dezembro 13, 2015

John Lennon: um legado de simbologia crítica. Por PAULO DENISAR FRAGA (Blog da Revista Espaço Acadêmico)

PICICA: "A passagem de setenta e cinco anos do nascimento (out. 1940) e de três décadas e meia da morte (dez. 1980) de John Lennon, o líder intelectual dos Beatles e um dos mais influentes músicos pop da história do rock, dá lugar, uma vez mais, a rever aspectos relevantes do seu legado público, reconhecendo a sua extensa influência artística e recuperando o sentido crítico de seu pensamento e de sua obra."



John Lennon: um legado de simbologia crítica

PAULO DENISAR FRAGA*

John-Lennon

A passagem de setenta e cinco anos do nascimento (out. 1940) e de três décadas e meia da morte (dez. 1980) de John Lennon, o líder intelectual dos Beatles e um dos mais influentes músicos pop da história do rock, dá lugar, uma vez mais, a rever aspectos relevantes do seu legado público, reconhecendo a sua extensa influência artística e recuperando o sentido crítico de seu pensamento e de sua obra.

Música e crítica social

Afora a língua afiada ao paladar da crítica salobra, o viés mobilizador do ícone John Lennon foi a música de cunho político-social, ainda que sua produção não se resuma a isso. Em Working class hero, ao bom estilo Bob Dylan, discorreu sobre a difícil situação dos trabalhadores. Em favor das minorias sociais, The woman is the nigger of the world é uma canção com a sensibilidade de reunir numa única frase, sincronicamente, o repúdio à condição subalterna das mulheres e dos negros.
Com Give peace a chance desencadeou uma campanha mundial pela paz contra a Guerra do Vietnã. Em Happy Christmas (war is over), após a guerra, como o nome diz, desejou Feliz Natal para brancos e negros, amarelos e vermelhos, reconhecendo a pluralidade étnica e a multiculturalidade, temas que destacados intelectuais resgatam ao centro do debate social. Em Power to the people, música inspirada em uma entrevista homônima concedida a Robin Blackburn e Tariq Ali, do periódico de esquerda The Red Mole (publicada no Brasil no livro de Ali, O poder das barricadas: uma autobiografia dos anos 60), criticou novamente as condições do trabalho e preconizou a derrubada dos seus exploradores em favor do poder para o povo.

Imagine, a sua principal criação e uma das mais belas músicas já feitas, ao questionar a religião, a propriedade, as nações, a ganância, a fome e, de certa forma, o valor de troca (“imagine todo mundo vivendo para o dia de hoje”), defendendo uma vida comum e fraterna entre os homens, representou, para a formação de muitos adolescentes, que ainda não tinham ouvido falar de Marx, uma espécie de prelúdio do Manifesto do partido comunista.

Cobrado sobre os grandes concertos beneficentes, vistos como uma espécie de função social da música, Lennon revelou-se crítico da caridade assistencialista. Porém, para lembrar um poema de Brecht, não incorreu propriamente no caso de “Quem não sabe de ajuda”, pois de muitas campanhas participou até se convencer de que isso só geraria maior dependência, que jamais ofereceria uma solução positiva à pobreza, favorável à autonomia e afirmação dos povos. E quando se declarou socialista não foi hipócrita: assumiu a sua condição-contradição de rico. Por essas e outras compreende-se por que há quinze anos Fidel Castro considerou meritório inaugurar, em Havana, um monumento oficial em homenagem a Lennon.

Legado pop e MPB

Assim como fora com os Beatles, a influência de Lennon espalhou-se desde as maiores estrelas do rock internacional, como Roger Waters, ex-Pink Floyd, Elton John, que lhe dedicou a belíssima canção Empty garden, e Bono Vox, o engajado vocalista do U2. E isso não foi diferente no Brasil.
A propósito, Renato Russo, talvez o maior compositor da nova geração do rock nacional, emergida nos anos 1980, contestou a suposta incompatibilidade entre o rock e a MPB alegando que pensar isso seria desconhecer o rock’n’roll, que não é uma música só de jovens para jovens, assim como a MPB não é só de velhos para velhos. É uma ideia que apreende a dinâmica da música acima dos preconceitos culturais de uma certa xenofobia dos idiomas e ritmos. No que se refere especificamente ao pop rock, tanto mais isso é verdadeiro.

Embora os Beatles tenham influenciado sobremaneira o rock brasileiro desde a Jovem Guarda (um exemplo foi a clássica Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones, versão de Os Incríveis para a música italiana de Gianni Morandi e Franco Migliacci), foi na MPB que Lennon se tornou mais referido, provavelmente superando qualquer outro nome estrangeiro. A mais enigmática dessas músicas talvez seja aquela que melhor confirme a tese de Russo. Para Lennon e McCartney, de Fernando Brandt, Lô e Marcio Borges, diz:Eu sou da América do Sul/ Eu sei vocês não vão saber/ Mas agora sou cowboy/ Sou do ouro, eu sou vocês/ Sou do mundo, sou Minas Gerais”. Afinal, uma boa pista sobre a sua letra está na indagação do sociólogo José Roberto Zan: “Será que eles não estariam anunciando um novo regionalismo articulado a linguagens universais?”

As referências seguem, em letras mais explícitas. A morte de Lennon foi lamentada na bela Canção do novo mundo, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos: “… como pode acontecer/ Um simples canalha mata um rei/ Em menos de um segundo/ Oh! Minha estrela amiga/ Por que você não fez a bala parar?”. Em Loucos de cara, Kleiton e Vitor Ramil fazem, possivelmente, referência ao irônico fato de Lennon e Yoko terem feito doações à polícia novaiorquina para compra de coletes à prova de balas e ele ter morrido assassinado: “Não importa que Lennon arme no inferno a polícia civil”. O inferno era o lugar para onde ele cogitara correr o risco de ir, tal como julgara ter ocorrido com Elvis.

Em Lennon, Dalto queixou-se do impacto da sua ausência criadora: “Lennon mande alguma coisa nova pra nós/ Há muito tempo não se ouve uma voz/ Que deixa o coração ser mais feliz/ […]/ Você faz tanta falta por aqui…” E também dos efeitos de uma sociedade dominada pelo pragmatismo individualista, que não conhece mais a fraternidade da filosofia hippie: “Lennon o amor já não é mais o mesmo aqui/ E a gente sente um certo medo de pedir/ Pra todo mundo ser um pouco mais feliz”.
Belchior e José Luis Penna, em Comentário a respeito de John, lembraram da campanha contra a guerra: “Sonho escrevo em letras grandes (de novo!)/ Pelos muros do país/ Sob a luz do teu cigarro, na cama”. Contam ao amigo que as coisas não são mais as mesmas: “John, o tempo andou mexendo com a gente sim!”. E arrematam com uma pinçada de finíssima sensibilidade: “A felicidade é uma arma quente”. Este era o nome de uma música do “The white album”, dos Beatles, em 1968, posteriormente regravada pelo U2. Um título que Lennon tirou de uma revista de armas, mas que, na verdade, é uma frase sobre a dialética errática da vida, dominada pela lógica do empuxo da luta pela felicidade. Era uma frase que viria a se refletir sobre ele mesmo, para quem o uso figurado colidiu tão tragicamente com a sua outra face, a cara-metade que lhe confere sentido, isto é, o antípoda realístico. Ele perde a vida porque seu assassino queria se tornar “conhecido”.

Numa expressão sintética desse dúplice legado, grandes nomes da MPB e do rock nacional gravaram, na série “Letra & Música”, um CD em tributo a John Lennon que inclui belas interpretações e versões, como Jealous guy na voz de Zé Ramalho e Você ainda pode sonhar, uma inteligente versão do Ira que leva o ritmo de Lucy in the sky with diamonds a dialogar com a histórica frase pós-Beatles de Lennon: “o sonho acabou”.

O que essas canções confirmam, reconhecendo na MPB um ícone do rock e do pop rock, é o sentimento de que, na música ou em suas declarações políticas, John Lennon ultrapassou fronteiras rítmicas como figura sintética de uma geração que aprendeu a contestar e a dizer não.

Estilos em aberto e simbologia crítica

Quando dos 20 anos de sua morte, apresentando a reedição da entrevista de 1970 à Rolling Stone (publicada no Brasil sob o título Lembranças de Lennon), Yoko Ono disse que John sempre fora um artista inovador, que gostava de experimentar novos recursos. Que fora punk antes de Sid Vicious e rapper antes do rap. E que nos anos 2000, talvez, adorasse Internet e tivesse se juntado aos rappers. Bem, são cogitações impalpáveis sobre o que seria feito hoje de seu estilo irreverente, numa sociedade tecnológica de muita informação, individualismo e pouca reflexão. O que é possível avaliar é o sentido crítico de seu legado, a partir do que ele realmente representou durante a emergência social juvenil e a grande reviravolta dos costumes na segunda metade do século XX.

Não por acaso, além da reedição completa de sua obra musical pós-Beatles em 2010, Lennon continua gerando extensa bibliografia, como atestam, dentre outros, os livros de: Philip Norman, John Lennon: a vida; Gary Tillery, John Lennon: o ídolo que transformou gerações; John Blaney, A vida de John Lennon; James A. Mitchell, John Lennon em Nova York: os anos de revolução; Davies Hunter, As cartas de John Lennon; Yoko Ono, Memórias de John Lennon; Cynthia Lennon, John. Isto para citar apenas alguns traduzidos no Brasil, sendo que, para as datas de 2015, ainda pode ser referido o recém lançado em inglês, John Lennon: a celebration of his life and legacy, de Ben Nussbaum, bem como a edição especial da revista internacional Newsweek, que também destaca o duradouro legado de Lennon.

Já entre os filmes, do ponto de vista da militância política do ex-Beatle, é indispensável mencionar o documentário Os EUA X John Lennon, dirigido por David Leaf e John Scheinfeld, que enfoca a relação de Lennon com grupos militantes como os Panteras Negras nos EUA e a perseguição contra ele promovida pelo governo Nixon e o FBI, que redundou no processo para deportá-lo do país nos anos 1970. Para o stablishment estadunidense Lennon passara a representar uma ameaça nacional por seus envolvimentos políticos com bandeiras progressistas da esquerda e, especialmente, por seu grande empenho na luta contra a guerra que os Estados Unidos promoviam no Vietnã.

Agregado a isso, as renovadas homenagens e referências nos aniversários de seu nascimento (9.out.1940) e morte (8.dez.1980), ocorridos no final de duas décadas, mas relembrados geralmente de 5 em 5 anos, reiteram, no espaço do público, que a sua voz crítica e criadora marcou um lugar efetivo na cultura contemporânea, com uma força simbólica que não tem páreo na história de nenhum outro músico. Corroboram-no, em 2015, seja um grande evento como o “Imagine: John Lennon 75th Birthday Concert”, no Madison Square Garden, em Nova York, com astros da música internacional que rememoram suas canções e sua mensagem, seja um ato espontâneo como o do pianista alemão que tocou Imagine na rua, em frente à casa de shows Bataclan, para homenagear as vítimas dos atentados terroristas em Paris. E, no Brasil, num protesto artístico contra a homofobia, a cantora Daniela Mercury ilustra seu CD do ano ­­– “Vinil virtual” – posando nua com sua esposa numa foto que imita a icônica capa com John e Yoko na revista Rolling Stone de janeiro de 1981.

Por fim, como muito já se discutiu e afirmou, a arte não precisa – nem deve, o que lhe seria empobrecedor – estar cingida a temas imediatamente políticos para que se compreenda o seu potencial crítico e emancipador. A arte como tal tende a ser enfática e esquiva. Ela não é cômoda. Ela geralmente desafia o seu intérprete a ser sujeito. Expressando verdades e contradições, sujeita também à crítica, ela porta liames de negatividade. E a obra de artistas socialmente engajados, como Lennon foi, merece destaque e aplausos nesse dialético terreno.


denisar

* PAULO DENISAR FRAGA é Filósofo e professor da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG). Publicado originalmente em Página 13

Fonte: Blog da Revista Espaço Acadêmico

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