PICICA: "Num jantar recente, quando vaticinei do alto da minha
ignorância bêbada e conspiratória um futuro sombrio para a política
brasileira, uma senhora me interrompeu com uma frase cujo desespero
denunciava a sua falta de convicção: “Os banqueiros não vão deixar!”.
Fiquei sem palavras. Estávamos falando de política e religião, de modo
que o medo da mulher me levou imediatamente a um paralelismo inusitado:
os necessitados buscam nas igrejas o mesmo que os remunerados nos
bancos. Cada um recorre ao que pode."
Vou ao cinema assistir a Star Wars.
Entre trailers de blockbusters, todos esbanjando super-heróis na luta
contra o apocalipse, é exibido um filme publicitário que discorre, com o
auxílio da voz emocionada de uma atriz conhecida, sobre as boas coisas
da vida, as boas lembranças, o amor, a amizade, os êxitos, os encontros
felizes da vida real contra a impessoalidade virtual da técnica e das
tecnologias. Viro para o amigo ao meu lado e pergunto, confuso: “É
propaganda de quê?” “De banco”, ele responde. “Mas onde é que foi parar o
dinheiro?”.
Até há alguns anos, as propagandas de banco falavam de
investimentos, financiamentos, lucros, poupança, seguros, garantia
financeira para o futuro etc. Por ocasião das últimas eleições
presidenciais, o mesmo banco já tinha produzido uma propaganda exortando
o espírito nacionalista dos brasileiros, também sem falar em dinheiro.
Lembrava a publicidade cívica dos tempos da ditadura militar.
O episódio VII de Star Wars é resultado de um
negócio de bilhões de dólares, acompanhado de uma espetacular campanha
de marketing. Só no primeiro fim de semana, o filme faturou US$ 517
milhões de bilheteria no mundo inteiro. Mas o que o episódio VII exalta
(e muito do seu sucesso vem daí) é a sucata e a reciclagem, a impureza, o
disforme, o humano, o frágil, o velho e o alternativo contra a assepsia
dos fascismos e a desumanização de um mundo regido pela técnica, pelo
desperdício, por leis e interesses autocráticos, inconsequentes e frios
(não para de nevar no planeta do mal, enquanto a jovem heroína torra no
deserto, revirando o lixo para conseguir sobreviver).
Faz tempo que as distopias do cinema americano exaltam o
mundo sujo, irregular, pobre, criativo, caótico, diverso, alternativo e
subterrâneo das resistências democráticas, a república contra a assepsia
inumana do mal. É uma bela autoimagem da democracia contra o ideal
normativo das autocracias fascistas. É certo que não faltará quem veja
aí um maniqueísmo hipócrita, ou no mínimo um imenso oportunismo, já que
essa imagem de diversidade é financiada por bilhões de dólares de uma
indústria que não prima por exaltar a diferença, ainda mais quando ela é
demasiado diferente, estrangeira e precisa de legendas. O mundo está
cheio de contradições, mas não deixa de ser um modo simpático de se
servir do dinheiro para a produção de uma imagem politicamente
interessante do bem, na qual o papel simbólico da reciclagem vem se
tornando cada vez mais central contra os cada vez mais insustentáveis
excessos suicidas do capitalismo.
Nesse sentido, até que poderia haver alguma sintonia entre o
filme e a propaganda do banco que o precede, se ela não seguisse
promovendo uma forma de assepsia, sob o pretexto de mostrar o melhor da
vida. E isso a começar pela ausência de qualquer referência ao dinheiro
(que, afinal, é o produto que ali se vende), agora visto como coisa
suja. Ao contrário do episódio VII de Star Wars, ninguém é
pobre, nem esfarrapado, nem feio nesse mundo do melhor da vida que o
banco selecionou para você antes de dizer que é banco.
Num jantar recente, quando vaticinei do alto da minha
ignorância bêbada e conspiratória um futuro sombrio para a política
brasileira, uma senhora me interrompeu com uma frase cujo desespero
denunciava a sua falta de convicção: “Os banqueiros não vão deixar!”.
Fiquei sem palavras. Estávamos falando de política e religião, de modo
que o medo da mulher me levou imediatamente a um paralelismo inusitado:
os necessitados buscam nas igrejas o mesmo que os remunerados nos
bancos. Cada um recorre ao que pode.
Há muito que a cartilha econômica é a Bíblia dos
remunerados. E, como na Bíblia, há coisas que não se discutem. Algumas
são mais fáceis de entender do que outras. Todo mundo já entendeu, por
exemplo, que o problema do rebaixamento da nota do Brasil pelas agências
de avaliação de risco tem a ver com fatores conjunturais da crise e de
uma política econômica desastrosa: o risco da inflação e do desemprego,
as medidas fiscais que deveriam ter sido tomadas e não foram por razões
de ordem política etc. Um pouco mais difícil é entender a razão pela
qual as mesmas agências, que devem levar em conta as condições
estruturais da economia de um país antes de fazer suas avaliações, não
se interessariam pelo longo prazo. Até outro dia, o país vivia sob a
lógica da impunidade e da corrupção endêmica e ninguém rebaixava nota
nenhuma por causa disso. Será silogismo concluir que o combate à
corrupção faz mal à economia? Basta o imenso sistema de corrupção que
assola a economia brasileira há décadas começar a ruir de forma
espetacular para que se perca a confiança no país? Mas não é um bom
sinal? E não faz o país passar a outro patamar de transparência e
democracia? Ou a leniência em relação à corrupção era a garantia da
estabilidade econômica? Uma coisa não tem nada a ver com a outra? É
preciso parar o processo de denúncia e punição de todos os envolvidos
antes que seja tarde, antes que haja envolvidos demais? Vamos lembrar as
coisas boas da vida?
Bernardo Carvalho
Bernardo Carvalho é escritor e jornalista, autor dos livros Nove noites, O filho da mãe e Reprodução, entre outros.
Fonte: BLOG DO IMS
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