PICICA: "Raduan Nassar tem o talento de ir sempre mais fundo: de dizer o
não-dito, de gritar aos quatro ventos o que não temos coragem de admitir
nem para o espelho. E tudo de uma forma lindíssima."
raduan nassar e lavoura arcaica: entre a ordem e o desejo
Raduan Nassar – escritor paulista descendente de libaneses - escreveu e publicou, em toda sua carreira, apenas três livros. Dos três, dois são considerados clássicos absolutos da nossa literatura contemporânea. Tem ainda um séquito de fervorosos seguidores, além de ter inspirado uma coleção de estudos que se debruçaram sobre a sua obra. Seus livros viraram incríveis adaptações para o cinema – com destaque para a adaptação de “Lavoura Arcaica”, dirigida pelo também incrível Luiz Fernando Carvalho.
Nada mais natural que o autor, alcançando tanto sucesso, tivesse o ímpeto irresistível de produzir mais e mais, caindo justamente naquela armadilha em que tantos autores vêm caindo ultimamente: valorizar a quantidade em detrimento da qualidade. Mas não Nassar.
Ao concluir o terceiro livro (a coletânea de contos “Menina a caminho”), Raduan Nassar simplesmente abandonou a Literatura e foi viver numa fazenda no interior de São Paulo, onde – é verdade! – se especializou na criação de coelhos. Quando perguntado do por quê dessa decisão, tida como “excêntrica”, Raduan é simples e nada excêntrico em sua resposta: “tudo o que eu tinha a dizer está nos meus livros”.
Obviamente que para os fãs isso não foi nada legal, porque sua obra nos deixa sempre querendo mais. Porém, acabamos - por assim dizer - compelidos a praticar o perdão. Primeiro porque sua decisão não deixa de ser louvável, com um “quê” daquela dignidade que paira acima de qualquer julgamento, e que é exatamente o que encontramos e adoramos no seu trabalho. Segundo porque cumpre perfeitamente a função de deixar um mistério no ar, que alimenta o imaginário em torno da história de vida do autor.
Essa história, aliás, daria um ótimo livro: é trágica, mas com as necessárias pinceladas de comicidade.
Raduan Nassar cresceu numa cidadezinha de interior de São Paulo, mudando-se em seguida para a capital, onde seu pai acreditava que seus filhos poderiam se destacar nos estudos. Era, até então, um menino extremamente comunicativo e extrovertido, até uma certa tarde em que estava no meio de uma aula da 4ª série, quando sofreu a primeira das sete convulsões que teria nos próximos dois dias. Quando se recuperou, tinha perdido parte da memória e sofrido uma curiosa mudança no comportamento: estava introvertido e silencioso. Começou então a nascer o escritor.
Depois de iniciar vários cursos (concluiu apenas Filosofia) fez amizade com Hamilton Trevisan e entrou para um círculo de artistas que o ajudaram na publicação do seu primeiro romance, Lavoura Arcaica, e que viria a ser seu maior sucesso, ganhador de prêmios e de reedições - um feito extraordinário para um escritor de primeira viagem. Dois anos depois, nasce Um copo de cólera, também premiado, também genial. Os dois livros são bastante diferentes. Um copo de cólera conta a história de um casal que, depois de uma noite de amor, acaba discutindo por um motivo que, aparentemente, parece banal, mas que trará à tona um turbilhão de sentimentos, dores e questionamentos que descobrimos aos poucos estarem encravados em cada personagem.
Lavoura Arcaica é um livro que tem como narrativa central uma inversão da parábola do filho pródigo, ambientado em uma família tradicional libanesa. O protagonista André, depois de fugir da opressão do pai e do amor pela irmã Ana, resolve, ante o apelo do irmão mais velho, retornar à casa, decidido a confrontar tudo o que ali tolhia a sua liberdade. E é do confronto que nasce Lavoura Arcaica: desejo e ordem, força e medo, desejo e punição. É a força dessa dicotomia que alimenta a história. Os discursos são enérgicos, por vezes poéticos, sempre bem recortados e extremamente interessantes. [Quase] todo assunto é colocado sobre a mesa da velha casa da família: sexo, religião, hierarquia, subversão, desejo, tradição. O ritmo é frenético, mas pode ser suave como um sussurro lento, sem nunca perder o compasso. Os personagens, ainda que teatrais, são tão reais quanto você e eu, e com angústias, medos e questionamento muito parecidos com os nossos.
Mas Raduan Nassar tem o talento de ir mais fundo: de dizer o não-dito, de gritar aos quatro ventos o que não temos coragem de admitir nem para o espelho. E tudo de uma forma lindíssima. Tem frases de tamanho lirismo que ecoam em nossa mente durante muito tempo, tanto que às vezes nos pegamos, sem saber como, repetindo suas palavras, curiosamente decoradas com facilidade.
Prosa boa é assim: sem nos darmos conta, fica fazendo parte da gente.
Nassar é um escritor que, quem não conhece, só pode ser perdoado se correr agora mesmo ate a biblioteca mais próxima. Sugiro “Lavoura Arcaica” primeiro. Depois deste, o caso de amor com o autor fica tão sério que você se verá indo atrás de “Um copo do cólera” antes de se dar conta do fato.
Quem ganha com isso? Os fãs (eu incluída aí), o leitor, que vai conhecer uma das melhores prosas poéticas da nossa língua, e até Nassar, que deve estar nesse momento bem satisfeito, entretido com seus coelhos. Boa leitura!
Thali Bartikoski
Ser em uma busca constante por trocas. Aqui você me dá um pouco de seu precioso tempo, e eu lhe dou minhas transpirações literárias. Simples assim..Fonte: OBVIOUS
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