificilmente teria sido promulgada por um governo de direita.
IHU On-Line - De que modo se pode falar de outra economia, num contexto marcado pela hegemonia do mercado financeirizado?
Andrea Fumagalli - Pode-se falar de "outra economia", se esta outra economia não só puder exercitar o poder de decisão
sobre como produzir, o que produzir e de que modo produzir, mas,
propedeuticamente, tiver autonomia de decisão, não sujeita às restrições
e ao comando da financeira. E, para chegar a essa autonomia decisional (que, por exemplo, a Grécia não pode exercer, apesar de Syriza
ter conquistado poder decisional), é necessário autonomia, do ponto de
vista do circuito monetário-financeiro. Para isto, então, é necessário
construir um circuito monetário alternativo, complementar e não
substitutivo do tradicional, submetido ao comando da Troika,
emitindo, sob controle democrático, uma moeda paralela, utilizável para
produção de valor de uso interno, de trabalho e de impostos. Chamamos
esta moeda complementar de Moeda Social!
“O nível de entropia da produção atual é tal, que o globo terrestre corre o risco de transformações climáticas irreversíveis” |
IHU On-Line - No interior de uma
companhia capturada pelo dispositivo financeirizado, como analisa as
críticas do Papa Francisco à globalização da indiferença e o lançamento
da encíclica Laudato Si’, que prega uma ecologia integral, em termos
ambiental, econômico e social?
Andrea Fumagalli - Acredito que seja um convite à governança capitalística em grau de levar a sério os vínculos do ecossistema,
que agora, em termos físicos, foram alcançados. O nível de entropia da
produção atual é tal, que o globo terrestre corre o risco de transformações climáticas irreversíveis.
IHU On-Line – Em entrevista à IHU On-Line,
em 2010, você disse que um dos principais efeitos do biocapitalismo
sobre o trabalho é o controle das faculdades cognitivas do ser humano, e
não apenas o disciplinamento do corpo. Quais são os impactos desta
realidade para a autonomia e para a subjetividade dos contemporâneos?
Andrea Fumagalli - Este acompanhamento, que hoje chamaríamos de "subsunção da vida",
é realizado através de três mecanismos principais: precariedade
(envolvendo chantagem), dívida (que implica dependência e culpabilidade)
e competição individual (que implica tendência ao reconhecimento social
e ao mérito, em detrimento dos outros). Todos convergem em direção a um
comportamento autointeressado e a uma ruptura dos laços sociais, como
também à criação de um consenso passivo tal para garantir o poder
existente e impotencializar quem luta por um mundo melhor.
IHU On-Line - Em que medida este controle das faculdades cognitivas torna-se trabalho precário e de sujeição do trabalhador?
Andrea Fumagalli - Por meio da chantagem, da dívida, da (parcial) lobotomia cerebral, da resignação.
Por Márcia Junges / Tradução: Ramiro Mincato
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Fonte: IHU
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