PICICA: "Sabor da vida foi feito falar do preconceito ainda
existente contra os portadores de hanseníase - essa a questão central
do filme, reafirmaram Kawase e seu co-roteirista, Danriu Sukegawa, na
entrevista coletiva após o lançamento do filme em maio último, no
festival de Cannes."
O feijão e o filme
POR José Carlos Avellar Cinema | 07.12.2015
Numa loja de dorayakis, uma sobremesa tradicional no Japão, feita de duas pequenas panquecas com um recheio de an,
um doce de feijão vermelho. Tokue, uma mulher de pouco mais de 70 anos,
mostra ao jovem Sentaro como cozinhar o feijão para conseguir a correta
consistência e sabor ao recheio dos dorayakis. É preciso, diz,
limpar o feijão antes de levá-lo à panela, manter a água não muito
aquecida para não ferir o feijão, e, sobretudo, conversar com ele.
Agradecer o longo caminho feito pelo feijão até chegar à panela. Pedir
que ele trabalhe bem. Prometer trocar a água de quando em quando para
eliminar as coisas amargas que o feijão sofreu ao longo da vida. Para o
incrédulo Sentaro, o vendedor de doryakis, Tokue explica que a
natureza conversa conosco numa linguagem que não conhecemos; que é
preciso estabelecer uma relação harmoniosa com ela. Conversar com os
feijões era absolutamente necessário, para buscar um modo de responder
ao que a natureza nos diz, e pedir que ela nos desse um suave doce de
feijão.
Cena de Sabor da vida
Suave talvez seja a palavra mais apropriada para definir a
história que Naomi Kawase adaptou de um livro de Durian Sukegawa -
escritor que trabalhou com ela interpretando um dos personagens de Hanezu (2011). A história e o estilo narrativo de Sabor da vida são
mesmo suaves. À primeira vista um pouco mais que suaves: entre os
ingredientes do doce de feijão existe uma boa dose de ingenuidade.
Bem entendido, destacar a simplicidade da construção da
cena, e a da cena em si mesmo, do imediatamente visível enfim, não quer
dizer que o real mérito do filme se resuma à invenção de um espaço
ideal, feito só de harmonia e nenhum conflito. Ao contrário, o dia a dia
de Sentaro, o vendedor de dorayakis, e Tokue, a cozinheira de
pouco mais de setenta anos, é marcado por um drama que, digamos assim
para recorrer a um procedimento cinematográfico, se passa fora de
quadro. Na imagem propriamente dita apenas uma sombra imprecisa do que
ocorre neste fora de quadro. Um cliente nota os dedos deformados na mão
da cozinheira, descobre que ela vivia numa colônia de leprosos e
rapidamente a clientela, até então numerosa e deliciada com o sabor dos dorayakis de Sentaro e Tokue, desaparece. Logo ele perde a loja e se vê sem trabalho.
A delicadeza da narrativa não esconde a marginalização
imposta aos portadores de hanseníase, mesmo depois de descoberta a cura
para a doença. O enunciado suave é tão somente um modo de não arrastar o
espectador para dentro da situação narrada. Ele não é chamado a sofrer o
que os personagens sofrem. Vive e sofre numa outra dimensão, paralela,
solidária, mas outra. Não abandona a realidade em que vive para
projetar-se na realidade-outra dos personagens. Sua relação com o filme
se faz por meio de uma montagem paralela. Nenhuma projeção sentimental
na cena, mas nenhum distanciamento dela. Porque permanece em seu lugar,
pode apreender melhor a proposta do filme.
Sabor da vida foi feito falar do preconceito ainda
existente contra os portadores de hanseníase - essa a questão central
do filme, reafirmaram Kawase e seu co-roteirista, Danriu Sukegawa, na
entrevista coletiva após o lançamento do filme em maio último, no
festival de Cannes. Para evitar um preconceito às avessas, para evitar
que os espectadores fossem levados a ver os doentes como vítimas, como
incapazes, Kawase e Sukegawa decidiram mostrá-los primeiro como pessoas
normais, criativas como a velha cozinheira. Desse modo, antes do
leprosário, doryakis para o espectador sentir não a doença, mas o
preconceito em torno dela. E sentir também, talvez o que mais importa, o
prazer de se encontrar face a uma requintada e sensível construção
formal, que conversa com o cinema assim como Tokue conversa com seus
feijões.
José Carlos Avellar
Crítico e coordenador de cinema do IMS.
Fonte: BLOG DO IMS
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