PICICA:
Há um certo tratamento serial e universalizante do desejo que consiste precisamente em reduzir o sentimento amoroso a essa espécie de apropriação do outro, apropriação da imagem do outro, apropriação do corpo do outro, do devir do outro, do sentir do outro” – Guattari, Micropolítica – Cartografias do desejo, p. 339
É nessa apropriação feroz do devir do
outro que nascem os espaços fechados, sufocantes. O amor cai em um
buraco negro, tudo fica escuro, inacessível, é o fim de qualquer
processo de singularização. Estas questões são de interesse enorme para
uma micropolítica da subjetividade: hoje ainda é possível viver a dois
em um mundo onde a liberação sexual é uma norma social? A liberdade não
pode ser uma obrigação. Existem vários tipos de drogas, a conjugal pode
ser uma dentre outras tantas, sintéticas ou não, inaláveis ou
injetáveis. Se só entendemos do amor com pronomes possessivos, podemos
ainda encontrar uma nova suavidade? Afinal, “o amor anda impossível?”
Há um certo tratamento serial e universalizante do desejo que consiste precisamente em reduzir o sentimento amoroso a essa espécie de apropriação do outro, apropriação da imagem do outro, apropriação do corpo do outro, do devir do outro, do sentir do outro” – Guattari, Micropolítica – Cartografias do desejo, p. 339
É nessa apropriação feroz do devir do
outro que nascem os espaços fechados, sufocantes. O amor cai em um
buraco negro, tudo fica escuro, inacessível, é o fim de qualquer
processo de singularização. Estas questões são de interesse enorme para
uma micropolítica da subjetividade: hoje ainda é possível viver a dois
em um mundo onde a liberação sexual é uma norma social? A liberdade não
pode ser uma obrigação. Existem vários tipos de drogas, a conjugal pode
ser uma dentre outras tantas, sintéticas ou não, inaláveis ou
injetáveis. Se só entendemos do amor com pronomes possessivos, podemos
ainda encontrar uma nova suavidade? Afinal, “o amor anda impossível?“
Encontramos de um lado o amor por medo,
amor que teme ficar sozinho, encontrar-se consigo mesmo em um mundo
assustador e cheio de perigos. Lá fora sempre chove ou faz sol demais.
Assassinos estão escondidos atrás dos muros cinzas, melhor ficar em
casa… O medo da desterritorialização nos prende em um mundo pequeno,
familiar, anestesiado. Um amor inflexível nasce dentro de paredes
grossas, quem não se move, não sabe dizer o quanto está preso. A cerca
que protege é a mesma que separa.
Em todos nós habita uma Penélope que
espera por seu amado, ela tece eternamente os fios que se desfazem à
noite. Seu trabalho é pelo absoluto, uma esperança de eternidade,
vontade de unidade. “Sede que não nos dá trégua e que nos afasta de
todos os fios do mundo – humanos ou não – com que poderíamos estar
tecendo territórios, nos tecendo“. É a imagem de Ulisses, como
figura de perfeição onde nada mais se move, um amor onde nada falta,
tudo encontra a estabilidade final, tal como a de um barco que encontra
seu porto. A aventura de Penélope é sua espera por Ulisses, seu medo é a
perda de si em um mundo dilacerado.
Ulisses, por sua vez, viaja, seu medo
está no outro lado, no excesso de presença que Penélope exerce. Ele foge
com medo de ser devorado: “você me destrói com essa sua carência, vontade de presença“.
Mas Ulisses se faz na fuga, na ausência. Eterna fuga, eterno retorno:
eterno medo. A criança que foge de casa não é a mesma que sai para
explorar o mundo. A simbiose se configura nesta fuga que está sempre
presente. Quantos mundos Ulisses viu? Ou será que quanto mais longe ia,
mais preso estava a Penélope? “Ulisses nunca se desterritorializa: é
sempre e somente na secreta terra firme e feita do incessante lamento
de Penélope que ele caminha“.
Ele aparece como o vilão que se afasta
para se criar na falta que cria, ela aparece como a chata carente que é
abandonada: a simbiose é clara. Um precisa do outro, um se faz no outro,
neste movimento de ida e vinda, neste desamparo, neste retorno. Um
movimento imóvel, “equilíbrio homeostático” onde os dois não vivem, há apenas impotência, sufoco. Um perde-se na imagem do outro.
Mas um dia Ulisses se cansa e parte para
não mais voltar! Ele pula do penhasco e plana por vários territórios
novos. O que há de Ulisses em nós se desgarra da Penélope que nos
espera. A partida é dura, ele não mais voltará, não precisa mais de
Penélope, de imagens, de territorializações, de nada. “Entrega-se de corpo e alma à desterritorialização“. Errante, vagando, andando sem rumo, sem destino, sem expectativas, “a vida se expande“.
Ulisses se perde no mundo que era muito maior do que ele imaginava. Ele
toma a forma de uma máquina celibatária. Os dias são longos, as noites,
mais longas ainda. Tal como previu Nietzsche nas três metamorfoses: todos os fios são cortados, o camelo se torna leão. O “tu deves” torna-se “eu quero”.
Onde chega Ulisses? Que territórios
atinge? Não se sabe, sua fuga é um desperdício, ela torna-se dispersa.
Miséria celibatária: “Nunca pousamos em paisagem alguma de modo a
constituir território e, reorganizados, prosseguimos viagem […] Há uma
certa amargura nisso tudo“. Nietzsche estava certo: o leão pode destruir, mas ainda não é capaz de criar novos valores.
Sem tempo (Penélope à espera) e sem
espaço (Ulisses viajando), perde-se a capacidade de construir
territórios. A consistência está em construir um corte no caos, não em
perder-se nele. Ulisses perde-se em suas linhas de fuga suicidárias,
torna-se vulnerável, fraco, uma presa fácil. Por medo da simbiose, ele
mesmo se desfaz no movimento insensato, doido, demente, desarrumado,
desastrado. “Duas cenas, dois perigos um só dano: entre a simbiose e
a desterritorialização vivida como finalidade em si mesma, quem sai
perdendo é o amor“.
“Então, o amor anda impossível? Nem tanto“…
Tanto Ulisses quanto Penélopes perdem-se nas simbioses,
territorialidades banais, estéreis. Tanto um como o outro ainda não
sabem criar novas formas de amar. O amor confuso de Penélope e Ulisses
gira em círculos, um é catavento, o outro é girassol, um se vai no
sumidouro do espelho do outro. “O que acabamos perdendo é a possibilidade de envolvimento – como se a única ligação possível fosse a especular“. Por medo das simbioses perdemos a capacidade de criar territórios.
Desaprendemos a dançar, a bailarina cai
no chão de tanto girar em apenas um sentido. Estávamos com tanto medo
que esquecemos que o amor é um ritornelo:
nunca se volta para o mesmo lugar. Os territórios se fazem e se
desfazem, a porta está sempre aberta para novas experimentações, para
descobrir novas terras, não em uma fuga louca, um desfazer-se por
completo. Se for assim, jogamos a água suja junto com a criança. E é
exatamente isso que prediz Nietzsche: depois do Camelo que carrega
valores e do Leão que destrói valores está a inocência da criança.
Uma abertura para a criação de novos modos de amar. Um amor leve, um devir-nuvem. Nem demasiadamente humano, mas também nem demasiadamente desumano, “onde campos de intimidade se instaurem. Territórios-pousada. Uma certa inocência“. Encontrar uma outra relação para os corpo onde dois não devenham um, mas possam ser vários.
Nietzsche, Guattari e Rolnik ensinam a
criar novos planos, mais consistentes, mas não pesados demais ao ponto
de impedir o movimento. É preciso espaço para poder improvisar, é
preciso aberturas para que haja ventilação. É preciso criar um deserto,
claro, mas povoar este deserto de intensidades. “Viagem solitária: uma solidão povoada pelos encontros com o irredutivelmente outro“.
O que sabemos desta viagem? Existe algum guia seguro? Não sabemos dizer
o que iremos encontrar pelo caminho, mas podemos levar conosco alguns
conselhos importantes:
A quebra dos espelhos e as aventuras das
máquinas celibatárias nos ensinaram que é importantíssimo possuir
autonomia de voo. Mas não pelo voo em si: uma nuvem não se
desterritorializa do mar apenas para ganhar altitude, mas também para
poder chover em outros campos. A autonomia de voo se faz juntamente com a
construção de novos territórios. Uma linha de fuga criadora, um desejo
de multiplicar-se, criar zonas autônomas, encontrar alianças brilhantes,
que nasçam da potência dos encontros. Claro que não é fácil, claro que
podemos falhar, por isso a prudência nos dá uma última recomendação:
“Há ruídos, sons inarticulados, e
muitas vezes não suportamos esperar que uma composição se faça: na
pressa de já ouvi-la, corremos o risco de compor esses sons com velhos
clichês. É difícil não cair na pieguice de um final feliz“. É difícil suportar o caos. O caos caotizante que mistura sons em desarmonia e nos ameaça com a surdez para os afetos. “O que não suportamos é a estridência desses sons inarticulados“.
Mas já não somos os mesmos, não somos mais Penélopes, nem Ulisses,
agora andamos na borda destas terras que não dão mais flores. Quando
antigas respostas se tornam obsoletas, aprendemos a perguntar de novo: o
que é o amor? A resposta ainda não está na ponta da língua, mas
certamente nos tornamos mais leves para procurá-la.
As citações são do texto de Suely Rolnik,
“Uma nova suavidade?”, contido no livro escrito juntamente com
Guattari: “Micropolíticas – Cartografias do Desejo”. Você também pode
encontrar o texto no site “Territórios de Filosofia“
Nenhum comentário:
Postar um comentário