PICICA: "“O Brasil vive uma turbulência inacabável”. Essa é a situação do cenário político brasileiro conforme a avaliação do professor e pesquisador Moysés Pinto Neto, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Para ele, as circunstâncias são tão sérias que esse período de
instabilidade tem chances de se estender ao longo do ano de 2016.
Segundo Neto, para se
compreender o contexto político de 2015 é fundamental recuperar os
acontecimentos mais marcantes dos anos de 2013 e 2014. O pesquisador
aponta que “2013 gerou uma hiperpolitização para todos
os lados da sociedade, liberou forças incontroláveis que até agora estão
produzindo constantemente efeitos”. Já em 2014
destaca-se a neutralização das forças emergentes no ano anterior.
“Aquilo que era múltiplo, caótico, selvagem em 2013, foi gradualmente
domesticado na bipolarização tradicional. Essa polarização neutralizou o
aspecto caótico e as composições heterogêneas de 2013, formando duas
zonas demarcadas pelas identidades convencionais de esquerda e direita, PT e PSDB”, ressalta.
A partir das conjunturas desses dois anos anteriores é que Neto
formula sua análise deste ano e os prognósticos para o futuro. Para o
professor, características presentes em ambos os períodos citados
coexistem em 2015. “Temos uma diagonal entre 2013 e 2014
ocupando um espaço que se curva em três possibilidades: manutenção das
lutas entre linhas paralelas; neutralização de 2013 por 2014 na mesma
operação eleitoral, com a bipolarização transformando os polos de 2013;
devoração recíproca das lutas, numa espécie de destituinte geral
brasileira”, aponta.
O pesquisador também chama a atenção para o crescente desequilíbrio do sistema político, provocado pela intervenção independente do Ministério Público e do Poder Judiciário,
com o apoio popular dos protestos contra a corrupção. Essa fragilidade é
um aspecto importante da cena política brasileira, a qual poderá mudar
seus arranjos daqui em diante. “A Operação Lava Jato
atingiu o coração de boa parte do financiamento eleitoral e da maneira
mafiosa com que estavam operando os partidos políticos e desestabilizou
os arranjos da "governabilidade" montados nos últimos 20 anos, fazendo
com que as vísceras (negociatas, favores, desvios etc.) se fizessem
expostas a olho nu”, explica."
A política brasileira com as vísceras expostas. Entrevista especial com Moysés Pinto Neto
“Tudo aquilo que ficava
escondido nos bastidores passa ao palco principal. A figura de Eduardo
Cunha é o emblema dessa mudança”, constata o professor.
Fonte: questoesrelevantes.files.wordpress.com |
Segundo Neto, para se
compreender o contexto político de 2015 é fundamental recuperar os
acontecimentos mais marcantes dos anos de 2013 e 2014. O pesquisador
aponta que “2013 gerou uma hiperpolitização para todos
os lados da sociedade, liberou forças incontroláveis que até agora estão
produzindo constantemente efeitos”. Já em 2014
destaca-se a neutralização das forças emergentes no ano anterior.
“Aquilo que era múltiplo, caótico, selvagem em 2013, foi gradualmente
domesticado na bipolarização tradicional. Essa polarização neutralizou o
aspecto caótico e as composições heterogêneas de 2013, formando duas
zonas demarcadas pelas identidades convencionais de esquerda e direita, PT e PSDB”, ressalta.
A partir das conjunturas desses dois anos anteriores é que Neto
formula sua análise deste ano e os prognósticos para o futuro. Para o
professor, características presentes em ambos os períodos citados
coexistem em 2015. “Temos uma diagonal entre 2013 e 2014
ocupando um espaço que se curva em três possibilidades: manutenção das
lutas entre linhas paralelas; neutralização de 2013 por 2014 na mesma
operação eleitoral, com a bipolarização transformando os polos de 2013;
devoração recíproca das lutas, numa espécie de destituinte geral
brasileira”, aponta.
O pesquisador também chama a atenção para o crescente desequilíbrio do sistema político, provocado pela intervenção independente do Ministério Público e do Poder Judiciário,
com o apoio popular dos protestos contra a corrupção. Essa fragilidade é
um aspecto importante da cena política brasileira, a qual poderá mudar
seus arranjos daqui em diante. “A Operação Lava Jato
atingiu o coração de boa parte do financiamento eleitoral e da maneira
mafiosa com que estavam operando os partidos políticos e desestabilizou
os arranjos da "governabilidade" montados nos últimos 20 anos, fazendo
com que as vísceras (negociatas, favores, desvios etc.) se fizessem
expostas a olho nu”, explica.
Moysés Pinto Neto
é graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul - UFRGS, mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e doutor em Filosofia
pela mesma instituição. Atualmente leciona no curso de Direito da
Universidade Luterana do Brasil - Ulbra Canoas.
Confira a entrevista.
Foto: linkedin.com |
Moysés Pinto Neto - O
Brasil vive uma turbulência inacabável. Não acreditava ser possível que
esse momento pudesse ser prorrogado por tanto tempo, mas agora já ameaça
com muita plausibilidade levar junto consigo o próximo ano, 2016. Nesse cenário, é possível perceber que a política brasileira passou por dois acontecimentos fundamentais, 2013 e 2014.
2013 representou o ano
em que a rua ingressou na cena, em que os atores perceberam que podiam
pressionar o sistema político desde fora e causar ruído na sua
operacionalidade. A vitória em torno da redução do preço da passagem e
as multidões
nas ruas provocaram um efeito de contágio e integração inédita entre
rua e redes digitais. As táticas dos movimentos como ocupações,
mobilização com hashtags, autogestão, registro disseminado na web,
liderança distribuída, entre outras, se tornaram praticamente uma nova
gramática, sendo apropriadas inclusive por movimentos situados mais à
direita. A apatia e passividade com que se costumava descrever a
sociedade brasileira já não faz mais sentido. O ano de 2013 gerou uma hiperpolitização para todos os lados da sociedade, liberou forças incontroláveis que até agora estão produzindo constantemente efeitos.
2014, por sua vez, foi
uma operação "ortopédica" que tratou de neutralizar essas energias.
Aquilo que era múltiplo, caótico, selvagem em 2013, mesclando luta
contra corrupção com ocupação das Casas Legislativas, crítica da Copa
com defesa da educação pública, ou seja, criando um espaço intersticial
entre os diversos segmentos da sociedade que envolvia demandas por
serviço público e qualidade de vida, foi gradualmente domesticado na
bipolarização tradicional. Essa polarização neutralizou o aspecto
caótico e as composições heterogêneas de 2013, formando duas zonas
demarcadas pelas identidades convencionais de esquerda e direita, PT e PSDB.
“Petralhas” X “Coxinhas”
A demarcação mais estrita, definida
especialmente após as eleições, tem como caricatura a luta entre
"petralhas e coxinhas", segundo os apelidos negativos que os próprios
campos atribuem ao seu rival. Trata-se do campo governista e petista, de
um lado, e da oposição de direita afinada com o liberalismo e o conservadorismo, representada de maneira mais ou menos caricata pelos ideólogos da revista Veja,
de outro. Mas essa bipolaridade arrasta consigo um campo auxiliar, que
fica no espectro das bordas a separar um e outro polo, tornando esses
dois extremos zonas que abrangem também uma periferia, em especial do
lado dos governistas. Essa periferia, na esquerda, é a do "apoio
crítico", composto de pessoas que veem de maneira negativa o Governo
Federal, mas não estão suficientemente convictas para aderir a uma
ruptura total. Assim, sempre que o Governo é emparedado de maneira
realmente ameaçadora, a condição de oposição é substituída pelo apoio,
operando com a lógica do "menos pior". Esses foram os segmentos da disputa política construídos a partir das eleições de 2014
e que permanecem em plena ação. Por isso, sem conversarmos claramente
sobre o que aconteceu em 2014, é impossível entender o Brasil de 2015.
Como as manobras produzidas nas eleições foram realmente desonestas em
muitos aspectos, muitos têm tentado fingir que nada aconteceu,
recalcando esse acontecimento. Mas sabemos que as coisas não estão
iguais desde então.
2013 e 2014 reeditados em 2015
2013 e 2014 reeditados em 2015
Uma das características estranhas - para
não dizer monstruosas - do cenário de 2015 é repetir 2013 e 2014 ao
mesmo tempo. Temos, de um lado, as ocupações das escolas paulistas
com milhares de elementos em comum com 2013, desde a resistência à
violência policial até a auto-organização, a pauta genérica e
transversal da educação no lugar que ocupou o transporte público, a
virada na cobertura midiática e o apoio nas redes sociais, entre outras
coisas. Essa disputa teria condições de ocupar o mesmo espaço que 2013
manteve, por sua generalidade, plasticidade e capacidade de mobilização
de afetos políticos. De outro lado, a tentativa de mais uma vez
neutralizar isso na bipolaridade, agora com a pauta do golpe,
revalidando o apoio crítico, a identidade de esquerda e o fantasma do golpe de 64 enquanto lembrança de uma direita que não aceita governos populares.
Assim, temos uma diagonal entre 2013 e 2014 ocupando um espaço que se curva em três possibilidades:
1) manutenção das lutas entre linhas paralelas;
2) neutralização de 2013 por 2014 na mesma operação eleitoral, com a bipolarização transformando os polos de 2013;
3) devoração recíproca das lutas, numa espécie de destituinte geral brasileira.
“O Brasil vive uma turbulência inacabável” |
Nenhuma delas está isenta de aporias. A destituinte geral, por exemplo, passa por uma espécie de golpe de Estado
que pode ser simplesmente restauração de um velho núcleo político,
substituindo a nova oligarquia que se formou a partir de 2002. As linhas
paralelas podem manter a luta dos estudantes como paroquial, perdendo a oportunidade de ressurgimento de uma energia política fundamental para a democracia brasileira. A bipolarização, por fim, faz ressurgir o "apoio crítico" enquanto defesa do "menos pior",
movendo-se a partir de uma pauta quase totalmente reduzida a um
fantasma identitário (a esquerda, o vermelho) enquanto, na prática,
temos um governo totalmente entregue a forças conservadoras e que,
quando teve capital político, o usou para um projeto hoje fortemente
rechaçado por boa parte da esquerda (o "neodesenvolvimentismo").
Outra característica do momento é que,
depois de 2013, o sistema gradualmente foi caindo aos poucos em um
desequilíbrio estrutural e jogando suas "vísceras" para fora. A
intervenção independente do Ministério Público e Poder Judiciário,
politicamente amparada pelos protestos contra a corrupção, provocou um
efeito desestabilizador sobre o sistema. Tudo aquilo que ficava
escondido nos bastidores passa ao palco principal. A figura de Eduardo Cunha
é o emblema dessa mudança. Ele representa o quadro mais espúrio,
medíocre, tacanho e aproveitador da política. É uma típica figura que se
alimentava de bastidores, vampirizando cargos de segundo escalão a
partir das "porteiras fechadas" nos ministérios e dos grandes acordões
do "Centrão". Ou seja, alguém que se beneficiava do que Marcos Nobre
chama "cultura peemedebista", a fisiologia escancarada que neutraliza a
política. Ao se expor, Cunha trouxe à tona um setor muito forte, mas
que operava por baixo dos panos no Congresso Nacional, o que
paradoxalmente mostra que, ao revelar sua força, ele estava na realidade
a perdendo.
A Operação Lava Jato
atingiu o coração de boa parte do financiamento eleitoral e da maneira
mafiosa com que estavam operando os partidos políticos e desestabilizou
os arranjos da "governabilidade" montados nos últimos 20 anos, fazendo
com que as vísceras (negociatas, favores, desvios etc.) se fizessem
expostas a olho nu.
IHU On-Line – Quais são as
forças políticas envolvidas neste cenário de disputas que se formou em
torno do processo de impeachment da presidente Dilma e da denúncia de
Eduardo Cunha ao Conselho de Ética da Câmara? Quais relações são
possíveis de estabelecer entre esses dois processos?
Moysés Pinto Neto - A relação me parece bastante nítida: o impeachment era a última carta na manga de que dispunha Eduardo Cunha.
É uma cortina de fumaça de um parlamentar que não hesita em usar todos
os recursos possíveis para se manter no poder, exatamente como um
mafioso. Ao mesmo tempo, ao usar o impeachment, Cunha mostra que está
realmente enfraquecido, pois - como um bom jogador que é - sabe que usar
o maior trunfo é sinal de que o jogador não dispõe de mais nenhum
recurso. A ameaça de impeachment era a carta mais poderosa que detinha e
que impossibilitou o governo de agir desde o início do ano, fazendo com
que 2015 seja marcado como um ano de paralisia total do Executivo.
Em termos de base social, grosso modo o impeachment é apoiado pelos setores mais conservadores da sociedade e o "Fora Cunha"
pela esquerda. Porém essa é uma imagem que pode reforçar a ideia de
polarização desenhada em 2014 sem traduzir com fidelidade o quadro
político. O fato de ser contra Cunha não coloca toda a
esquerda, automaticamente, no governismo ou apoio crítico, assim como
tampouco os conservadores são necessariamente favoráveis a Cunha.
Liberais moderados têm rechaçado o impeachment. E a própria esquerda
poderia, em outro cenário, estar pedindo a cabeça do governo diante do
estelionato eleitoral. A cena é mais matizada, especialmente porque há
setores da esquerda que discordam do impeachment, mas não estão
dispostos a defender o governo contra o que quer que seja. Governistas e
uma parte do "apoio crítico" irão censurar esse ponto de vista,
acusando a esquerda de omissa por tolerar um golpe de Estado, mas, a
rigor, que solidariedade a Alckmin, por exemplo, teria a
esquerda se a situação fosse idêntica? Por mais que - a meu ver
corretamente - muitos tenham colocado a questão em termos de legalidade,
a questão sempre será mais política que jurídica.
Por fim, está claro que o mercado financeiro está contra Dilma. A aposta neodesenvolvimentista, ao minar os fundamentos da "ortodoxia" liberal que haviam sido adotados por Lula, desestabilizou as bases do pacto construído pelo petismo com o mercado desde a Carta aos Brasileiros
de 2002 que culminou com a conquista do "grau de investimento" (muito
comemorada, por sinal). A decisão tem a impressão digital de Dilma. Por
isso, o mercado está pressionando pela saída da Presidenta. Como
sustentei em outra entrevista aqui,
ao contrário do que imaginavam os defensores do neodesenvolvimentismo,
não há mais separação clara entre burguesia industrial e mercado
financeiro.
A aposta no pacto "nacionalista" não
passou de uma injeção de capital sem repasse pelo empresariado, que
fechou as torneiras do investimento para pressionar a saída do PT
neste ano, agravando a crise econômica. Há também uma ofensiva no mundo
todo, e em especial na América do Sul, do neoliberalismo extremado.
Depois de ampliar o mercado consumidor e consolidar, pela via da
parceria entre Estado e oligopólios da construção civil, uma
espacialização aceleracionista da sociedade de consumo, trata-se agora
de retirar essa escada e potencializar lucros, restringindo a democracia
em nome da plutocracia do "investimento". Mais uma vez, estamos diante
do dilema ainda sem solução do "como sair do neoliberalismo",
compartilhado hoje, por exemplo, em vários países da Europa, em especial a Grécia.
“O impeachment não tem fundamentação jurídica consistente e, por isso, configura um golpe sobre a mandatária” |
IHU On-Line – De que maneira
avalia o embasamento jurídico do pedido de impeachment e, em outra via,
as disputas políticas envolvidas neste processo?
Moysés Pinto Neto - O impeachment não tem fundamentação jurídica consistente e, por isso, configura um golpe sobre a mandatária. Todas as alegações não passam de construções ad hoc com o intuito de fundamentar a decisão - tomada a priori - de derrubar o governo. É um golpismo crasso.
É preciso, contudo, desmitificar um
pouco essa questão jurídica. O Direito é uma atividade interpretativa e
por isso raramente estamos diante de "casos fáceis" com soluções simples
e unívocas. A maior parte dos problemas jurídicos apresenta
divergências interpretativas e por isso proliferam decisões diferentes
sobre o mesmo tema baseadas em fundamentos diversos. Portanto, a
construção de uma peça jurídica com uma fundamentação mínima
pró-impeachment não chega a ser algo impossível, pois sempre haverá
formas de construir argumentos a partir da vagueza e ambiguidade da lei.
E haverá advogados para os dois lados, como em geral acontece na quase
totalidade dos casos jurídicos. Não há, portanto, como apresentar uma
solução definitiva, ninguém vai pura e simplesmente fechar a questão. O
jurídico tem padrões mais estáveis que o político, mas isso não
significa que esteja além das divergências.
Judicialização da política
O efeito dessa disputa jurídica provavelmente cairá no grau máximo de judicialização da política, com o Supremo Tribunal Federal resolvendo o imbróglio da crise política.
Veja-se que nesse sentido o STF tem decidido vários casos polêmicos com
uma base mais ou menos solta, apontando uma direção política voltada
para a efetividade da Constituição ou os direitos
humanos, mas sem a estrutura silogística que teoricamente garantiria uma
mínima certeza em torno do Direito. Esse fenômeno foi construído nos
últimos 15 anos, a partir da mudança na composição do colegiado, mas
fundamentalmente pela recepção do discurso constitucionalista maturado
por uma década nas faculdades e livros até atingir a aplicação nos
tribunais. A posição central do Supremo Tribunal Federal hoje em dia
reflete esse novo ethos de juridificação da política que caracterizou o
pós-Segunda Guerra Mundial na Europa e se introduziu no
Brasil a partir da Constituição de 1988, capilarizando-se do direito
constitucional para a legislação infraconstitucional até finalmente
chegar ao STF.
Curiosamente, Eduardo Cunha
é um dos que representa as forças reativas do Congresso Nacional,
atuando sempre como espécie de "Presidente do Sindicato" dos
congressistas que reivindica não apenas todo tipo de benesse e vantagem
financeira, mas também o poder de dar a palavra final em questões
políticas contra a suposta "invasão de competência" que o STF estaria
promovendo.
Infelizmente, o debate em torno dessa judicialização tem sido infantil no Brasil. O caso de Joaquim Barbosa é um exemplo disso. No primeiro momento, ao confrontar o Ministro Gilmar Mendes, Barbosa tornou-se um ídolo dos governistas. Mais tarde, durante o processo do Mensalão,
passou a ser demonizado e acusado de oportunismo político, tendo sido
lançadas suspeitas de que iria concorrer a cargo eletivo e por isso
conduzia de forma equivocada o processo. A análise é lamentavelmente
partidária e não reflete o que aconteceu. De fato, a intervenção de
Joaquim Barbosa foi bastante despropositada em múltiplos aspectos
durante o julgamento do Mensalão, mas suas teses e posições estão
totalmente alinhadas com a posição político-criminal que denominamos de
"esquerda punitiva", consistente na ideia de que é preciso relativizar
direitos e garantias em nome do avanço de pautas ligadas aos direitos
humanos e ao crime dos poderosos. A visão é bastante controversa, mas
nem por isso significa uma oposição direta ao PT (como muitas vezes é o caso do Ministro Gilmar Mendes, nem sempre comedido na exposição das suas opiniões políticas).
O mesmo acontece agora com o Juiz Moro na Operação Lava-Jato.
A leitura partidária esconde a disputa que realmente está por trás
entre esquerda punitiva e garantismo, travada já no âmbito da política
criminal e com suas especificidades em relação à disputa entre petistas e
tucanos. É necessário que a análise política passe por uma transposição
de questões quando a disputa se dá no cenário judiciário, entendendo
que não se trata do mesmo campo ou sistema que o político-partidário.
Outra opção é que o Senado arquive o processo e encerre a questão. Há alguns meses parecia que a proposta de Renan Calheiros chamada "Agenda Brasil"
seria o suficiente para aplacar a crise política e econômica, o que
acabou se mostrando falso. No entanto, está claro que há um clima de
parceria com o Governo que pode salvar o mandato de Dilma.
IHU On-Line – Qual seria o papel
de Temer nesse processo? Como interpretar o posicionamento do
vice-presidente nesse cenário e a carta que ele enviou à presidente
Dilma?
Moysés Pinto Neto - Temer
é mais um exemplo das vísceras do sistema aparecendo. Apesar de ter
ocupado vários cargos importantes, é uma figura das sombras, muito
semelhante ao que foi Marco Maciel durante o Governo FHC.
Durante os últimos anos, acabou sendo alvo de desprezo pelo Governo e
expressou sua mágoa na Carta. Do ponto de vista estratégico, como disse
algumas vezes Idelber Avelar, Temer foi mais um dos erros políticos incríveis do Governo Dilma. Constitucionalista, não foi escutado sobre a proposta de Constituinte Exclusiva
que durou um dia em 2013. Bom articulador político, nunca foi tratado
com confiança quando desempenhava a função, terminando por renunciar a
ela.
De Vice-presidente discreto passou a opção política. Sua aposta é ser um novo Itamar Franco: perfil baixo, conciliador, fazendo um governo de transição para um novo cenário político pós-PT. Abastece-se da antipatia do sistema político e do mercado ao Governo Dilma, mas depende de uma conjunção, que acredito improvável, de forças para que o impeachment logre sucesso.
“Temer é mais um exemplo das vísceras do sistema aparecendo” |
IHU On-Line – É possível ter
algum prognóstico sobre como ficará a agenda política do governo durante
o andamento do processo de impeachment? Quais seriam os pontos
principais?
Moysés Pinto Neto - O impeachment
é a pior e melhor notícia possível para o Governo. A pior, por razões
óbvias: escancara sua insustentabilidade, exige esforço em momento de
fragilidade e ameaça a continuidade do projeto. Mas também é a melhor,
porque desde o início de 2015 o processo político está totalmente
paralisado e não há qualquer indício de que irá se resolver. Dessa
maneira, ao colocar para fora o impeachment finalmente Cunha
livra o Governo de enfrentá-lo da forma fantasmática, que é a mais
difícil, para transformar em uma luta clara e frontal que poderá
escancarar o PSDB, por exemplo, como golpista.
Lembro que, no início do ano, o PSDB recusou o impeachment por meio de lideranças como Aloísio Nunes e Fernando Henrique Cardoso.
Agora, perdendo o jogo, pagará um custo alto por ter aderido à tese.
Por essa razão, o melhor para o Governo é mesmo enfrentar logo essa
ameaça e, se cair, é porque não haveria mesmo qualquer chance de
governar. Se, por outro lado, vencer, poderá começar finalmente seu
mandato. A agenda enquanto isso estará totalmente paralisada.
IHU On-Line – Que reflexos esse
processo de impeachment pode gerar no andamento do cenário político
brasileiro a partir desse acontecimento?
Moysés Pinto Neto - Não
sou muito otimista a respeito. Na hipótese que considero mais remota,
vingando o golpe, estaremos diante de uma restauração oligárquica no
poder. Não se trata aqui do "que se vayan todos" argentino, porque o
corte será seletivo e as velhas forças retornarão para a cabeça da
chapa, de onde nunca estiveram distantes. O golpe não é uma revolução
nem uma destituinte por sair de cima para cima. É um ajuste no sistema político
tramado internamente pelas forças plutocráticas que neutralizam a
democracia no Brasil das quais o PT hoje em dia faz parte no consórcio.
O PT, com Dilma,
tornou-se disfuncional, faz uma má gestão do dinheiro público e má
acomodação dos interesses. Muitos, inclusive eu, costumam chamar Dilma
de "tecnocrata" baseados na ideia vendida por Lula de
que ela seria uma "gerente". Aos poucos, no entanto, está ficando claro
que Dilma é voluntarista, autoritária e com pouco respeito aos fatos. A
imagem que esse Governo deixará marcada é a da arrogância. Logo, é
preciso retirá-la da cabeça e colocar alguém mais confiável, mais
afinado com os interesses das corporações, oligopólios, do grande
empresariado e dos velhos e novos oligarcas da política. Esse processo é
todo reacionário.
Na hipótese inversa, que considero mais
provável, tampouco vejo grandes possibilidades de avanços. Tudo indica
que, vencendo essa guerra, o Governo irá repetir os erros políticos que
marcaram seus cinco primeiros anos. Vai culpar a esquerda
pelo seu enfraquecimento, exigir uma lealdade absoluta e enquanto isso
governar para os setores mais fortes implorando o seu apoio. Seu
diagnóstico não será que a resistência foi possível porque ainda há uma
base social mínima, mas sim que a estratégia de concessões ainda
funciona. Continuará cedendo e perdendo espaço até o fim dos quatro
anos, destratando sua base e cobrando, por meio dos seus porta-vozes
truculentos, a fidelidade identitária da esquerda. Continuará sendo,
para usar a expressão de Vladimir Safatle,
um "holograma" da esquerda, depois de ter entregue anéis, braços, corpo
e finalmente a alma. Nesse sentido, a dificuldade de mobilização que
perpassa a defesa do governo está ligada ao próprio desprezo que o
governo teve ao longo dos últimos cinco anos por todos os seus críticos.
Mais uma vez, a imagem da arrogância é a preponderante.
Os presságios não agradam
Seja como for, o cenário é desolador. Acontecendo o golpe,
veremos uma restauração das velhas oligarquias e a derrota de um
fantasma da esquerda - o holograma petista -, mergulhando provavelmente
na ditadura do mercado disfarçada de democracia. Se o governo
vencer, continuará ignorando todas as críticas, entregando mais espaço
aos setores fisiológicos, latifundiários e grandes oligopólios e
buscando a sobrevivência até a próxima eleição. Não há qualquer
indicativo, por exemplo, de que nos próximos anos daremos uma forte
resposta aos problemas ecológicos vindouros e já presentes ou faremos
grandes reformas estruturais que o país precisa, como na educação, na
distribuição de terra e no espaço urbano. O timing - que foi em 2013 - já passou. Demoraremos muitos anos ainda para abrir novamente essa janela.
“Quando o governo anuncia o ajuste, desmoraliza-se totalmente” |
IHU On-Line – Quais são as
estratégias das diferentes forças políticas envolvidas no processo de
pedido de impeachment? Como elas têm se articulado desde o início do ano
até este momento, em que o pedido de impeachment foi protocolado?
Moysés Pinto Neto - Não
está muito clara ainda a estratégia da oposição, salvo que pretende
prorrogar a decisão para o ano que vem a fim de conquistar uma base
maior. A primeira chamada para a rua falhou. Resta saber se até ano que
vem haverá mais manifestações, se ganharão fôlego e energia ou cairão no vazio. A tendência decrescente que se impôs desde março de 2015 continua em ação.
No outro lado, as coisas são complicadas. Há uma diferença substancial em relação a 2014 que não permitiu a pura repetição em 2015: o estelionato eleitoral. Nossa memória não é tão curta a ponto de não lembrarmos tudo que foi dito naquela ocasião. O "ajuste fiscal"
foi a principal pauta de debate e a identidade de esquerda "contra o
neoliberalismo" foi o principal motor para o governismo e depois o apoio
crítico. Em seguida, no primeiro gesto do seu governo, Dilma
nomeia um Ministério ridículo, com oligarcas de todos os vernizes, e
anuncia o ajuste como se nada tivesse acontecido. Por mais que haja
indivíduos dispostos a aceitar tudo que vem do PT, é impossível não perceber aí um problema grave.
Marina e Aécio foram demonizados por sua relação com o mesmo programa que Dilma
aplicou. Durante suas entrevistas, Dilma e outros integrantes do alto
escalão ridicularizavam as críticas à política econômica, defendendo a
"contabilidade criativa" como perfeitamente cabível em relação aos
"ortodoxos" e menosprezando a crítica ecológica chamando-a de "minorias
com projetos ideológicos irreais". Quando o governo anuncia o ajuste,
desmoraliza-se totalmente. Aqueles que viam o neodesenvolvimentismo como única alternativa possível ao neoliberalismo,
fazendo vista grossa às drásticas consequências ambientais, perderam
seu único argumento. Muitas dessas pessoas, hoje, abandonaram o Governo e
não estão dispostas a defender. A base social minguou.
Além disso, existe uma parcela da esquerda
que não está minimamente disposta a apoiar o governo em nenhum caso,
mesmo no impeachment. Há muitas pessoas revoltadas com a sequência de
erros políticos desencadeada pelo governo e com os inúmeros avisos que
foram dados quanto a isso. É preciso dizer que, no ápice da sua
popularidade, a arrogância petista foi impressionante. O cinismo
governista defendia explicitamente a Realpolitik das negociatas pela governabilidade, considerando infantis as críticas ao modus operandi adotado.
As advertências de que o PMDB
e outros partidos da base estariam apenas sugando recursos para, em um
futuro próximo, com a popularidade baixa tomar o barco foram
simplesmente ignoradas. Hoje está claro que o governo está levando uma
goleada desses profissionais da chantagem, quando acreditava,
ingenuamente, que poderia os manipular. Muitas pessoas cansaram de
defender o governo e aderiram a uma posição de indiferença ao seu
futuro, partindo para outros projetos. Aliás, isso pode ser visto na
migração de várias lideranças petistas para outros partidos ou até na
manobra mais comedida de Tarso Genro de montar uma "frente de esquerda" defendendo expressamente que o PT não ocupe a cabeça.
Finalmente, ainda nessa esquerda antigovernista existe uma parcela que está contra o projeto neodesenvolvimentista
como um todo. Esse dado é importante porque não coloca a divergência
apenas no campo das ditas "contradições" - entendidas, na definição
governista, como "concessões do PT à direita" -, mas no
projeto. Quando o Governo tinha capital político de 80% de aprovação,
seu projeto foi turbinar oligopólios econômicos nacional e
internacionalmente com financiamento e estímulos públicos, promovendo
obras faraônicas a fim de gerar um "desenvolvimento" que se baseia
exclusivamente em emprego e renda, com total indiferença à configuração
das cidades, qualidade de vida, riscos ecológicos, populações
tradicionais atingidas, movimentos sociais e direitos humanos, entre
outras coisas. Ou seja, não é verdade que o Governo sempre esteve
resistindo ao longo dos últimos 13 anos. Ele teve oportunidade de
implementar suas próprias ideias e muitas delas são absolutamente
inóspitas para muitos, a ponto de gerar a ruptura total.
IHU On-Line - Que avaliação faz da comissão eleita para levar o impeachment para frente?
Moysés Pinto Neto - Uma legítima palhaçada. O que Eduardo Cunha
tem feito na Câmara dos Deputados é um escárnio completo. Ele pratica
prevaricação diariamente. Não por acaso jornais insuspeitos de
governismo, como o Globo ou a Folha,
publicaram editoriais pedindo sua saída. É incrível como a truculência, a
violência e a intimidação têm prevalecido na Câmara, mostrando o quanto
instituições podem se tornar frágeis quando cooptadas por máfias. É o
patrimonialismo mais crasso, escrachado.
“É incrível como a truculência, a violência e a intimidação têm prevalecido na Câmara” |
IHU On-Line – Vislumbra a
possibilidade de um novo pacto federativo a partir do pedido de
impeachment? Que personagem estaria no centro desse novo pacto?
Moysés Pinto Neto - Não vejo a mínima chance.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Moysés Pinto Neto - Nossa única saída para a crise é a superação do cinismo e do niilismo a partir da invenção e experimentação. Precisamos escapar da cilada da Realpolitik,
das análises que reduzem a política a disputas de gabinete, para abrir
novamente o espaço do sonho, da utopia. O mundo vive uma grande
restauração do neoliberalismo, agora sustentado pela religião aceleracionista do Vale do Silício, em relação às fissuras que surgiram na última década.
Foram muitas as tentativas de superar
por meio das eleições os limites das plutocracias contemporâneas, mas
todas naufragaram na falta de um projeto consistente que pudesse servir
de alternativa. Falta ousadia, já que as comparações entre modelos se
dão nos mesmos tabuleiros, usando os mesmos critérios. Superar o
conformismo com sonhos, para além da resistência, abrindo novos
caminhos. Para além dos índices econômicos vazios, escapar da base
sociocultural e socioambiental da nossa forma de vida.
A bipolarização atual é uma domesticação da política. O ano de 2013 liberou
forças selvagens na sociedade, forças que ultrapassam as disputas
pequenas pelo poder palaciano, que extrapolam as categorias identitárias
da direita e da esquerda tradicional. Aliás, pode-se dizer que o
tradicional recalque dos conflitos brasileiros não está mais funcionando. A própria violência urbana, nas múltiplas formas simbólicas que tem tomado, é sinal disso.
Vivemos cada vez mais esmagados pela máquina biopolítica
de moer pessoas por meio do trabalho, turbinadas com psicofármacos para
melhorar o desempenho, massacradas por exigências de performance e
consumo irreais que abastecem um sistema a girar sob o signo da
obsolescência programada e da degradação ambiental; do espaço urbano
segregado e camarotizado, do espaço do campo transformado em deserto das
monoculturas; enfim, de um mundo e uma vida cada vez mais inóspitos e
impossíveis de viver bem, controlados por tecnologias que são usadas,
dentre as múltiplas possibilidades, para controle e vigilância
estendendo irracionalmente o ciclo do trabalho e consumo.
Essas são as questões do nosso tempo que o sistema político
não responde. E que ficam esmagadas, soterradas, por esse eterno debate
dos mesmos contra os mesmos, esse jogo de dança das cadeiras que,
conquanto não possa ser simplesmente ignorado, não toca nem de perto a
urgência das questões que nosso tempo demanda.
Por Leslie Chaves e Patricia Fachin
Fonte: IHU
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