dezembro 19, 2015

O Clã: Subterrâneos de uma Família. POR Eduarda Amaral (OBVIOUS)

PICICA: "É na abertura de Anna Karenina, que Léon Tolstoi profere uma de suas mais conhecidas e geniais falas, a qual diz que "todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz da sua própria maneira". E esta parece ser a frase que melhor caracteriza o enredo deste recente lançamento argentino, o qual retrata uma família unida no crime, evidenciando que famílias modelo "comercial de margarina ", também podem ter muito a esconder ..." 


O Clã: Subterrâneos de uma Família


É na abertura de Anna Karenina, que Léon Tolstoi profere uma de suas mais conhecidas e geniais falas, a qual diz que "todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz da sua própria maneira". E esta parece ser a frase que melhor caracteriza o enredo deste recente lançamento argentino, o qual retrata uma família unida no crime, evidenciando que famílias modelo "comercial de margarina ", também podem ter muito a esconder ...


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Família Puccio fictícia. Ao final do texto, há uma foto da verdadeira.

O Clã - mais recente filme de Pablo Trapero ( Família Rodante, Nascido e Criado, Leonera, Abutre e Elefante Branco ) —  foi lançado no Brasil recentemente já com troféus em sua bagagem. Agraciado com o Leão de Ouro, no Festival de Veneza, sucesso de bilheteria em seu país de origem, é o longa metragem argentino indicado para o Oscar, na categoria de melhor filme estrangeiro. 

Apesar deste longa ter diversos aspectos interessantes, fica aquém de seu potencial. Em comparação a algumas obras primas da mesma nacionalidade, deixa muito a desejar. Não atinge a profundidade do thriller O Segredo de Seus Olhos ( Juan José Campanella, 2010 ) ou mesmo o cinismo da construção de personagens de Nove Rainhas ( Fabián Bielinsky, 2000). Tem diversos aspectos técnicos primorosos, mas falta a reação química que caracteriza as grandes obras cinematográficas. 

Possui uma fotografia bem cuidada (Fotografia Julián Apezteguía), com destaque para alguns planos seqüências notáveis, que conferem dinamismo e tensão a cenas importantes. A reconstituição histórica também é bastante cuidadosa, composta por cenários e figurinos que reproduzem com esmero os anos 1980. 

A trilha sonora de Vicente D´Elía, contudo, parece, em alguns momentos , equivocada, apesar da escolha de boas músicas, que fazem parte de uma excelente seleção eclética, a qual transita entre Ella Fitzgetrald , The Kinks , Seru Giran e David Lee Roth, por exemplo. 


Na seqüência final do filme, a canção escolhida Sunny Afternoon, da banda The Kinks, parece se adequar mais a um filme de Guy Ritchie ( Jogos Trapaças e Dois Canos Fumegantes e Snatch: Porcos e Diamantes) e seus contraventores desleixadamente cools, do que a um filme argentino, no qual o traço principal do frio assassino patriarca da família era seu caráter diabólico repulsivo. Nada cool. A cena, que progride para um clímax inesperado, eivado de dramaticidade, perde muito de intensidade, devido à falta de coerência de sua trilha sonora. 

O roteiro conta a história verídica de uma família de contraventores argentinos, que atuou na década de 1980. O chefe da quadrilha que praticava sequestros, seguidos de execução das vítimas, é o frio patriarca da família, Arquimedes Puccio (interpretado magistralmente por Guillermo Francella), que era um empresário e contador ligado ao regime militar. 

Sua trama propõe reflexões interessantes acerca de aspectos obscuros ligados ao fim do período ditatorial na Argentina e sobre relações familiares tidas como perfeitas. A primeira delas levanta a reveladora questão sobre as ramificações da violência nas entranhas do governo argentino pós ditadura, mostrando que nem tudo são flores, como pode parecer a um observador menos atento. Que o desmonte do regime autoritário repressivo que mais matou gente na América do Sul não ocorre de forma abrupta, após a queda de seus principais agentes. 

A política mudou, mas os cães da violência e o aparato que lhes dava sustentação persistem causando males profundos à sociedade argentina. Segundo conseguiu se comprovar, durante a repressão militar, Puccio fazia parte de um grupo anticomunismo que prendia e torturava suspeitos. Finda a Ditadura, sua índole sanguinária é canalizada para a liderança de uma quadrilha de sequestros e extorsões, com altas conexões no governo argentino. 

Apesar de não atingir um grau de excelência na caraterização de cada personagem, individualmente, a película consegue retratar as contradições que podem existir dentro do conceito de família nuclear tradicional, composta por um pai, uma mãe e diversos filhos. Vista em apenas um fotograma, a família parecia o exemplo perfeito do que a Literatura tradicional costuma destacar como núcleo familiar ideal para a boa criação de filhos, para o desenvolvimento de cidadãos modelos que se encaixarão perfeitamente na sociedade. Contudo, ao mostrar cenas do cotidiano familiar, o filme retrata a discrepância entre a vida cotidiana normal da família e seu lado obscuro. 

E aí é mostrada em toda a sua crueldade a expressão "esqueletos no armário". Diferentemente das histórias que estamos acostumados a ver em filmes sobre famílias de mafiosos, nas quais os crimes são praticados longe da vida familiar, nesta trama, grande parte das maldades ocorre dentro do lar dos Puccios, uma confortável residência em um bairro nobre. Ao mesmo tempo em que vemos uma dinâmica familiar que se desenrola com aparente normalidade, na qual o pai estuda com os filhos e a mãe serve a mesa de jantar e reza com todos, há um cômodo na casa onde as vítimas ficam presas e são tratadas de forma desumana. 

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Esta dualidade evidencia bem a aura de perversidade que envolve as relações na família Puccio. O ponto forte do enredo reside justamente em mostrar que cada membro da mesma família pode lidar com as mesmas circunstâncias de forma distinta. Ele evidencia que cada um de nós possui um certo grau de escolha em relação à construção de nossas vidas. 

O casal Puccio tinha cinco filhos, três rapazes e duas meninas. Cada um deles, exerce um papel diferente na dinâmica familiar . Cada um escolhe reconhecer ou não enxergar as situações tenebrosas que ocorrem literalmente sob o mesmo teto que eles. A alienação ou o conhecimento é uma escolha pessoal de cada filho, e as atitudes que tomam se diferenciam de acordo com o que cada um espera receber ou consegue abrir mão. Se deseja ou não receber as benesses do pai, do dinheiro cunhado a sangue que ele lhes provê. 

Arquimedes Puccio é um homem sádico e calculista. Lida com suas vítimas com requintes de crueldade. Executa sumariamente prisioneiros subjugados, cujos familiares já haviam pago o resgate, sem oferecer o menor problema. Seu sadismo é tanto que ele seqüestra pessoas que mantinham relações com membros de sua família ou com gente conhecida. Assim, o primeiro crime mostrado é o seqüestro de um amigo do filho mais velho, Alejandro (Peter Lanzani), que sua quadrilha executa sem a menor dó ou piedade.

O relacionamento entre Puccio e Alejandro é a mola condutora do roteiro. Mola um pouco frouxa. Apesar das boas atuações de ambos os atores, falta peso no relato da dinâmica entre os dois. Em algumas cena, parece que o enredo é mais calcado em mostrar situações do que em explorar profundamente as emoções de seus personagens. Falta densidade. 

O primogênito é o braço direito do pai nos sequestros. Alejandro é um rapaz de caráter fraco, sobre o qual Puccio exerce sua dominação e extremo sadismo. Duas das vítimas dos sequestros, Ricardo Manoukian e Eduardo Aulet, eram amigos de Alejandro. Apesar das crises de consciência que têm em relação à maldade que o pai impõe em suas vidas, falta-lhe forças para se livrar da influência e submissão afetiva e material do pai. Arquimedes, por sua vez, cobra do filho lealdade. Joga na sua cara que foi ele quem lhe deu dinheiro para abrir sua loja de material esportivo e também articulou sua carreira no Rugby. Alejandro chegou a jogar na seleção argentina, Os Pumas, como eram conhecidos. 

Há uma cena brilhante na qual o pai recompensa o filho por seus serviços entregando-lhe uma pilha de dinheiro bem volumosa. Naquela situação, fica evidente a total falta de moral em relação ao mérito daquele dinheiro. O pai literalmente compra a consciência do filho, que , por seu turno, vende-se em troca das vantagens proporcionadas. É um pai ensinando a seu filho que o indivíduo deve buscar seu prazer acima de tudo. Criando uma dinastia de psicopatas. 

O caçula dos rapazes é o único que tem coragem e caráter suficientes para abandonar a família. Por iniciatava própria, se afasta de todos, abrindo mão da estrutura familiar e das benesses proporcionadas pelo dinheiro dos raptos. Mostra-nos que é possível desvencilhar-se de uma estrutura familiar perversa. Mas que, para isso, têm de se ter coragem, abdicar deste sistema familiar de proteção primária mesmo que extremamente distorcido. 

Seguindo o bordão tradicionalista, "família que é unida, permanece unida", em uma operação policial no final de 1985, os Puccios são presos, pai, mãe e quatro dos filhos que permaneceram no convívio familiar. As penas foram concedidas de acordo com o grau de envolvimento de cada membro da família nos crimes. A filha caçula, que tinha doze anos na época, foi o único membro da família logo inocentado.

No término da sessão, lembramos da sábia reflexão que nos incita a frase de Tolstoi reproduzida no resumo deste artigo :

Desconfie sempre das aparências. Mesmo quando a situação parece ser perfeita. Ou, melhor, especialmente nestes casos. 
 
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A verdadeira família Puccio

Eduarda Amaral

A Arte nos permite brincar com a realidade. Desconstruir verdades estagnadas, colorindo-as com novas cores. Psicóloga, Mestre em Relações Internacionais e Especialista em Políticas Públicas, trabalhei em cinema .

Fonte: OBVIOUS

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