PICICA: "Existe uma lenda segundo a qual a cultura
brasileira teria alcançado seu auge – não só de politização, mas também
de criatividade estética – durante a ditadura empresarial-militar de
1964-85. Os comentários do grande dramaturgo Augusto Boal e de Chico
Buarque de Holanda, em programa de Roberto D’Avila em 1986, refutam essa
“tese”."
Augusto Boal e Chico Buarque: retomar o projeto nacional
Existe uma lenda segundo a qual a cultura
brasileira teria alcançado seu auge – não só de politização, mas também
de criatividade estética – durante a ditadura empresarial-militar de
1964-85. Os comentários do grande dramaturgo Augusto Boal e de Chico
Buarque de Holanda, em programa de Roberto D’Avila em 1986, refutam essa
“tese” (ver vídeo acima, de 9:34 até 14:13).
Boal e Chico recordam que a produção
artística brasileira alcançara um momento de efervescência
criativa justamente ao longo do período interrompido pelo golpe,
acompanhando a pujança da organização popular e das lutas sociais de
massas naquele momento: movimentos sindical, estudantil, camponês, de
mulheres, negro (sobre o movimento negro brasileiro na década de 1950,
ver aqui). Boal
enfatiza – e Chico corrobora – que não se tratava de um florescimento
social, artístico e político aleatório, descoordenado, mas em torno de
um projeto nacional, do sonho, da luta e do engajamento criativo e
militante na construção de um novo Brasil. “Era um período em que
nós todos acreditávamos extremamente no Brasil. Nós talvez ingenuamente
acreditávamos num projeto nacional. Nós todos estávamos unificados,
tínhamos aquele elã vital extraordinário de construir, de criar de todas
as formas“.
O golpe de 1964 inaugurou um período que
ia muito além do autoritarismo estritamente político – tortura, censura,
cassações de mandatos e de partidos, etc. Não se compreende o golpe
(articulado pelos Estados Unidos em acordo sobretudo com segmentos do
grande empresariado brasileiro, como mostram arquivos
dos próprios norte-americanos) se não tivermos em mente aquilo que Boal
e Chico colocam no centro da questão: seu objetivo principal
foi interromper um projeto nacional que começava a tomar corpo e ganhar
autonomia cultural, intelectual, política e econômica. Uma nação se
levantava, mediante o crescimento da organização popular em múltiplas
frentes (como fruto de longo processo de acúmulo histórico), correntes
artísticas e escolas de pensamento que ganhavam vida aqui (idem), a
política externa não-alinhada e medidas que governos como o de Jango e o
de Brizola (na Presidência da República e no governo do Rio Grande do
Sul, respectivamente), respondendo às demandas e pressões das ruas,
começavam a tomar, como reforma agrária, controle da remessa de lucros
das empresas transnacionais, nacionalização de empresas, etc.
Nos últimos anos, em especial após a irrupção de Junho de 2013 e o período de interregno
em que nos encontramos, muitos de nós temos oscilado entre
o vanguardismo isolado, narcisista, e a resistência mais localizada.
É extraordinário que as mais diversas lutas ganhem força, seja para
resistir ao aumento de tarifas de transporte coletivo, ao fechamento de
escolas, a proposições legislativas como a da redução da maioridade
penal ou do fim da “pílula do dia seguinte”, que precarizam ainda mais a
vida das mulheres, negros/as, jovens, do povo trabalhador. Porém, como
sair de um conjunto de ações defensivas pontuais e passar à ofensiva, a
avanços que nos levem a outro patamar de garantia real da democracia, da
soberania popular, de conquistas sociais e direitos humanos?
Chico Buarque é preciso no diagnóstico
sobre a desorientação da esquerda no momento de retomada da democracia:
dizia ele, na entrevista citada, que diante da incapacidade de articular
um projeto de nação, restava a busca por ser “vanguarda da vanguarda”,
“esquerda da esquerda”. A saída, novamente ecoando Chico, não é tentar
fazer o impossível “retorno” às décadas de 1950 e 60 – o país mudou
muito, e o mundo também -, mas voltar a sonhar com outro Brasil, no
qual as amplas maiorias oprimidas ganhem papel de atores principais. Não
devemos nos acomodar à falta de alternativas, nem nos
contentarmos com retórica das “micro resistências” desarticuladas.
Para que nós todos/as, enquanto povo,
nos reencontremos, nos reconectemos e nos assumamos como
sujeitos coletivos de nosso destino, necessitamos de uma narrativa de
leitura da nossa história a contrapelo e de um projeto alternativo de
país. Do contrário, permaneceremos ilhados, perdidos entre grandes
abstrações e pequenas resistências. Retomemos aquele elã, aquele impulso
vital de que falava Boal.
PS: já que falei de Chico Buarque,
fecho o post com homenagem ao fato político mais relevante de 2015. Essa
geração de adolescentes não é apenas o “futuro” do Brasil. É o que há
de melhor no presente!
PS-2: segue transcrição do que dizem Augusto Boal e Chico Buarque na passagem referida:
Augusto Boal:
“Chico, há muitíssimos anos atrás, houve aqui no Brasil uma explosão cultural. Houve um florescimento simultâneo de todas as artes. Eu me refiro ao período que vai a partir de 1955 até o começo da década de 1960. Foi quando apareceu a Bossa Nova. Mas a Bossa Nova não veio sozinha, veio também com o Cinema Novo. E o Cinema Novo veio junto também com a nova dramaturgia brasileira, com o Teatro Novo. Houve um florescimento das artes plásticas, da arquitetura, muito mais do que antes e mais do que nunca. Esse período não aconteceu por acaso. Era um período em que nós todos acreditávamos extremamente no Brasil. Nós talvez ingenuamente acreditávamos num projeto nacional. Nós todos estávamos unificados, tínhamos aquele elã vital extraordinário de construir, de criar de todas as formas.Depois veio a ditadura. E uma das funções da ditadura era acabar com tudo o que existisse de vivo no Brasil, o que felizmente não conseguiu. O outro objetivo da ditadura era vender o Brasil, isso conseguiu. Mas de qualquer maneira durante esse período o pessoal de teatro, de cinema, de todas as artes continuou muito unido lutando contra o inimigo comum que era o regime ditatorial.Agora acabou a ditadura, voltamos à democracia. E o que eu constato é que nós não temos mais nem aquela unidade ferrenha da luta contra a ditadura nem aquele elã vital extraordinário daquela época desenvolvimentista, nacionalista. Então eu pergunto a você, eu quase que te peço uma resposta, o que você acha que nós todos juntos podemos fazer para construir uma coisa maior do que cada um de nós. Pra que nós todos voltemos a ser caros amigos lutando por alguma coisa que valha a pena”.
Chico Buarque:
“Eu acho que você tem toda razão, Boal. Agora, o que proporcionou essa união, essa euforia não foi um movimento nosso, de artistas. Foi uma coisa que vinha vindo, e que foi abortada violentamente pelo golpe de 1964. Ali já começam as desuniões. É claro que no sofrimento todo mundo procura se unir, e as picuinhas e intrigas ficam em segundo plano. Depois das experiências todas, tentativas da guerrilha urbana, diversos grupos, as esquerdas divididas em zilhões de grupelhos, e os intelectuais também. (…) Depois, a partir de um certo relaxamento da censura, da tortura política (porque a outra continua), da volta dos exilados, voltam todos os conflitos que passaram a existir a partir do golpe. Eu não estou tão desiludido assim porque eu acho que esse é um preço que a gente está pagando por erros cometidos de todas as partes, inclusive da nossa parte. Nesse sentido, foram vinte anos perdidos, a gente vai ter que recuperar. A gente vai agora começar a tentar tomar fôlego de novo – nós não só artistas, todo mundo, o Brasil como país – pra ver se consegue chegar de novo a um ponto… É claro que não vai falar ‘vamos voltar a 1955, 1956, 1960 e tal’, mas vamos voltar a acreditar no país, e a partir de um projeto nacional, vamos começar a trabalhar junto para alguma coisa. Enquanto não existe um projeto, fica cada um batalhando pra um lado: eu quero fazer a vanguarda da vanguarda, a esquerda da esquerda…”
Fonte: BRASIL EM 5
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