PICICA: "Nesse mês de dezembro faz 100 anos que foi publicada a obra-prima de
Lima Barreto: “Triste Fim de Policarpo Quaresma”. O escritor pagou do
próprio bolso por uma edição barata, cheia de “gatos” – como ele dizia
–, e que representava sua aposta maior para entrar na “República
Brasileira das Letras” que se montava bem nos inícios do século XX. Ou
melhor, das poucas letras. Só isso explica porque um autor do quilate de
Lima Barreto tentou por três vezes entrar na Academia Brasileira de
Letras, todas elas sem sucesso.
Mais que lamentar, vale a pena
refletir sobre os motivos desse fracasso institucional, e acerca dos
motivos que fizeram com que Lima Barreto só começasse a ser reconhecido
pela crítica a partir dos anos 1970."
COLUNA
‘Triste Fim’ faz cem anos com jeito de 2015
23/Dez 00h10
(atualizado 23/Dez 14h35)
Lima Barreto pagou um alto preço por fazer uma literatura evidentemente negra e de crítica social
Nesse mês de dezembro faz 100 anos que foi publicada a obra-prima de
Lima Barreto: “Triste Fim de Policarpo Quaresma”. O escritor pagou do
próprio bolso por uma edição barata, cheia de “gatos” – como ele dizia
–, e que representava sua aposta maior para entrar na “República
Brasileira das Letras” que se montava bem nos inícios do século XX. Ou
melhor, das poucas letras. Só isso explica porque um autor do quilate de
Lima Barreto tentou por três vezes entrar na Academia Brasileira de
Letras, todas elas sem sucesso.
Mais que lamentar, vale a pena refletir sobre os motivos desse fracasso institucional, e acerca dos motivos que fizeram com que Lima Barreto só começasse a ser reconhecido pela crítica a partir dos anos 1970.
A saída não é, com certeza, cair no “vitimismo fácil”, que azeda qualquer interpretação e enreda o escritor em sua época e destino. Afinal, Lima Barreto é mais. De um lado, ele foi, sim, vítima de sua situação: ganhava a vida como amanuense e era arrimo de família desde jovem, uma vez que perdeu a mãe – uma neta de escrava –, ainda menino, e também o pai, que ficou totalmente alienado a partir de 1912. No entanto, passividade não era o nome de Lima Barreto: ele construiu seu grupo e criou estratégias diferentes de inserção no ambiente literário local. Basta lembrar de seus colegas diletos, alguns deles oriundos do curso da Politécnica – o qual Lima Barreto deixou inconcluso. Juntos fundaram a revista Floreal e participaram da mesma confeitaria: a “Papagaio”, onde até o bichano que dava nome ao estabelecimento ficava bêbado a partir da calada da noite. Mas Lima Barreto, ao menos em seu contexto, teve que se contentar também com um menos, se levarmos em conta o tamanho de suas aspirações. Não conseguiu ser aceito nas instituições de prestígio cariocas e sofreu uma espécie de veto disfarçado, recoberto pela indiferença.
Entre tantos mais e menos, melhor explorar as razões do silêncio que se abateu sobre o escritor. Em primeiro lugar, é sabido que Lima Barreto não fazia o “tipo comportado”; estilo que a Academia Brasileira de Letras estimava nesse momento, mesmo que não oficialmente. O escritor era amante contumaz da bebida, e foi internado duas vezes no Manicômio Nacional, em 1914 e 1918, por esse mesmo motivo. Os testemunhos de época o descrevem sempre um pouco ébrio, com seu terno roto, sapatos sem brilho, meias de duas cores e chapéu amassado, perambulando pelas ruas do Rio de Janeiro. Ele era o quase anti-modelo de Machado de Assis ou de João do Rio, esse último um dândi ironizado (injustamente, digamos de passagem) por Lima.
Por sinal, Lima Barreto publicara anos antes, em 1909, “Recordações do Escrivão Isaias Caminha”, romance à clef que descrevia os bastidores de uma redação de jornal, rapidamente reconhecida por todos: esse era segredo de Polichinelo que o próprio escritor tratou de desvendar. O jornal da ficção se chamava O Globo, mas a inspiração vinha do poderoso Correio da Manhã; periódico que Lima era inclusive colaborador, e tinha por lá publicado seu “Triste fim de Policarpo Quaresma”, sob a forma de folhetins.
Já em “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, nosso escritor, sem dó nem piedade, desancava com o periodismo, com os colegas de redação e com o ambiente dos “jornais burgueses”. Ele se via como um Balzac tropical, a denunciar as mazelas desse “quarto poder da República”. Mas se essa era uma estratégia premeditada – ser incluído pela provocação – o tiro lhe saiu pela culatra. A partir daí os colegas de profissão trataram de agir quase corporativamente, e decretaram uma espécie de censura velada, que afetou seriamente a carreira e as projeções do autor. É certo que Lima não parou por aí: publicou contos, escreveu pequenas reportagens, contos, outros romances; enfim, insistiu. Mas a sorte, pelo menos em seu próprio contexto, parecia traçada.
Mas há um terceiro motivo que gostaria de explorar, sem fazer conta de resultado certo. Numa época em que o censo brasileiro revelava a existência de uma população composta por mais de 70% de negros, mestiços, pardos e morenos, podia-se contar nos dedos de uma mão aqueles que se definiam como “escritores negros”. Não me refiro à cor da pele ou à classificação externa. Faz literatura negra quem toma essa questão como parte de sua obra, e assim a define. Nesse sentido, Machado de Assis e João do Rio, apesar de serem morenos, nunca se entenderam como tal e muito menos definiram sua literatura a partir desse viés. Não se trata de julgar e muito menos definir literatura por uma opção de cunho pessoal. Ao contrário, literatura não é questão de votação ou de eleição, e se existisse um pleito eu sagraria os três como vencedores.
Meu problema é outro: o preço que Lima Barreto pagou por fazer uma literatura evidentemente negra e de crítica social. Seus personagens eram suburbanos e morenos – com cores e cabelos detidamente descritos --; a situação social que descrevia procurava alcançar um Rio de Janeiro mais alargado; e a postura de Lima era de direta contestação.
“Triste Fim” é um livro nervoso. Nele, tudo parece estar em pauta: a figura do herói, o patriotismo, a loucura, a violência, a república e a frágil cidadania experimentada nesse contexto de início do século, em que se prometeu muito e se entregou bem pouco. Celebramos, assim, 100 anos de um livro irônico, sensível e desesperançado. Os paralelos com nossos dias são quase gritantes, se não fossem “tristes”. Nunca se acreditou tanto nesse país sempre projetado para o futuro. Da mesma forma que Lima Barreto, poucas vezes tantos terminaram o ano com um cobertor tão justo: falta tecido e a esperança virou pano escasso.
Lilia Moritz Schwarcz é professora da USP e Global Scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças", “As barbas do imperador", “O sol do Brasil" e “Brasil: uma biografia”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil” e “Histórias Mestiças”. Atualmente é curadora adjunta do Masp.
Mais que lamentar, vale a pena refletir sobre os motivos desse fracasso institucional, e acerca dos motivos que fizeram com que Lima Barreto só começasse a ser reconhecido pela crítica a partir dos anos 1970.
A saída não é, com certeza, cair no “vitimismo fácil”, que azeda qualquer interpretação e enreda o escritor em sua época e destino. Afinal, Lima Barreto é mais. De um lado, ele foi, sim, vítima de sua situação: ganhava a vida como amanuense e era arrimo de família desde jovem, uma vez que perdeu a mãe – uma neta de escrava –, ainda menino, e também o pai, que ficou totalmente alienado a partir de 1912. No entanto, passividade não era o nome de Lima Barreto: ele construiu seu grupo e criou estratégias diferentes de inserção no ambiente literário local. Basta lembrar de seus colegas diletos, alguns deles oriundos do curso da Politécnica – o qual Lima Barreto deixou inconcluso. Juntos fundaram a revista Floreal e participaram da mesma confeitaria: a “Papagaio”, onde até o bichano que dava nome ao estabelecimento ficava bêbado a partir da calada da noite. Mas Lima Barreto, ao menos em seu contexto, teve que se contentar também com um menos, se levarmos em conta o tamanho de suas aspirações. Não conseguiu ser aceito nas instituições de prestígio cariocas e sofreu uma espécie de veto disfarçado, recoberto pela indiferença.
Entre tantos mais e menos, melhor explorar as razões do silêncio que se abateu sobre o escritor. Em primeiro lugar, é sabido que Lima Barreto não fazia o “tipo comportado”; estilo que a Academia Brasileira de Letras estimava nesse momento, mesmo que não oficialmente. O escritor era amante contumaz da bebida, e foi internado duas vezes no Manicômio Nacional, em 1914 e 1918, por esse mesmo motivo. Os testemunhos de época o descrevem sempre um pouco ébrio, com seu terno roto, sapatos sem brilho, meias de duas cores e chapéu amassado, perambulando pelas ruas do Rio de Janeiro. Ele era o quase anti-modelo de Machado de Assis ou de João do Rio, esse último um dândi ironizado (injustamente, digamos de passagem) por Lima.
Por sinal, Lima Barreto publicara anos antes, em 1909, “Recordações do Escrivão Isaias Caminha”, romance à clef que descrevia os bastidores de uma redação de jornal, rapidamente reconhecida por todos: esse era segredo de Polichinelo que o próprio escritor tratou de desvendar. O jornal da ficção se chamava O Globo, mas a inspiração vinha do poderoso Correio da Manhã; periódico que Lima era inclusive colaborador, e tinha por lá publicado seu “Triste fim de Policarpo Quaresma”, sob a forma de folhetins.
Já em “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, nosso escritor, sem dó nem piedade, desancava com o periodismo, com os colegas de redação e com o ambiente dos “jornais burgueses”. Ele se via como um Balzac tropical, a denunciar as mazelas desse “quarto poder da República”. Mas se essa era uma estratégia premeditada – ser incluído pela provocação – o tiro lhe saiu pela culatra. A partir daí os colegas de profissão trataram de agir quase corporativamente, e decretaram uma espécie de censura velada, que afetou seriamente a carreira e as projeções do autor. É certo que Lima não parou por aí: publicou contos, escreveu pequenas reportagens, contos, outros romances; enfim, insistiu. Mas a sorte, pelo menos em seu próprio contexto, parecia traçada.
Mas há um terceiro motivo que gostaria de explorar, sem fazer conta de resultado certo. Numa época em que o censo brasileiro revelava a existência de uma população composta por mais de 70% de negros, mestiços, pardos e morenos, podia-se contar nos dedos de uma mão aqueles que se definiam como “escritores negros”. Não me refiro à cor da pele ou à classificação externa. Faz literatura negra quem toma essa questão como parte de sua obra, e assim a define. Nesse sentido, Machado de Assis e João do Rio, apesar de serem morenos, nunca se entenderam como tal e muito menos definiram sua literatura a partir desse viés. Não se trata de julgar e muito menos definir literatura por uma opção de cunho pessoal. Ao contrário, literatura não é questão de votação ou de eleição, e se existisse um pleito eu sagraria os três como vencedores.
Meu problema é outro: o preço que Lima Barreto pagou por fazer uma literatura evidentemente negra e de crítica social. Seus personagens eram suburbanos e morenos – com cores e cabelos detidamente descritos --; a situação social que descrevia procurava alcançar um Rio de Janeiro mais alargado; e a postura de Lima era de direta contestação.
“Triste Fim” é um livro nervoso. Nele, tudo parece estar em pauta: a figura do herói, o patriotismo, a loucura, a violência, a república e a frágil cidadania experimentada nesse contexto de início do século, em que se prometeu muito e se entregou bem pouco. Celebramos, assim, 100 anos de um livro irônico, sensível e desesperançado. Os paralelos com nossos dias são quase gritantes, se não fossem “tristes”. Nunca se acreditou tanto nesse país sempre projetado para o futuro. Da mesma forma que Lima Barreto, poucas vezes tantos terminaram o ano com um cobertor tão justo: falta tecido e a esperança virou pano escasso.
Lilia Moritz Schwarcz é professora da USP e Global Scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças", “As barbas do imperador", “O sol do Brasil" e “Brasil: uma biografia”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil” e “Histórias Mestiças”. Atualmente é curadora adjunta do Masp.
Os artigos publicados pelos colunistas são
de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as
ideias ou opiniões do NEXO.
Fonte: NEXO
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