PICICA: "Nem lista de melhores, nem
retrospectiva: salvar uma coisa qualquer de 2015 talvez seja a forma
mais sensata e menos aborrecida de se despedir do ano sem correr riscos
de elogio fácil ou culto ao sofrimento com tudo-isso-que-aí-está no
noticiário. Aponte algo de bom, interessante, novo ou prazeroso que
tenha te chamado atenção em 2015. Para usar um termo muito em voga nas
ruas, ‘basta’! Respondem aqui a esta provocação menor – como pede o ano –
alguns colaboradores e convidados do site do IMS. Pense nisso, também:
deve haver alguma coisa boa que você gostaria de salvar em 2015."
Salve 2015!
POR Fim de ano | 21.12.2015
Nem lista de melhores, nem
retrospectiva: salvar uma coisa qualquer de 2015 talvez seja a forma
mais sensata e menos aborrecida de se despedir do ano sem correr riscos
de elogio fácil ou culto ao sofrimento com tudo-isso-que-aí-está no
noticiário. Aponte algo de bom, interessante, novo ou prazeroso que
tenha te chamado atenção em 2015. Para usar um termo muito em voga nas
ruas, ‘basta’! Respondem aqui a esta provocação menor – como pede o ano –
alguns colaboradores e convidados do site do IMS. Pense nisso, também:
deve haver alguma coisa boa que você gostaria de salvar em 2015. Na
próxima segunda-feira, dia 28, divulgaremos o que José Geraldo Couto,
Carla Rodrigues, Eucanaã Ferraz e Alice Sant'Anna desejam resgatar
de 2015.
O frango ensopado da minha mãe, Nina Horta
Paulo Roberto Pires
O frango ensopado da minha mãe é o melhor lançamento de 2015 em literatura brasileira ou estrangeira. Oficialmente, Nina Horta escreve “crônicas de comida”. Na prática, é uma estilista daquelas que, em tom de conversa, dá um chega pra lá no senso comum, chama a atenção para delicadezas perdidas, cutuca a memória e o estômago de quem se recusa a estragar comida com cartilhas, da saúde ao politicamente correto.
A ela interessam pequi e Hannibal Lecter, comida mineira e foie gras, V.S. Naipaul e Virginia Woolf, romã e sangue. Comida é coisa séria demais para ficar na mão de gourmets ou de sua encarnação mais degenerada, os foodies. Para Nina, “se a galinha é o disfarce do ovo, o pato é o disfarce do foie gras”. O que é o porco, escreve ela, senão “uma obra de arte inventada por um deus guloso, uma divina construção”? A jaca? “Um rinoceronte, um elefante que virou fruta? Em todo caso, está na cara que veio de longe, do tempo em que tudo era grande e forte e não era costume temer a morte. Tem cem anos de solidão”.
Poderia ficar citando aqui infinitamente, pois com ela é assim: um achado atrás do outro, associações, ideias, pulos da mesa pra estante e dela pra gaveta de guardados da família. E achei, por acaso, a melhor definição de cozinhar que, não é de se estranhar, é a melhor também de escrever que já li em muito tempo. E que diz quem é Nina Horta, no fogão ou no teclado: “Só conseguimos reunir as peças da comida em alguma coisa bem aceitável quando se aprende as técnicas básicas, quando se lê muito (melhor dizendo, quando se vive muito), quando se tem o olho vivo e a língua curiosa, quando o erro é o melhor condutor, quando se quebra a cabeça misturando os ingredientes com muita obediência e outras vezes com liberdade total”.
Paulo Roberto Pires é jornalista, escritor e editor da serrote, revista de ensaios do IMS.
A mulher do fim do mundo, Elza Soares
Luiz Fernando Vianna
As cortinas se abrem para o show derivado do CD A mulher do fim do mundo, e Elza Soares aparece no topo de uma espécie de altar. Seu rosto muito maquiado, marcado pelos não confessados mais de 80 anos de vida e por várias plásticas, é o de uma esfinge. De repente, da máscara com um quê de mortuária, sai a voz, aquela voz. E faz-se a luz negra.
A composição cênica do show espelha o que é o CD, fato musical mais importante de 2015 no Brasil. Pela enésima vez, Elza faz jus ao odioso clichê e renasce das cinzas. Desta vez, pode-se dizer que ela canta dentro das cinzas.
Um grupo de músicos e compositores paulistas (Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Romulo Fróes, Celso Sim, Clima, Douglas Germano, Marcelo Cabral, Guilherme Kastrup e alguns outros) criou repertório e sonoridades diretamente para Elza. Mais do que isso: para Elza, a mulher que viu e viveu tudo (fome, dois filhos mortos, o racismo desde sempre etc.), ser guia de um passeio por círculos do Brasil infernal de hoje.
Violência doméstica, violência sexual, violência policial, violência social... O estupro diário que sofre o brasileiro das periferias, de todas as margens, está pintado nas cenas beligerantes e nos sons distorcidos. O samba, base de Elza e do país tropical, é revestido de rap e de estranhezas que poluem qualquer ideia idílica que ainda se possa ter da nossa aquarela.
Elza cospe os palavrões (fuder, caceta, merda) e canta com a rudeza que traz na garganta e na biografia. Na parte final do CD (em “Dança”, “Solto”, “Comigo”), representa personagens quase mortas ou mesmo mortas – e que, no entanto, ainda cantam e dançam. Como pede na faixa-título, “Me deixem cantar até o fim”.
Após o passeio sombrio, despede-se dizendo que leva consigo sua mãe, “embora se tenha ido”. A música termina, mas, bem ao fundo, ainda se ouve a voz de Elza. Ela insiste em viver, sempre. O país, talvez.
A mulher do fim do mundo é o retrato de uma grande cantora no inverno de sua vida quente; de compositores que dispensam os atalhos das boas intenções e buscam caminhos pedregosos; do Brasil que vem embalando, com prazer ainda maior do que o habitual, o apocalipse da sua jamais sequer esboçada civilização.
É um disco que exala dor e, às vezes, alguma alegria. É tudo junto misturado. Como dentro de nós. Como no rosto de Elza.
Luiz Fernando Vianna é coordenador da Rádio Batuta, do IMS.
Her Story, Sam Barlow
Antônio Xerxenesky
Imagine o espectador de 1962 que entrou no cinema para assistir a O eclipse, de Antonioni. Por quase duas horas, testemunha um drama amoroso de classe média alta e, então, nos dez minutos finais: ruas desertas, pessoas estranhas passando em frente à câmera, um jornal anunciando o perigo nuclear. A lembrança de que o mundo é muito maior que a história do casal. Tudo isso contado de uma maneira poética que rompia com a história do cinema até então. O espectador só podia pensar: como há terrenos inexplorados na arte cinematográfica! O que o futuro nos reserva?
Quem acompanha o mundo do videogame tem uma surpresa dessas por ano. A arte vídeolúdica é jovem demais, e com frequência um jogo mostra que as possibilidades da área são ilimitadas. Enquanto as revistas especializadas dão o título de jogo do ano a megaproduções que são mais do mesmo (algumas excelentes, como The Witcher 3), tomo este espaço para falar de Her Story, jogo minúsculo feito por uma só pessoa, que certamente ganha no critério inovação e exploração das fronteiras da mídia. Você assiste a vídeos de uma mulher se explicando na delegacia a respeito de um assassinato. A partir das falas dela, pode fazer buscas por palavras-chaves (exemplo: ela menciona que “passava muito tempo no sótão”, e então você decide buscar “sótão” e assistir aos vídeos nos quais essa palavra é mencionada).
A trama é de um policial clássico, e uma das possíveis interpretações é um danado de um clichê, mas a maneira como essa história é articulada no jogo não tem paralelos. Trata-se, afinal, de um quebra-cabeça a ser reconstruído pelo jogador, no qual cada um desenvolverá à sua própria maneira e ordem de montar o puzzle, e cada um terá acesso a um conjunto específico de partes que diferirá de outros jogadores, do qual se tirará sua própria interpretação. Tudo isso “narrado” num monitor de tubo antigo, reconstruindo uma estética dos anos 1990, que dá um charme visual impressionante a um título que já é incomum por natureza.
Antônio Xerxenesky é assistente de coordenação do IMS e doutorando em Teoria Literária na USP.
Os Experientes
Mauricio Stycer
O caminho que leva um programa de televisão à tela – da ideia inicial à exibição – é repleto de curvas, ladeiras íngremes e acidentes. Os casos de recusa são os mais famosos e dolorosos, como o “não” que a HBO deu para Mad Men, por exemplo.
Menos comuns, mas não raras, são as histórias de projetos que, embora aprovados e realizados, são posteriormente engavetados. Isso aconteceu com Os Experientes, a melhor série que a Globo exibiu em 2015 depois de deixá-la na “prateleira” por um longo inverno.
Projeto da O2, com direção dividida entre Fernando Meirelles e o filho Quico, Os Experientes foi exibido em quatro episódios, entre abril e maio. Com roteiro de Antonio Prata (o primeiro episódio) e de Marcio Alemão Delgado (os outros três), são quatro histórias independentes, protagonizadas por veteranos – um timaço formado por Beatriz Segall, Juca de Oliveira, Selma Egrei, Joana Fomm, Otavio Augusto, Lima Duarte, Othon Bastos. Um dos episódios teve a participação dos músicos Germano Mathias, Wilson das Neves e Zé Maria e do jornalista Goulart de Andrade como protagonistas.
Em tom agridoce, tratando de pequenos dramas com pitadas de humor e auto-ironia, Os Experientes contou uma história mais comovente que a outra. No episódio final, ofereceu pequenas indicações que relacionavam os personagens em cena a vários outros, dos programas anteriores, sugerindo uma ligação entre todos.
Além da hesitação nunca explicada em lançar Os Experientes, a Globo exibiu a série em seu pior horário, às sextas-feiras, depois do Globo Repórter. Ainda assim, quase contra a vontade de quem o encomendou, foi um dos melhores programas do ano.
Mauricio Stycer é repórter e crítico do portal UOL.
Le Bal
Thyago Nogueira
Criado em 2010, em Paris, o pequeno Le Bal é um espaço de exposição e reflexão dedicado à imagem documental, seja ela fotografia, filme ou vídeo. Com apenas dois andares, comandados pela incansável Diane Dufour (ex-Magnum), Le Bal vem disputando ombro a ombro o posto de um dos projetos curatoriais contemporâneos mais originais da Europa, ao lado de instituições mais antigas como o FotoMuseum de Winthertur e o FOAM de Amsterdam.
Entre 4 de julho e 30 de agosto, Dufour inaugurou uma exposição que contou com a ajuda curatorial de quase uma dezena de especialistas. Image à charge: la construction de la preuve par l’image (algo como Imagem-testemunha: a construção da prova pela imagem) apresentava diferentes maneiras com que imagens foram usadas em investigações criminais ou em atos de violência ao redor do mundo, do começo do século XX até hoje. Estavam ali as elaboradas fichas fotográficas desenvolvidas por Alphonse Bertillon no final do século XIX para criar um protocolo científico de registro de cenas de crimes; a fotografia aérea aperfeiçoada por pilotos britânicos durante a Primeira Guerra Mundial para avaliar os estragos causados por bombardeios na Bélgica; dezenas de retratos 3x4 de “conspiradores” russos obrigados a confessar crimes inexistentes antes de serem assassinados pela KGB; os estudos de sobreposição videográfica elaborados por Richard Helmer para identificar os restos mortais de Josef Mengele em São Paulo, em 1985; as fotografias produzidas pelo Ministério de Obras Públicas e Habitação de Gaza, comandado pelo Hamas, para inventariar as construções destruídas na região após o bombardeio israelense de 2008-9; as fotografias tiradas por Susan Meiselas durante a exumação de corpos de Koreme, cidade curda destruída pelo exército iraquiano, ou mesmo a minuciosa e impressionante reconstituição de um ataque de drone no Paquistão em 2012 a partir do único registro visual disponível, um vídeo amador de 22 segundos.
Em quase todos os conjuntos, era possível observar o minucioso esforço de peritos para dar segurança, muitas vezes jurídica, aos diversos sistemas de representação visual, na eterna tentativa de estabelecer uma relação confiável entre fotografia e documento, e entre documento e verdade. Ao abrir o circuito de arte para exibir essas imagens, produzidas com outros fins, a exposição também associava o valor estético das imagens à sua dimensão histórica e política, um feito também admirável.
Thyago Nogueira (São Paulo, 1976) é editor da revista de fotografia ZUM e coordenador da área de fotografia contemporânea do Instituto Moreira Salles.
O frango ensopado da minha mãe, Nina Horta
Paulo Roberto Pires
O frango ensopado da minha mãe é o melhor lançamento de 2015 em literatura brasileira ou estrangeira. Oficialmente, Nina Horta escreve “crônicas de comida”. Na prática, é uma estilista daquelas que, em tom de conversa, dá um chega pra lá no senso comum, chama a atenção para delicadezas perdidas, cutuca a memória e o estômago de quem se recusa a estragar comida com cartilhas, da saúde ao politicamente correto.
A ela interessam pequi e Hannibal Lecter, comida mineira e foie gras, V.S. Naipaul e Virginia Woolf, romã e sangue. Comida é coisa séria demais para ficar na mão de gourmets ou de sua encarnação mais degenerada, os foodies. Para Nina, “se a galinha é o disfarce do ovo, o pato é o disfarce do foie gras”. O que é o porco, escreve ela, senão “uma obra de arte inventada por um deus guloso, uma divina construção”? A jaca? “Um rinoceronte, um elefante que virou fruta? Em todo caso, está na cara que veio de longe, do tempo em que tudo era grande e forte e não era costume temer a morte. Tem cem anos de solidão”.
Poderia ficar citando aqui infinitamente, pois com ela é assim: um achado atrás do outro, associações, ideias, pulos da mesa pra estante e dela pra gaveta de guardados da família. E achei, por acaso, a melhor definição de cozinhar que, não é de se estranhar, é a melhor também de escrever que já li em muito tempo. E que diz quem é Nina Horta, no fogão ou no teclado: “Só conseguimos reunir as peças da comida em alguma coisa bem aceitável quando se aprende as técnicas básicas, quando se lê muito (melhor dizendo, quando se vive muito), quando se tem o olho vivo e a língua curiosa, quando o erro é o melhor condutor, quando se quebra a cabeça misturando os ingredientes com muita obediência e outras vezes com liberdade total”.
Paulo Roberto Pires é jornalista, escritor e editor da serrote, revista de ensaios do IMS.
A mulher do fim do mundo, Elza Soares
Luiz Fernando Vianna
As cortinas se abrem para o show derivado do CD A mulher do fim do mundo, e Elza Soares aparece no topo de uma espécie de altar. Seu rosto muito maquiado, marcado pelos não confessados mais de 80 anos de vida e por várias plásticas, é o de uma esfinge. De repente, da máscara com um quê de mortuária, sai a voz, aquela voz. E faz-se a luz negra.
A composição cênica do show espelha o que é o CD, fato musical mais importante de 2015 no Brasil. Pela enésima vez, Elza faz jus ao odioso clichê e renasce das cinzas. Desta vez, pode-se dizer que ela canta dentro das cinzas.
Um grupo de músicos e compositores paulistas (Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Romulo Fróes, Celso Sim, Clima, Douglas Germano, Marcelo Cabral, Guilherme Kastrup e alguns outros) criou repertório e sonoridades diretamente para Elza. Mais do que isso: para Elza, a mulher que viu e viveu tudo (fome, dois filhos mortos, o racismo desde sempre etc.), ser guia de um passeio por círculos do Brasil infernal de hoje.
Violência doméstica, violência sexual, violência policial, violência social... O estupro diário que sofre o brasileiro das periferias, de todas as margens, está pintado nas cenas beligerantes e nos sons distorcidos. O samba, base de Elza e do país tropical, é revestido de rap e de estranhezas que poluem qualquer ideia idílica que ainda se possa ter da nossa aquarela.
Elza cospe os palavrões (fuder, caceta, merda) e canta com a rudeza que traz na garganta e na biografia. Na parte final do CD (em “Dança”, “Solto”, “Comigo”), representa personagens quase mortas ou mesmo mortas – e que, no entanto, ainda cantam e dançam. Como pede na faixa-título, “Me deixem cantar até o fim”.
Após o passeio sombrio, despede-se dizendo que leva consigo sua mãe, “embora se tenha ido”. A música termina, mas, bem ao fundo, ainda se ouve a voz de Elza. Ela insiste em viver, sempre. O país, talvez.
A mulher do fim do mundo é o retrato de uma grande cantora no inverno de sua vida quente; de compositores que dispensam os atalhos das boas intenções e buscam caminhos pedregosos; do Brasil que vem embalando, com prazer ainda maior do que o habitual, o apocalipse da sua jamais sequer esboçada civilização.
É um disco que exala dor e, às vezes, alguma alegria. É tudo junto misturado. Como dentro de nós. Como no rosto de Elza.
Luiz Fernando Vianna é coordenador da Rádio Batuta, do IMS.
Her Story, Sam Barlow
Antônio Xerxenesky
Imagine o espectador de 1962 que entrou no cinema para assistir a O eclipse, de Antonioni. Por quase duas horas, testemunha um drama amoroso de classe média alta e, então, nos dez minutos finais: ruas desertas, pessoas estranhas passando em frente à câmera, um jornal anunciando o perigo nuclear. A lembrança de que o mundo é muito maior que a história do casal. Tudo isso contado de uma maneira poética que rompia com a história do cinema até então. O espectador só podia pensar: como há terrenos inexplorados na arte cinematográfica! O que o futuro nos reserva?
Quem acompanha o mundo do videogame tem uma surpresa dessas por ano. A arte vídeolúdica é jovem demais, e com frequência um jogo mostra que as possibilidades da área são ilimitadas. Enquanto as revistas especializadas dão o título de jogo do ano a megaproduções que são mais do mesmo (algumas excelentes, como The Witcher 3), tomo este espaço para falar de Her Story, jogo minúsculo feito por uma só pessoa, que certamente ganha no critério inovação e exploração das fronteiras da mídia. Você assiste a vídeos de uma mulher se explicando na delegacia a respeito de um assassinato. A partir das falas dela, pode fazer buscas por palavras-chaves (exemplo: ela menciona que “passava muito tempo no sótão”, e então você decide buscar “sótão” e assistir aos vídeos nos quais essa palavra é mencionada).
A trama é de um policial clássico, e uma das possíveis interpretações é um danado de um clichê, mas a maneira como essa história é articulada no jogo não tem paralelos. Trata-se, afinal, de um quebra-cabeça a ser reconstruído pelo jogador, no qual cada um desenvolverá à sua própria maneira e ordem de montar o puzzle, e cada um terá acesso a um conjunto específico de partes que diferirá de outros jogadores, do qual se tirará sua própria interpretação. Tudo isso “narrado” num monitor de tubo antigo, reconstruindo uma estética dos anos 1990, que dá um charme visual impressionante a um título que já é incomum por natureza.
Antônio Xerxenesky é assistente de coordenação do IMS e doutorando em Teoria Literária na USP.
Os Experientes
Mauricio Stycer
O caminho que leva um programa de televisão à tela – da ideia inicial à exibição – é repleto de curvas, ladeiras íngremes e acidentes. Os casos de recusa são os mais famosos e dolorosos, como o “não” que a HBO deu para Mad Men, por exemplo.
Menos comuns, mas não raras, são as histórias de projetos que, embora aprovados e realizados, são posteriormente engavetados. Isso aconteceu com Os Experientes, a melhor série que a Globo exibiu em 2015 depois de deixá-la na “prateleira” por um longo inverno.
Projeto da O2, com direção dividida entre Fernando Meirelles e o filho Quico, Os Experientes foi exibido em quatro episódios, entre abril e maio. Com roteiro de Antonio Prata (o primeiro episódio) e de Marcio Alemão Delgado (os outros três), são quatro histórias independentes, protagonizadas por veteranos – um timaço formado por Beatriz Segall, Juca de Oliveira, Selma Egrei, Joana Fomm, Otavio Augusto, Lima Duarte, Othon Bastos. Um dos episódios teve a participação dos músicos Germano Mathias, Wilson das Neves e Zé Maria e do jornalista Goulart de Andrade como protagonistas.
Em tom agridoce, tratando de pequenos dramas com pitadas de humor e auto-ironia, Os Experientes contou uma história mais comovente que a outra. No episódio final, ofereceu pequenas indicações que relacionavam os personagens em cena a vários outros, dos programas anteriores, sugerindo uma ligação entre todos.
Além da hesitação nunca explicada em lançar Os Experientes, a Globo exibiu a série em seu pior horário, às sextas-feiras, depois do Globo Repórter. Ainda assim, quase contra a vontade de quem o encomendou, foi um dos melhores programas do ano.
Mauricio Stycer é repórter e crítico do portal UOL.
Le Bal
Thyago Nogueira
Criado em 2010, em Paris, o pequeno Le Bal é um espaço de exposição e reflexão dedicado à imagem documental, seja ela fotografia, filme ou vídeo. Com apenas dois andares, comandados pela incansável Diane Dufour (ex-Magnum), Le Bal vem disputando ombro a ombro o posto de um dos projetos curatoriais contemporâneos mais originais da Europa, ao lado de instituições mais antigas como o FotoMuseum de Winthertur e o FOAM de Amsterdam.
Entre 4 de julho e 30 de agosto, Dufour inaugurou uma exposição que contou com a ajuda curatorial de quase uma dezena de especialistas. Image à charge: la construction de la preuve par l’image (algo como Imagem-testemunha: a construção da prova pela imagem) apresentava diferentes maneiras com que imagens foram usadas em investigações criminais ou em atos de violência ao redor do mundo, do começo do século XX até hoje. Estavam ali as elaboradas fichas fotográficas desenvolvidas por Alphonse Bertillon no final do século XIX para criar um protocolo científico de registro de cenas de crimes; a fotografia aérea aperfeiçoada por pilotos britânicos durante a Primeira Guerra Mundial para avaliar os estragos causados por bombardeios na Bélgica; dezenas de retratos 3x4 de “conspiradores” russos obrigados a confessar crimes inexistentes antes de serem assassinados pela KGB; os estudos de sobreposição videográfica elaborados por Richard Helmer para identificar os restos mortais de Josef Mengele em São Paulo, em 1985; as fotografias produzidas pelo Ministério de Obras Públicas e Habitação de Gaza, comandado pelo Hamas, para inventariar as construções destruídas na região após o bombardeio israelense de 2008-9; as fotografias tiradas por Susan Meiselas durante a exumação de corpos de Koreme, cidade curda destruída pelo exército iraquiano, ou mesmo a minuciosa e impressionante reconstituição de um ataque de drone no Paquistão em 2012 a partir do único registro visual disponível, um vídeo amador de 22 segundos.
Em quase todos os conjuntos, era possível observar o minucioso esforço de peritos para dar segurança, muitas vezes jurídica, aos diversos sistemas de representação visual, na eterna tentativa de estabelecer uma relação confiável entre fotografia e documento, e entre documento e verdade. Ao abrir o circuito de arte para exibir essas imagens, produzidas com outros fins, a exposição também associava o valor estético das imagens à sua dimensão histórica e política, um feito também admirável.
Thyago Nogueira (São Paulo, 1976) é editor da revista de fotografia ZUM e coordenador da área de fotografia contemporânea do Instituto Moreira Salles.
Fonte: BLOG DO IMS
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