PICICA: "A fundamentação do juiz que inocentou um usuário de maconha
vale por aulas e aulas sobre aplicação e caráter vinculante dos
princípios jurídicos."
Vestígios de civilização
A fundamentação do juiz que inocentou um usuário de maconha vale por aulas e aulas sobre aplicação e caráter vinculante dos princípios jurídicos.
Marcio Sotelo Felippe *
Em Futuros Amantes, Chico Buarque
imagina que daqui a milênios, quando o Rio for uma cidade submersa,
escafandristas virão explorar os segredos da sua amante, sua casa, seu
quarto, suas coisas, sua alma. E que sábios em vão tentarão decifrar o
eco de antigas palavras, mentiras, retratos, vestígios de estranha
civilização.
Imaginemos
que sábios, daqui a milênios, encontrem, entre vestígios de antiga
civilização, a sentença de Rubens Casara, da 43ª. Vara Criminal do Rio
de Janeiro. Casara absolveu um homem, preso em flagrante, que mantia em
sua casa plantio da erva da qual se extrai a maconha.
Outros
milênios a partir daí correrão para que os sábios do futuro expliquem
esse fragmento de estranha civilização. Porque descobrirão que havia
duas drogas muito populares.
Uma
era depressora do Sistema Nervoso Central, agindo ainda sobre fígado,
coração, vasos e parede do estômago. Com o aumento da concentração da
droga no organismo a pessoa apresentava diminuição da resposta aos
estímulos, fala pastosa, dificuldade para andar. Em concentrações mais
altas o indivíduo entrava em coma e podia morrer. Dependendo da
quantidade ingerida, os efeitos em geral eram diminuição da capacidade
de discernimento, entorpecimento fisiológico, redução da capacidade de
tomar decisões racionais, ansiedade, depressão, parada respiratória e
morte. Entre os consumidores dessa droga, cerca de 11% se tornavam
dependentes. Estava claramente associada a doenças graves, como câncer,
cirrose hepática, etc.
Outra
provocava euforia, sonolência, perda de noção do tempo e espaço, perda
de coordenação motora, de equilíbrio, taquicardia, perda temporária de
inteligência. Tal como a outra, provocava dependência em aproximadamente
11% dos usuários e estava associada a doenças graves, câncer, problemas
respiratórios, etc.
A
primeira droga era lícita, estimulada pelo meio social, propagandeada
nos órgãos de comunicação, tinha experts com grande prestígio
internacional, admirados pela técnica e refinamento de seus saberes.
A
segunda era ilícita. Quem usava ou comercializava podia ter sua vida,
ou parte dela, destruída pelo Estado, que sobre eles fazia desabar toda a
sua feroz capacidade repressiva. Em todo o mundo, milhares de pessoas
eram presas pelo seu uso ou comercialização. O comércio ilegal gerava
uma rede de delinquência, e por vezes organizações poderosas,
praticamente subestados, nas quais tudo se podia, toda sorte de
violências, assassinatos, torturas. Recursos imensos eram desperdiçados
pelos Estados para combater essa droga, drenando riqueza que poderia ser
usada para melhorar a condição de vida das pessoas que, lembrarão os
sábios do futuro, viviam em estruturas sociais iníquas, em que
pouquíssimos concentravam praticamente toda riqueza e bilhões viviam as
agruras da fome e de uma vida miserável e sem esperança.
Competirá
em vão aos sábios do futuro explicar essa loucura social. Muitas
torpezas e muita estupidez histórica podem ter uma lógica interna,
absolutamente insustentável do ponto de vista moral, mas uma explicação.
Pode ser deslindada, por exemplo, a estupidez de queimar mulheres como
bruxas na Idade Média como manutenção e reprodução da estrutura de poder
da Igreja Católica. Podem ser deslindados os motivos asquerosos pelos
quais judeus foram massacrados ao longo da História. Mas no caso das
duas drogas cujos efeitos descrevi, a primeira o álcool, a segunda a
maconha, os sábios do futuro poderão concluir que os vestígios desta
estranha civilização indicavam que foi o tempo da mera esquizofrenia
social, ou seja, ausência de racionalidade que decorre da dissociação
com o real.
A
sentença do juiz Rubens Casara é antológica porque em poucas palavras,
com uma clareza solar, de um lado faz emergir todos os problemas
filosóficos, sociais, morais e jurídicos que dizem respeito à questão
das drogas, e de outro o respeito a garantias e direitos fundamentais.
A
droga é uma questão de saúde pública, não de polícia. Punir um adicto
ou impor qualquer sanção ou restrição de direito a ele é o mesmo que
punir quem sofre de, digamos, enxaqueca. A adição é doença. E quem
consegue usar recreativamente maconha ou qualquer outra droga sem se
tornar adicto deve ser tratado como todos nós outros que ingerimos
álcool social e recreativamente.
O
uso é uma decisão do indivíduo. Sendo uma decisão do indivíduo, a
licitude de sua obtenção deve ser, por inexorável decorrência lógica,
admitida, com o que milhares de pessoas deixarão de ter suas vidas
destruídas pelo envolvimento com a proibição indevidamente decretada
pelo Estado. E estas pessoas são, quase sempre, os pequenos, homens e
mulheres pobres sem qualquer esperança de uma vida melhor que, por isso,
se arriscam a perder parte de suas vidas em cadeias ou, às vezes, a
própria vida.
Afora
esses aspectos mais gerais, filosóficos, a sentença do juiz Casara
demole práticas perversas da persecução penal às drogas. Por exemplo, a
associação automática, a priori, entre quantidade e tráfico. A decisão
faz prevalecer a presunção de inocência, que inexiste em regra na
prática policial e judiciária nesses casos. Examinando as provas com
lógica implacável, conclui que as mudas, não obstante a quantidade,
somente poderiam ser para uso próprio. Na esmagadora maioria dos casos
policiais, promotores e juízes agem como se houvesse um software em suas
mentes. Quantidade x, enter, condenação por tráfico. No julgamento em
curso no STF um ministro chegou a propor a exata quantidade de droga que
seria suficiente para caracterizar o tráfico. Sim, isto facilitaria
muito. Juízes não precisariam mais usar a faculdade de raciocinar e
colher provas e também dispensar esse chato princípio da presunção de
inocência.
Ressalto,
por fim, a parte final da fundamentação do juiz Casara porque vale por
aulas e aulas sobre aplicação e caráter vinculante dos princípios
jurídicos. Tudo que precisa ser dito sobre esse aspecto nela está: “
... viola o princípio da proporcionalidade punir com pena privativa de
liberdade um indivíduo que, para fugir dos riscos gerados tanto pela
‘indústria da ilegalidade’ quanto pela opção política que aposta no
modelo bélico de enfrentamento de um problema que é, na realidade, de
saúde pública, opta por cultivar a substância que pretende usar”.
Os
sábios do futuro ficarão perplexos com esta civilização ensandecida,
mas uma coisa não poderão deixar de dizer: investigando os vestígios de
uma estranha civilização, havia numa cidade chamada Rio de Janeiro um
juiz.
*Marcio Sotelo Felippe é advogado e jurista. Exerceu o cargo de procurador geral do Estado de São Paulo de 1995 a 2000
Créditos da foto: Maj. Will Cox/ Georgia Army National Guard
Fonte: Carta Maior
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