PICICA: "A minha hipótese é que o tribunal não é a
expressão natural da justiça popular mas, pelo contrário, tem por
função histórica reduzi−la, dominá−la, sufocá−la, reinscrevendo−a no
interior de instituições características do aparelho de Estado [Michel
Foucault, Sobre a Justiça Popular]"
Michel Foucault e a justiça popular
A minha hipótese é que o tribunal não é a expressão natural da justiça popular mas, pelo contrário, tem por função histórica reduzi−la, dominá−la, sufocá−la, reinscrevendo−a no interior de instituições características do aparelho de Estado [Michel Foucault, Sobre a Justiça Popular]
Ao discutir com militantes maoistas sobre
a instituição de um tribunal popular para julgar as ações policiais na
França em Maio de 68, Michel Foucault abre caminho para se visualizar a função derradeira da justiça popular: deixar que as massas façam justiça.
A justiça popular se difere do tribunal
popular por não ser um elemento neutro mediador. A verdadeira função do
tribunal é recortar a sociedade e mediar as intrigas, fazer o papel de
sujeito exterior que entende mais do que os participantes da situação
por eles vivida.
É quase como o legislador perfeito
proposto por Rousseau no Contrato Social. O legislador é um outro, sua
existência é específica,
para descobrir as melhores regras de sociedade que convém às nações, seria necessária uma inteligência superior que visse todas as paixões sem experimentar nenhuma; que, sem relação com a nossa natureza, a conhecesse profundamente, que se dignasse a entender a nossa felicidade, sendo a sua independente de nós [Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social]
Por fim, o legislador é comparável com um
deus. Sempre separado do povo, mas profundo entendedor de suas
relações. Esta citação de Rousseau, por sua vez, tem relação direta com a
discussão da justiça popular em Foucault, já que o nascimento do
tribunal aos moldes atuais – ou seja, o nascimento do aparelho
judiciário como nós os temos atualmente – se dá através de uma mudança
na própria tecnologia de Estado e pela dispersão do poder punitivo entre
as instituições, não mais concentrado no monarca.
Durante os século XVII e XVIII, o
suplício era a forma espetacular de demonstração do poder imperioso do
monarca. No entanto, ainda no século XVIII, o uso do suplício passa a
ser visto com olhos de desconfiança. Ele de fato cumpria sua função? Era
uma técnica de punição que mantinha o controle nas mãos da monarquia?
Foucault revela – em Vigiar e Punir –
que, em diversos momentos, o tratamento dado aos supliciados causava
rebeldia da população. O espetáculo da morte era custoso e pouco eficaz,
sendo assim, era necessário respeitar a humanidade mínima do sujeito
punido.
A tecnologia de poder deixa de ser
expressa por impulsos sanguinolentos e intermitentes, que tinham como
objeto o corpo do condenado, e passa a ter o fim de administrar os
indivíduos detalhadamente, tendo como alvo a sua alma, a modificação de
si por dentro. Esta é a emergência da disciplina na sociedade
capitalista.
A disciplina e a instituição dos tribunais
O poder disciplinar é […] um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”: ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo [Michel Foucault, Vigiar e Punir].
Não iremos abordar as características
específicas da disciplina, mas sua localização histórica. Este é nosso
foco, já que é na passagem à sociedade disciplinar que está a crítica de
Foucault ao modelo de tribunal popular proposto pelos militantes
maoistas.
Não obstante, é necessário entender que a
disciplina é uma tecnologia de poder específica do progresso do
capitalismo, que tem o corpo dos indivíduos como objeto, já que sua
função é docilizá-lo. “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode
ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”, diz Foucault
em Vigiar e Punir.
A disciplina é aplicada em diversas
instituições sociais, como a escola, o exército e as prisões. O corpo
dócil do prisioneiro é aquele que contém uma alma modificável,
regenerável, este corpo não pode ser abusado em rituais de demonstração
bufônica do poder – esta técnica de punição é, assim, abandonada em
proveito das penas de restrição da liberdade (conceito de importância do
século XVIII adiante, através das revoluções burguesas e em específico,
da Revolução Francesa).
Os tribunais, que antes pediam permissão
ao monarca para sancionar seus julgamentos, passam a deter o poder que
era concentrado no juízo arbitrário da realiza e começam a seguir
princípios neutros. O aparelho judiciário se transformou durante toda
história, Foucault explica,
Na Idade Média se substituiu um tribunal arbitral (a que se recorria por consentimento mútuo, para por fim a um litígio ou a uma guerra privada e que não era de modo nenhum um organismo permanente de poder) por um conjunto de instituições estáveis, específicas, intervindo de maneira autoritária e dependente do poder político (ou controlado por ele) [Sobre a Justiça Popular].
Este tribunal foi, pouco a pouco, se
configurando como parte externa ao poder executivo, até se tornar uma
instituição separada. No entanto, não se trata de um modelo universal,
mas sim um modelo nascido sob o incentivo de acumular riquezas, pois era
um negócio lucrativo manter o aparelho judiciário, e terminar as
guerras privadas, que só seriam subjugadas por um órgão centralizado.
O tribunal da Revolução Francesa foi um
exemplo de tribunal popular em que, a partir de valores universais, os
acusados eram julgados por um sujeito neutro que escutava a defesa e a
acusação. Era um tribunal idêntico àqueles que se pretendia superar.
A disciplina se liga aos tribunais por
ambos serem partes de uma mesma sociedade em transformação. Não se pode
mais usar de trapo o corpo dos súditos, é necessário mantê-los vivos e
adestrados para futura exploração – lembremos que a Revolução Industrial
aumentou drasticamente a demanda por mão-de-obra na Europa.
O apontamento mais importante de
Foucault, para o presente artigo, se refere à instituição do tribunal
popular na Comuna de Paris, regidos por conceitos da classe dominante.
Não havia justiça popular, mas justiça burguesa,
ora, logo que as execuções começaram em Setembro, homens da Comuna de Paris, ou próximos dela, intervieram e organizaram a cena do tribunal: juízes atrás de uma mesa, representando uma terceira instância entre o povo que grita “vingança” e os acusados que são “culpados” ou “inocentes”; interrogatórios para estabelecer a “verdade” ou obter a “confissão”; deliberação para saber o que é “justo”; instância imposta a todos por via autoritária. Será que não vemos reaparecer aqui o embrião, ainda que frágil, de um aparelho de Estado? A possibilidade de uma opressão de classe? Será que o estabelecimento de uma instância neutra entre o povo e os seus inimigos, susceptível de estabelecer a fronteira entre o verdadeiro e o falso, o culpado e o inocente, o justo e o injusto, não é uma maneira de se opor à justiça popular? Uma maneira de desarmá−la em sua luta real em proveito de uma arbitragem ideal? E por isso que eu me pergunto se o tribunal, em vez de ser uma forma da justiça popular, não é a sua primeira deformação [Michel Foucault, Sobre a Justiça Popular].
Já na Revolução Francesa, Danton –
criador dos tribunais – foi decapitado quando passou a não defender os
interesses da burguesia.
O tribunal é o órgão que impede a justiça
popular. Sua função não é promovê-la, afinal, a constituição do
tribunal remonta aos conceitos e às práticas da própria burguesia. Mudar
os indivíduos que ocupam cada posição dentro do tribunal não muda a
estrutura do tribunal, que permanece sendo a reprodução da sociedade que
se pretende acabar.
A justiça popular não pode ser mediada. Ela é fruto da ação do povo.
Justiça popular como justiça do povo
Victor, um dos militantes maoistas,
afirma que é necessário perceber o tribunal popular aos moldes das
revoluções proletárias. Seu exemplo é a Revolução Chinesa, em que as
massas se sublevaram e mataram os déspotas.
Para o militante, num primeiro momento,
esta atitude das massas é compreensível, no entanto, após os primeiros
passos da revolução, é necessário a organização de um instrumento de
unificação das massas contra seus inimigos, corporificado no Exército
Vermelho. Por sua vez, este instrumento evitará atos de pura vingança e
fundamentará o julgamento.
Não há erros no ponto oferecido por
Victor, o tribunal popular instituído através do Exército Vermelho se
coloca como um representante das massas, para além, ele de fato age como
um representante das massas. Não há mediação, são as massas organizadas
fazendo sua justiça.
O problema esquecido por Victor e os outros militantes está na França.
A França não estava em meio a uma
revolução aos moldes da China. Pelo contrário, não havia nada que
indicasse tal coisa. Foucault, ao entender este fato simples conclui que
a instituição de um tribunal popular não seria idêntica aos tribunais
coordenados pelo Exército Vermelho, mas estaria mais próxima daqueles
exemplificados através da Revolução Francesa ou da Comuna de Paris.
A justiça popular, sendo assim, não
poderia tomar existência a partir da instituição de um tribunal. Caius
Brandão, em seu artigo A Justiça Popular em Michel Foucault, sintetiza o ponto de vista do filósofo francês e sua análise de como as massas fizeram justiça na história da França,
Na justiça popular existem apenas as massas e seus inimigos. Aqui inexiste um elemento neutro que decide com autoridade. Tão pouco, os oprimidos se valem de uma noção de justiça abstrata e universal, quando decidem punir ou re-educar seus inimigos.Sua decisão tem como base a experiência concreta. Isto é, os danos que sofreram e aforma como foram prejudicados
A justiça tem lado
Brandão ainda argumenta que, partindo do
princípio de que não há natureza humana e, portanto, de que não há base
para a criação de uma justiça universal, então a justiça é, na verdade,
uma posição política.
Ao discutir com Chomsky, Foucault afirma
que a guerra não se dá por justiça, mas por poder. Não se luta para ser
justo, mas para ganhar. Sendo assim, um grupo social utiliza a justiça
como elemento discursivo para universalizar os motivos de sua luta
quando, na verdade, sua luta tem como fim objetivo a vitória.
A justiça tem lado. O que significa que a
justiça defendida pela burguesa tem como objetivo manter a dominação de
classe perpetrada por eles, enquanto a justiça popular visa ser um
instrumento de defesa – envenenado e destituído de seu poder quando
colocado sob os moldes da justiça burguesa.
É por isso que os militantes maoistas
falham em suas análises sobre a possibilidade da formação de um
tribunal. Foucault insiste em afirmar a diferença da situação da China
revolucionária com a França pós-maio de 68. O “sistema complexo
justiça-polícia-prisão” que mantinha o controle na sociedade burguesa
estava ainda vigente no país europeu, era necessário dar conta de sua
eliminação.
Somente a eliminação do sistema penal
como um todo (constituído pelos elementos identificados no parágrafo
anterior) abriria espaço para a justiça de fato popular.
As funções do sistema penal
O sistema penal, afirma Foucault, tem historicamente três funções:
1 – obrigar o proletariado a aceitar sua posição.
As leis contra mendigos, ociosos e vagabundo – que tiveram espaço desde
o fim da Idade Média até o século XVII e eram vigentes no Brasil ainda
após a abolição da escravatura – tinham como função obrigar o
proletariado a aceitar seu estatuto e suas condições de exploração. Ou o
vagabundo limpava os fossos da cidade, ou era preso e submetido a
prestar trabalhos forçados;
2 – controle de elementos perigosos. Foi
necessário tomar cuidado com elementos extremamente agitados da plebe,
indivíduos violentos e, portanto, perigosos. O encarceramento, o
isolamento nas colônias e a prisão em manicômios destes potenciais
pontas de lança em revoltas populares era papel preponderante do sistema
penal;
3 – Mudar o alvo da indignação proletária.
Foi o sistema penal que criou a oposição entre as camadas não
proletarizadas da plebe e o proletariado. Aos olhos do proletariado, o
restante da plebe seria “marginal, perigosa, imoral, ameaçadora para a
sociedade inteira, a escória do povo, o rebotalho, a ‘gatunagem'”.
“Trata−se para a burguesia de impor ao
proletariado, pela via da legislação penal, da prisão, mas também dos
jornais, da ‘literatura’, certas categorias da moral dita ‘universal’
que servirão de barreira ideológica entre ela e a plebe não
proletarizada”, explica Foucault.
Isso coloca a justiça popular em uma
posição de subversão e reconfiguração da ordem. A tomada da Bastilha não
foi só um ímpeto de raiva, mas uma destruição – mesmo que momentânea –
do sistema penal. Foucault observa que as revoltas
sempre incluem agentes do sistema penal como alvos, além das
instituições que presidem. Isso porque o sistema penal age contra o
povo,
como tem funcionado o aparelho judiciário e, de uma maneira geral, o sistema penal? Eu respondo: ele sempre funcionou de modo a introduzir contradições no seio do povo. Não quero dizer − isso seria aberrante − que o sistema penal introduziu as contradições fundamentais, mas oponho−me à ideia de o sistema penal ser uma vaga superestrutura. Ele teve um papel constitutivo nas divisões da sociedade atual [Michel Foucault, Sobre a Justiça Popular].
O sistema penal fez com que a
transgressão à norma deixasse de ser uma ofensa ao monarca para se
tornar uma ofensa à toda sociedade. A citação de Rousseau volta como uma
demonstração de que a transgressão passou a ser considerada a quebra do
contrato social. A punição foi despersonalizada.
É aí que o crime começa a ser percebido
como erro e não como agressão. Como erro feito por um sujeito dentro da
sociedade, uma falha para com o restante da sociedade. A punição, sendo
assim, deixa de ser vingança do monarca e passa a ser a reparação da
sociedade.
Por fim
A justiça popular, portanto, deve ser a
ferramenta para desmistificar as divisões que o sistema penal causou ao
proletariado, o dividindo em diversas camadas de classe, ao mesmo tempo
em que desuniversaliza a justiça e a transforma em uma arma para tomar o
controle do aparelho estatal (e mantê-lo).
Foucault vislumbra a possibilidade da
justiça ser parte de uma estratégia de poder e parte integrante de um
tipo de saber, elemento fundamental na constituição de uma nova
sociedade, que passe por cima dos aparelhos deixados pela sociedade
anterior.
PICICA: ""
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Vídeos complementares
Aqui, você verá a função do juiz para Foucault.
Esta é a discussão de Foucault com Chomsky, sobre a natureza humana.
Fonte: Colunas Tortas
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