PICICA: "É estarrecedor que mais de 30 anos após o início da redemocratização, o Estado
se mostre tão inapto na hora de lidar com manifestações contrárias
àquilo que ele propõe. Ora, é natural, desejável e faz parte do jogo
democrático que as pessoas protestem e reivindiquem direitos.
Ao ofender a garantia de manifestação desses cidadãos, reprimindo-os com violência, o Estado – que é quem primeiro deveria cumprir a ordem jurídica – a contraria, marginalizando-se, ou seja, agindo à margem da lei."
Um Estado marginal e sem educação
"Ao longo de 2015, vimos um Estado que é liberal e democrático no discurso, mas de exceção nas formas de conduzir as relações com a comunidade", escreve Pedro Estevam Serrano, em artigo publicado por CartaCapital, 15-12-2015.
Eis o artigo.
O ano de 2015, marcado
pelo avanço de frentes que jogam pelo retrocesso de direitos e contra a
democracia, vai encerrando-se com cenas deploráveis de violência
praticada pelo aparato policial do Estado contra estudantes que reagiram à proposta do governador paulista de fechar escolas, sob pretexto de reorganizar a gestão.
Em abril, professores paranaenses em
greve foram tratados com a mesma truculência, sendo duramente reprimidos
pela polícia militar, durante manifestações contrárias a um projeto do
governo estadual decidido, a exemplo do que ocorreu em São Paulo, de cima para baixo, sem qualquer diálogo com a categoria.
Mais do que episódios lamentáveis e emblemáticos do descaso para com a educação pública
em nosso país, são situações que revelam uma vocação cada vez maior do
Estado de se marginalizar em suas relações com a cidadania.
Na prática, vimos funcionar ao longo deste ano, em diversas ocasiões, um Estado que é liberal e democrático no discurso, mas de exceção nas formas de conduzir as relações com a comunidade.
É estarrecedor que mais de 30 anos após o início da redemocratização, o Estado
se mostre tão inapto na hora de lidar com manifestações contrárias
àquilo que ele propõe. Ora, é natural, desejável e faz parte do jogo
democrático que as pessoas protestem e reivindiquem direitos.
Ao ofender a garantia de manifestação desses cidadãos, reprimindo-os com violência, o Estado – que é quem primeiro deveria cumprir a ordem jurídica – a contraria, marginalizando-se, ou seja, agindo à margem da lei.
Esse despreparo, sobretudo do aparato
policial, que não é meramente acidental, se traduz em cenas impensáveis,
como as que assistimos nas últimas semanas. É preciso que fique claro
para a sociedade que policiais que apontam armas para estudantes ou
aprisionam quem quer com eles dialogar não estão simplesmente “cumprindo
seu dever”.
É preciso despi-los da qualidade de agentes do Estado
e enxergar o que verdadeiramente são – marginais armados, usando da
violência para coagir cidadãos que estão exercendo seus direitos. Não
devemos enxergar na farda a legitimidade para esse tipo de abordagem,
pois ela não autoriza ninguém a cometer crime.
Se alguém cumpria deveres – e exercia
cidadania – nas cenas descritas, eram os estudantes em luta por aquilo
que, em qualquer sociedade minimamente civilizada, todos entendem como
direito fundamental: o acesso pleno à educação.
Aliás, a tática de ocupação usada por
esses jovens para forçar o governo a dialogar e recuar foi alentadora,
pois demonstra da parte deles não só uma disposição para lutar por esse
direito, mas também coerência, já que o fechamento de escolas em um país
tão carente de educação como o nosso é absolutamente injustificável. O
que se espera é que as escolas melhorem, que a educação seja efetiva, e
não mais sucateada.
As repressões criminosas a trabalhadores
da educação e a estudantes pelo aparato policial estatal figuram, sem
nenhuma dúvida, como os episódios mais sombrios deste ano, pois
escancaram a transmutação do Estado de Direito num Estado de exceção,
criminoso, que exerce a soberania de forma bruta e que não enxerga o
cidadão como detentor de direitos, mas apenas de deveres e obrigações.
Por outro lado, a reação desses jovens,
pertencentes a uma geração muitas vezes desacreditada, restabelece um
equilíbrio muito bem-vindo, pois se de um lado estamos muito distantes
de vivenciar a democracia de forma plena, de outro, essa juventude
renova, com sua criatividade e espírito de luta, a esperança de que a
truculência e o despotismo estatal não serão tolerados.
Como dizem esses mesmos jovens em suas interações nas redes sociais, #NãoPassarão.
E que não passe mesmo, em 2016, nenhuma forma de discriminação, de
intolerância, de desrespeito às garantias constitucionais e de
perseguição.
Fonte: IHU
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