PICICA: "Profundo
e talvez pessimista, filme de Ernesto Daranas vai muito além do debate
sobre a Educação e questiona perspectivas do socialismo do século XX"
Numa escola em Havana, a Revolução e seu legado
Profundo
e talvez pessimista, filme de Ernesto Daranas vai muito além do debate
sobre a Educação e questiona perspectivas do socialismo do século XX
Por Carlos Moacir Vedovato Junior
Numa escola em Havana (Conducta, 2014), filme do cubano Ernesto Daranas, parece ter levantado, um debate interessante, ainda que restrito. Comentadores da educação, como Antônio Gois, compararam o filme ao célebre Entre os muros da escola (Entre les murs, 2008, de Laurent Cantet). Por outro lado, alguns críticos como Renato Hermsdorff, estabeleceram relações entre o longa-metragem cubano e o clássico de François Truffaut Os incompreendidos (Les quatre cent coups, 1959). Tais
comparações parecem ter como centro apenas o conteúdo do filme. O que
parece ter sido pouco analisado é a maneira como a própria forma indicia
as relações sociais da atual sociedade cubana.
O filme narra
a relação entre Carmela, professora que leciona há muitos anos, e seus
alunos numa escola na capital da ilha. A professora busca superar a
burocracia para criar um ambiente de liberdade e respeitabilidade entre
os alunos na sala de aula. Entretanto, no início da narrativa, Carmela
sofre um infarto e precisa ser afastada do colégio. É, então, substituída temporariamente por uma outra professora, mais jovem. Os alunos se solidarizam com a
professora antiga. A professora mais velha termina dividindo as aulas
com a mais nova para que possa voltar a lecionar. Durante o filme, o
espectador fica sabendo que Carmela dá aulas desde a Revolução Cubana.
Vale lembrar aqui a importância que a educação teve nos discursos da
revolução no início da década de 1960. Nesse sentido, o fio condutor da
narrativa está vinculado a um trabalho fundamental para a Revolução de
1959: o ensino.
Entre
os alunos da escola estão Chala, um “menino problemático”, que trabalha
para sustentar a mãe dependente química, e a menina Yeni, melhor aluna
da classe, filha de um trabalhador ilegal em Havana por ser de uma
província (Holguín) e não da capital. No decorrer da narrativa, sabemos,
pelas imagens, dos lugares degradados pela pobreza em que ambos moram.
Além disso, há sequências em que são vistos Chala cuidando de cães para
briga e capturando pombas – subempregos para “pôr o pão na mesa”, como
diz a professora, num dado momento do filme. Também o pai de Yeni
trabalha também em condições precárias. A construção das duas
personagens (o menino e a menina) está ligada, dessa maneira, ao
trabalho. Além dos ambientes internos, particularmente de casas, em que
se flagra a pobreza dos trabalhadores, Numa escola em Havana
capta, por vistas panorâmicas, aspectos decadentes da capital: prédios
antigos, deteriorados, marcas da história; ao mesmo tempo, as imagens da
escola apresentam um espaço bastante conservado.
A constância de dois elementos formais configura a rítmica do filme: as sequências em que vemos parte das crianças da escola na igreja,
cantando à Virgem da Caridade do Cobre (padroeira de Cuba) algo como
“que a guayabera não se manche de sangue” (a guayabera é a camisa típica
dos cubanos). Nesses momentos em que a canção religiosa é a trilha,
também aparecem imagens de adultos trabalhando e crianças estudando,
todos aparentemente felizes; e vemos os cães treinados por Chala,
brigando de maneira violenta (uma das sequências mostra o cão treinado
pelo menino sendo morto por outro). A antítese entre as imagens que
marcam o ritmo da narrativa é de ordem aparente, na medida em que ambas
são fundamentadas na lógica do trabalho dos cubanos: o trabalho
idealizado com a canção religiosa e a violência da realidade material
com o trabalho de Chala.
Há
algo de melodramático na construção da história do aluno com apenas
onze anos e de sua mãe (que indiretamente dá a entender que se
prostitui), na medida em que, além da crença na educação por parte da
professora, um dos temas centrais do filme é a criança que se esforça
para sustentar a mãe alcóolatra; entretanto, é preciso pensar as
relações sociais da sociedade representada. Mais do que no Brasil, em
Cuba é bastante comum a situação de Chala: o subemprego para
complementar a renda da casa. A prostituição é também um dado do
cotidiano de muitas trabalhadoras e trabalhadores, particularmente em
Havana e em outros pontos turísticos da ilha. Dessa maneira, não se
trata de meros estereótipos folhetinescos, mas da realidade concreta dos
trabalhadores em algumas regiões de Cuba. Todas as situações por que
passa Chala terminam culminando com o modo de o menino estar na escola,
apresentando problemas de conduta (como
indica o título do filme). No entanto, não é apenas o menino que passa
por dificuldades para estudar; também Yeni (chamada pelos outros alunos
de “palestina”, por ser de outra região) não consegue se manter na
escola, na medida em que ela e seu pai (que está em Havana por uma única
“oportunidade” de trabalho), em função da lei, deveriam estar em outra
cidade.
Parece
ser um princípio de composição a questão do trabalho, na medida em que
as três personagens principais, Carmela, Chala e Yeni, têm seus destinos
diretamente influenciados por ele; no entanto, as formas de trabalho
dos três se opõem, revelando aspectos da sociedade cubana atual,
formando uma contradição.
De
um lado, temos o trabalho de Carmela, professora que ainda usa uma
máquina de escrever “para escutar as palavras”, como ela mesmo diz. O
trabalho com a educação é um dos pontos fundamentais para a construção
do socialismo desde a Revolução Cubana (um dos marcos do processo é a
transformação de quartéis em escolas).
Em uma cena do filme, vemos a professora ensinando o pensamento de Jose
Marti (herói da independência cubana no século XIX) e, em outra, vemos
as crianças na sala de aula entoando uma canção que, segundo a letra,
mostra o desejo das crianças de serem como o “Che”. O trabalho de
Carmela é ambientado em um espaço conservado. Podemos lê-lo como
o conjunto de valores revolucionários e que parcela da população
pretende conservar. De outro lado, entretanto, temos as imagens de
degradação (em que muitas vezes vemos o busto de Jose Marti) da capital
cubana, em que se ambientam o trabalho precário de Chala e do pai de
Yeni. Tais condições de trabalho ganham força no chamado “Período
Especial”, em Cuba, crise que se inicia com o declínio da União
Soviética, e se evidencia durante toda a década de 1990. Essa, se a
leitura não estiver errada, parece ser a contradição central do filme.
Em
tempos de retomada das relações diplomáticas entre Cuba e Estados
Unidos, vêm à tona as contradições centrais não resolvidas pelo processo
revolucionário. A história (num mundo em que há um projeto histórico
revolucionário, como Cuba) e a ideologia entram em tensão com as
condições materiais do presente. O filme parece não apontar um horizonte
em que se mantenha o projeto socialista.
–
Membro das equipes de português do Colégio Santa Maria, Santa Cruz e do Cursinho Popular da ACEPUSP.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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