PICICA: "Depois de passar o segundo capítulo da
Arqueologia do Saber procurando definir o discurso e suas
características, Foucault se vê na obrigação de estabelecer uma definição de enunciado.
Este é o objetivo da seção “Definir o enunciado”, do terceiro capítulo d’A Arqueologia do Saber.
Se, em História da Loucura, O Nascimento
da Clínica e As Palavras e as Coisas, o filósofo percorreu diferentes
caminhos, talvez até modificando as linhas de sua pesquisa a cada novo
objeto de estudo, o perigo era não ser possível descrever um conceito de
enunciado que conseguisse cobrir toda sua produção arqueológica.
Perceber aquilo que o enunciado não é
traça o início dos esforços de Foucault para definir o enunciado. A
primeiro momento, é possível perceber no enunciado uma forma
individualizável, como uma forma última que se relaciona com seus
semelhantes: como um átomo do discurso, nas palavras do autor. Mas essa
percepção primeira não é segura. O problema vem agora.
Ao identificar o enunciado como a redução
última do discurso, é necessário rebater com outros conceitos de mesmo
nível. Foucault apresenta três interpretações para verificar se o
conceito de enunciado coincide com: 1) a compreensão dos lógicos sobre a
proposição; 2) dos gramáticos sobre a frase e; 3) dos filósofos
analistas a respeito do speech act."
Qual a definição de enunciado para Foucault? – Arqueologia do Saber
Da série “A Arqueologia do Saber“.
Depois de passar o segundo capítulo da
Arqueologia do Saber procurando definir o discurso e suas
características, Foucault se vê na obrigação de estabelecer uma definição de enunciado.
Este é o objetivo da seção “Definir o enunciado”, do terceiro capítulo d’A Arqueologia do Saber.
Se, em História da Loucura, O Nascimento
da Clínica e As Palavras e as Coisas, o filósofo percorreu diferentes
caminhos, talvez até modificando as linhas de sua pesquisa a cada novo
objeto de estudo, o perigo era não ser possível descrever um conceito de
enunciado que conseguisse cobrir toda sua produção arqueológica.
Perceber aquilo que o enunciado não é
traça o início dos esforços de Foucault para definir o enunciado. A
primeiro momento, é possível perceber no enunciado uma forma
individualizável, como uma forma última que se relaciona com seus
semelhantes: como um átomo do discurso, nas palavras do autor. Mas essa
percepção primeira não é segura. O problema vem agora.
Ao identificar o enunciado como a redução
última do discurso, é necessário rebater com outros conceitos de mesmo
nível. Foucault apresenta três interpretações para verificar se o
conceito de enunciado coincide com: 1) a compreensão dos lógicos sobre a
proposição; 2) dos gramáticos sobre a frase e; 3) dos filósofos
analistas a respeito do speech act.
Definição do enunciado: o que não é
1) Enunciado não coincide com proposição. E isso não é difícil de entender, afinal, você pode ter dois enunciados diferentes na mesma proposição.
Foucault explica que,
sob as mesmas possibilidades de utilização e mesmo conjunto de leis de
construção, dois enunciados diferentes são “indiscerníveis do ponto de
vista lógico”. São eles, “Ninguém ouviu” e “é verdade que ninguém ouviu”.
Se encontramos a fórmula “Ninguém ouviu” na primeira linha de um romance, sabe-se, até segunda ordem, que se trata de uma constatação feita pelo autor, seja por um personagem (em voz alta ou sob a forma de um monólogo interior); se encontramos a segunda formulação “É verdade que ninguém ouviu”, só podemos estar em um jogo de enunciados que constituiu um monólogo interior, uma discussão muda, uma constatação consigo mesmo, ou um fragmento de diálogo[1].
2) O enunciado não pode ser uma frase.
Também não é difícil entender porque o enunciado não pode ser definido
como uma frase: a estrutura linguística das frases pede uma certa
rigidez que alguns enunciados não têm, por exemplo, “quando encontramos
em uma gramática latina uma série de palavras dispostas em coluna – amo, amas, amat -, não lidamos com uma frase, mas com o enunciado das diferentes pessoais do indicativo do presente do verbo amare”[2].
Quando se olha o
teclado com os dígitos QWERT, se vê cinco letras, não uma frase. Ao
mesmo tempo, dentro de um manual de datilografia, QWERT passa a ser o
enunciado da sequência de letras de um teclado.
Indo além, uma tabela
periódica, uma equação matemática e uma árvore genealógica são recheadas
de enunciados, mas dificilmente encontra-se-á frases. Isso porque a
frase tem uma inflexibilidade que aprisiona o enunciado. Este, por sua
vez, precisa de mais movimentação para atuar no discurso.
3) O enunciado não se define como um ato ilocutório – ou um speech act. O
ato ilocutório não se limita ao ato material da fala, da escrita, não
se foca na intenção do sujeito nem na eficácia de suas palavras. O ato
ilocutório não é nada antes ou depois do enunciado, mas aquilo que se
produz através da própria enunciação de um enunciado em particular (e
não qualquer outro).
Parece ser a descrição
perfeita do enunciado que Foucault procurava, no entanto, existe uma
diferença: frequentemente, os atos ilocutórios são compostos por mais de
um enunciado.
Poderíamos dizer que,
ao longo do ato ilocutório, vários outros são formados através da
diferença dos enunciados, como numa prece, em que há há vários
enunciados e – poderia se dizer – vários atos ilocutórios, mas isso já
seria definir o ato ilocutório a partir do enunciado e não o inverso.
A partir dessas três críticas, não
conseguimos definir uma estrutura para o enunciado e esse é o ponto
central. O enunciado não é uma forma fixa ou um conteúdo imutável.
Foucault afirma que o limiar do enunciado é o limiar do signo, portanto,
para que haja enunciado, deve haver signo. Mas onde? Mas como?
A língua é cheia de signos, seria ela um
grande enunciado? A língua estaria no mesmo plano que o enunciado?
Nunca, já que é possível trocar ou eliminar enunciados sem prejudicar a
língua, já que esta só existe a título de “sistema de construção para
enunciados possíveis”[3].
Mas a existência material do signo já
traduz-se em enunciado? As antigas letras de chumbo para impressão de
livros, eram enunciados? Não, elas eram instrumentos para a construção
de enunciados e, diferente do manual de datilografia, elas não foram
enunciadas, ditas, não explicam nem demonstram nada, são somente barras
de chumbo com uma forma específica.
A função de existência
Mas então, que é o enunciado?
Mais que um elemento entre outros, mais que um recorte demarcável em um certo nível de análise, trata-se, antes, de uma função que se exerce verticalmente, em relação às diversas unidades, e que permite dizer, a propósito de uma série de signos, se elas estão aí presente ou não [idem].
É o enunciado que possibilita dizer se há
ou não uma frase, uma proposição ou um ato ilocutório. É ele que está –
em um nível diferente dessas unidades – permitindo ou não sua
existência. Continuemos,
O enunciado não é, pois, uma estrutura (isto é, um conjunto de relações entre elementos variáveis, autorizando assim um número talvez infinito de modelos concretos); é uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles “fazem sentido” ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita); é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço [idem].
O enunciado, portanto, não tem uma
unidade material com início e fim, não é exclusivamente material, mas é
também linguístico. Sua presença é indispensável para se dizer se há ou
não frases, atos ilocutórios ou proposições – estes sim, estruturas bem
definidas.
Como função de existência,
necessariamente o enunciado não existe sozinho, mas precisa ser
correlacionados com outros enunciados. Na seção seguinte deste capítulo,
Foucault será detalhista na descrição do enunciado como função de
existência, mas já se pode deduzir que essa função emerge de acordo com
as regras de formação do discurso, as correlações com outros enunciados e
suas funções.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. Definir o Discurso IN: A Arqueologia do Saber. 8ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. Voltar ao texto.
[2] FOUCAULT, Michel. Definir o Discurso…Voltar ao texto.
[3] FOUCAULT, Michel. Definir o Discurso…Voltar ao texto.
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Fonte: COLUNAS TORTAS
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