dezembro 16, 2015

Michel Foucault e a justiça popular (COLUNAS TORTAS)

PICICA: "A minha hipótese é que o tribunal não é a expressão natural da justiça popular mas, pelo contrário, tem por função histórica reduzi−la, dominá−la, sufocá−la, reinscrevendo−a no interior de instituições características do aparelho de Estado [Michel Foucault, Sobre a Justiça Popular]"


Michel Foucault e a justiça popular


A minha hipótese é que o tribunal não é a expressão natural da justiça popular mas, pelo contrário, tem por função histórica reduzi−la, dominá−la, sufocá−la, reinscrevendo−a no interior de instituições características do aparelho de Estado [Michel Foucault, Sobre a Justiça Popular]


Foucault por Martine Frank.

Ao discutir com militantes maoistas sobre a instituição de um tribunal popular para julgar as ações policiais na França em Maio de 68, Michel Foucault abre caminho para se visualizar a função derradeira da justiça popular: deixar que as massas façam justiça.


A justiça popular se difere do tribunal popular por não ser um elemento neutro mediador. A verdadeira função do tribunal é recortar a sociedade e mediar as intrigas, fazer o papel de sujeito exterior que entende mais do que os participantes da situação por eles vivida.


É quase como o legislador perfeito proposto por Rousseau no Contrato Social. O legislador é um outro, sua existência é específica,

para descobrir as melhores regras de sociedade que convém às nações, seria necessária uma inteligência superior que visse todas as paixões sem experimentar nenhuma; que, sem relação com a nossa natureza, a conhecesse profundamente, que se dignasse a entender a nossa felicidade, sendo a sua independente de nós [Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social]

Por fim, o legislador é comparável com um deus. Sempre separado do povo, mas profundo entendedor de suas relações. Esta citação de Rousseau, por sua vez, tem relação direta com a discussão da justiça popular em Foucault, já que o nascimento do tribunal aos moldes atuais – ou seja, o nascimento do aparelho judiciário como nós os temos atualmente – se dá através de uma mudança na própria tecnologia de Estado e pela dispersão do poder punitivo entre as instituições, não mais concentrado no monarca.


Durante os século XVII e XVIII, o suplício era a forma espetacular de demonstração do poder imperioso do monarca. No entanto, ainda no século XVIII, o uso do suplício passa a ser visto com olhos de desconfiança. Ele de fato cumpria sua função? Era uma técnica de punição que mantinha o controle nas mãos da monarquia?


Foucault revela – em Vigiar e Punir – que, em diversos momentos, o tratamento dado aos supliciados causava rebeldia da população. O espetáculo da morte era custoso e pouco eficaz, sendo assim, era necessário respeitar a humanidade mínima do sujeito punido.


A tecnologia de poder deixa de ser expressa por impulsos sanguinolentos e intermitentes, que tinham como objeto o corpo do condenado, e passa a ter o fim de administrar os indivíduos detalhadamente, tendo como alvo a sua alma, a modificação de si por dentro. Esta é a emergência da disciplina na sociedade capitalista.

A disciplina e a instituição dos tribunais


O poder disciplinar é […] um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”: ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo [Michel Foucault, Vigiar e Punir].

Não iremos abordar as características específicas da disciplina, mas sua localização histórica. Este é nosso foco, já que é na passagem à sociedade disciplinar que está a crítica de Foucault ao modelo de tribunal popular proposto pelos militantes maoistas.


Não obstante, é necessário entender que a disciplina é uma tecnologia de poder específica do progresso do capitalismo, que tem o corpo dos indivíduos como objeto, já que sua função é docilizá-lo. “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”, diz Foucault em Vigiar e Punir.


A disciplina é aplicada em diversas instituições sociais, como a escola, o exército e as prisões. O corpo dócil do prisioneiro é aquele que contém uma alma modificável, regenerável, este corpo não pode ser abusado em rituais de demonstração bufônica do poder – esta técnica de punição é, assim, abandonada em proveito das penas de restrição da liberdade (conceito de importância do século XVIII adiante, através das revoluções burguesas e em específico, da Revolução Francesa).


Os tribunais, que antes pediam permissão ao monarca para sancionar seus julgamentos, passam a deter o poder que era concentrado no juízo arbitrário da realiza e começam a seguir princípios neutros. O aparelho judiciário se transformou durante toda história, Foucault explica,

Na Idade Média se substituiu um tribunal arbitral (a que se recorria por consentimento mútuo, para por fim a um litígio ou a uma guerra privada e que não era de modo nenhum um organismo permanente de poder) por um conjunto de instituições estáveis, específicas, intervindo de maneira autoritária e dependente do poder político (ou controlado por ele) [Sobre a Justiça Popular].

Este tribunal foi, pouco a pouco, se configurando como parte externa ao poder executivo, até se tornar uma instituição separada. No entanto, não se trata de um modelo universal, mas sim um modelo nascido sob o incentivo de acumular riquezas, pois era um negócio lucrativo manter o aparelho judiciário, e terminar as guerras privadas, que só seriam subjugadas por um órgão centralizado.


O tribunal da Revolução Francesa foi um exemplo de tribunal popular em que, a partir de valores universais, os acusados eram julgados por um sujeito neutro que escutava a defesa e a acusação. Era um tribunal idêntico àqueles que se pretendia superar.


A disciplina se liga aos tribunais por ambos serem partes de uma mesma sociedade em transformação. Não se pode mais usar de trapo o corpo dos súditos, é necessário mantê-los vivos e adestrados para futura exploração – lembremos que a Revolução Industrial aumentou drasticamente a demanda por mão-de-obra na Europa.


O apontamento mais importante de Foucault, para o presente artigo, se refere à instituição do tribunal popular na Comuna de Paris, regidos por conceitos da classe dominante. Não havia justiça popular, mas justiça burguesa,

ora, logo que as execuções começaram em Setembro, homens da Comuna de Paris, ou próximos dela, intervieram e organizaram a cena do tribunal: juízes atrás de uma mesa, representando uma terceira instância entre o povo que grita “vingança” e os acusados que são “culpados” ou “inocentes”; interrogatórios para estabelecer a “verdade” ou obter a “confissão”; deliberação para saber o que é “justo”; instância imposta a todos por via autoritária. Será que não vemos reaparecer aqui o embrião, ainda que frágil, de um aparelho de Estado? A possibilidade de uma opressão de classe? Será que o estabelecimento de uma instância neutra entre o povo e os seus inimigos, susceptível de estabelecer a fronteira entre o verdadeiro e o falso, o culpado e o inocente, o justo e o injusto, não é uma maneira de se opor à justiça popular? Uma maneira de desarmá−la em sua luta real em proveito de uma arbitragem ideal? E por isso que eu me pergunto se o tribunal, em vez de ser uma forma da justiça popular, não é a sua primeira deformação [Michel Foucault, Sobre a Justiça Popular].

Já na Revolução Francesa, Danton – criador dos tribunais – foi decapitado quando passou a não defender os interesses da burguesia.


O tribunal é o órgão que impede a justiça popular. Sua função não é promovê-la, afinal, a constituição do tribunal remonta aos conceitos e às práticas da própria burguesia. Mudar os indivíduos que ocupam cada posição dentro do tribunal não muda a estrutura do tribunal, que permanece sendo a reprodução da sociedade que se pretende acabar.


A justiça popular não pode ser mediada. Ela é fruto da ação do povo.





suplicio justiça popular
Com a despersonalização da punição, os suplícios perderam seu uso. Imagem: A Crucificação de São Pedro, por Baltasar de Echave Ibia.

Justiça popular como justiça do povo

Victor, um dos militantes maoistas, afirma que é necessário perceber o tribunal popular aos moldes das revoluções proletárias. Seu exemplo é a Revolução Chinesa, em que as massas se sublevaram e mataram os déspotas.


Para o militante, num primeiro momento, esta atitude das massas é compreensível, no entanto, após os primeiros passos da revolução, é necessário a organização de um instrumento de unificação das massas contra seus inimigos, corporificado no Exército Vermelho. Por sua vez, este instrumento evitará atos de pura vingança e fundamentará o julgamento.


Não há erros no ponto oferecido por Victor, o tribunal popular instituído através do Exército Vermelho se coloca como um representante das massas, para além, ele de fato age como um representante das massas. Não há mediação, são as massas organizadas fazendo sua justiça.


O problema esquecido por Victor e os outros militantes está na França.


A França não estava em meio a uma revolução aos moldes da China. Pelo contrário, não havia nada que indicasse tal coisa. Foucault, ao entender este fato simples conclui que a instituição de um tribunal popular não seria idêntica aos tribunais coordenados pelo Exército Vermelho, mas estaria mais próxima daqueles exemplificados através da Revolução Francesa ou da Comuna de Paris.


A justiça popular, sendo assim, não poderia tomar existência a partir da instituição de um tribunal. Caius Brandão, em seu artigo A Justiça Popular em Michel Foucault, sintetiza o ponto de vista do filósofo francês e sua análise de como as massas fizeram justiça na história da França,

Na justiça popular existem apenas as massas e seus inimigos. Aqui inexiste um elemento neutro que decide com autoridade. Tão pouco, os oprimidos se valem de uma noção de justiça abstrata e universal, quando decidem punir ou re-educar seus inimigos.Sua decisão tem como base a experiência concreta. Isto é, os danos que sofreram e aforma como foram prejudicados

A justiça tem lado


Brandão ainda argumenta que, partindo do princípio de que não há natureza humana e, portanto, de que não há base para a criação de uma justiça universal, então a justiça é, na verdade, uma posição política.


Ao discutir com Chomsky, Foucault afirma que a guerra não se dá por justiça, mas por poder. Não se luta para ser justo, mas para ganhar. Sendo assim, um grupo social utiliza a justiça como elemento discursivo para universalizar os motivos de sua luta quando, na verdade, sua luta tem como fim objetivo a vitória.


A justiça tem lado. O que significa que a justiça defendida pela burguesa tem como objetivo manter a dominação de classe perpetrada por eles, enquanto a justiça popular visa ser um instrumento de defesa – envenenado e destituído de seu poder quando colocado sob os moldes da justiça burguesa.


É por isso que os militantes maoistas falham em suas análises sobre a possibilidade da formação de um tribunal. Foucault insiste em afirmar a diferença da situação da China revolucionária com a França pós-maio de 68. O “sistema complexo justiça-polícia-prisão” que mantinha o controle na sociedade burguesa estava ainda vigente no país europeu, era necessário dar conta de sua eliminação.


Somente a eliminação do sistema penal como um todo (constituído pelos elementos identificados no parágrafo anterior) abriria espaço para a justiça de fato popular.

As funções do sistema penal


O sistema penal, afirma Foucault, tem historicamente três funções:


1 – obrigar o proletariado a aceitar sua posição. As leis contra mendigos, ociosos e vagabundo – que tiveram espaço desde o fim da Idade Média até o século XVII e eram vigentes no Brasil ainda após a abolição da escravatura – tinham como função obrigar o proletariado a aceitar seu estatuto e suas condições de exploração. Ou o vagabundo limpava os fossos da cidade, ou era preso e submetido a prestar trabalhos forçados;


2 – controle de elementos perigosos. Foi necessário tomar cuidado com elementos extremamente agitados da plebe, indivíduos violentos e, portanto, perigosos. O encarceramento, o isolamento nas colônias e a prisão em manicômios destes potenciais pontas de lança em revoltas populares era papel preponderante do sistema penal;


3 – Mudar o alvo da indignação proletária. Foi o sistema penal que criou a oposição entre as camadas não proletarizadas da plebe e o proletariado. Aos olhos do proletariado, o restante da plebe seria “marginal, perigosa, imoral, ameaçadora para a sociedade inteira, a escória do povo, o rebotalho, a ‘gatunagem'”.


“Trata−se para a burguesia de impor ao proletariado, pela via da legislação penal, da prisão, mas também dos jornais, da ‘literatura’, certas categorias da moral dita ‘universal’ que servirão de barreira ideológica entre ela e a plebe não proletarizada”, explica Foucault.

Isso coloca a justiça popular em uma posição de subversão e reconfiguração da ordem. A tomada da Bastilha não foi só um ímpeto de raiva, mas uma destruição – mesmo que momentânea – do sistema penal. Foucault observa que as revoltas sempre incluem agentes do sistema penal como alvos, além das instituições que presidem. Isso porque o sistema penal age contra o povo,

como tem funcionado o aparelho judiciário e, de uma maneira geral, o sistema penal? Eu respondo: ele sempre funcionou de modo a introduzir contradições no seio do povo. Não quero dizer − isso seria aberrante − que o sistema penal introduziu as contradições fundamentais, mas oponho−me à ideia de o sistema penal ser uma vaga superestrutura. Ele teve um papel constitutivo nas divisões da sociedade atual [Michel Foucault, Sobre a Justiça Popular].

O sistema penal fez com que a transgressão à norma deixasse de ser uma ofensa ao monarca para se tornar uma ofensa à toda sociedade. A citação de Rousseau volta como uma demonstração de que a transgressão passou a ser considerada a quebra do contrato social. A punição foi despersonalizada.


É aí que o crime começa a ser percebido como erro e não como agressão. Como erro feito por um sujeito dentro da sociedade, uma falha para com o restante da sociedade. A punição, sendo assim, deixa de ser vingança do monarca e passa a ser a reparação da sociedade.




justiça popular frança
Bastilha foi um alvo óbvio dos insurretos. Imagem: A Prisão da Bastilha, de Jean-Pierre Houël, 1979.

Por fim

A justiça popular, portanto, deve ser a ferramenta para desmistificar as divisões que o sistema penal causou ao proletariado, o dividindo em diversas camadas de classe, ao mesmo tempo em que desuniversaliza a justiça e a transforma em uma arma para tomar o controle do aparelho estatal (e mantê-lo).


Foucault vislumbra a possibilidade da justiça ser parte de uma estratégia de poder e parte integrante de um tipo de saber, elemento fundamental na constituição de uma nova sociedade, que passe por cima dos aparelhos deixados pela sociedade anterior.
PICICA: ""

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Vídeos complementares

Aqui, você verá a função do juiz para Foucault.


Esta é a discussão de Foucault com Chomsky, sobre a natureza humana.




Fonte: Colunas Tortas

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