PICICA: "o marcante deste encontro foi
ouvir David Capistrano descrever fatos aparentemente triviais, porém
reveladores da naturalidade com que ele explicitava, a partir da práxis,
a integração da clínica e da saúde pública. Depois que lhe falei do meu
interesse em trabalhar como médico neurologista, ele, na época diretor
de um Centro de Saúde que prestava serviços mais complexos e iniciava a
incorporação da assistência médica individual, começou a me contar as
discussões que tinha com os médicos do Centro de Saúde sobre a maneira
como exerciam a prática clínica. Inesquecíveis dois questionamentos que
motivaram tais discussões com clínicos: o primeiro, sua crítica aos
pediatras que receitavam inúmeros medicamentos e não esclareciam
adequadamente as mães sobre o processo de adoecimento e terapêutico dos
seus filhos e, o segundo, uma crítica técnica aos pediatras por
receitarem anticonvulsivante para todas as crianças que apresentavam
convulsão febril, pois, nesses casos, o emprego de anticonvulsivante é
indicado apenas em circunstâncias especiais."
De clínica e saúde pública: lições de David Capistrano
Por Ricardo Menezes* | Publicado originalmente na revista Página 13
Pertenço a uma geração que, quando iniciou os estudos no ensino
superior, ainda ecoava na memória a movimentação de parcela importante
da sociedade brasileira em torno de um conjunto de ideias generosas,
tais como: a importância de caminharmos rumo a um Brasil soberano,
próspero economicamente e socialmente justo. A instauração do Regime
Militar, em 1964, veio a interromper essa dinâmica e um dos seus
subprodutos foi o eco mais intenso que, naquela quadra de tempo,
ouvíamos: o das lutas dos estudantes universitários e secundaristas por
mais vagas nas universidades públicas e pela democratização do país. Ao
menos no meu caso, a compreensão das bandeiras do movimento estudantil
deu-se pela síntese de dois fortes sentimentos, ou seja, a igualdade
social está umbilicalmente ligada à relação entre a organização da vida
socioeconômica e às liberdades conquistadas pela sociedade.
Durante seis anos me preparei,
inabalavelmente, para me especializar em neurologia clínica. Ou melhor,
não tão inabalável assim, pois no segundo ano de curso, após o começo da
disciplina de Higiene, o professor português Mendes Monteiro, incitou a
inquietação e a reflexão individual e coletiva. Dizia ele: “eu só não
sou comunista porque sou católico”, ao passo que comparava a pífia
situação de saúde da maioria da população brasileira com indicadores que
assinalavam a exclusão e a profunda desigualdade econômica, social e
cultural vigente no país.
Graduei-me com convicção sobre a minha
opção de seguir umas das mais belas e difíceis especialidades da
medicina interna, a neurologia clínica. Meses depois fui aprovado em
concurso público para residência médica em Medicina Interna – Neurologia
Clínica, na Rede de Hospitais do Instituto Nacional de Assistência
Médica e Social (INAMPS) do Ministério da Previdência e Assistência
Social (MPAS), no Estado do Rio de Janeiro.
Mas, a dificuldade de inserção no mercado
de trabalho médico existente na ocasião no Rio de Janeiro e – não tão
racional assim – a busca de novas perspectivas e horizontes, levou-me,
então, a escolher a cidade de São Paulo como lugar para viver.
Depois de me instalar em São Paulo entrei
em contato com o médico sanitarista David Capistrano Filho, cujos
familiares eu havia conhecido no início da década de 1970 no Rio de
Janeiro, que, na época, era secretário-geral do Partido Comunista
Brasileiro, no Estado de São Paulo.
Durante nossa primeira conversa David
Capistrano me fez um relato acerca do campo da Saúde no Estado de São
Paulo. Informou-me que a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo
(SES-SP), no processo de reforma do Serviço Público Estadual, ocorrida
de 1967 a 1969, havia instituído a carreira de médico sanitarista e, no
início de 1976, mediante convênio com o Ministério da Saúde e a
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, criado o curso
concentrado para formação desses profissionais de modo a acelerar o
preenchimento das lacunas existentes nos quadros da carreira.
Informou-me, ainda, sobre as atribuições dos médicos sanitaristas e
destacou o fato de que o provimento das direções de diversas instâncias
técnico-administrativas da SES-SP era privativo dos quadros da carreira,
sendo o caso do provimento das direções dos Centros de Saúde
ilustrativo do viés contraditoriamente – afinal vivíamos sob o Regime
Militar – democrático da carreira de médico sanitarista: o provimento
não se dava por indicação, mas sim por escolha pública – periódica e
baseada na classificação obtida em concursos internos pelos membros da
carreira.
No entanto, o marcante deste encontro foi
ouvir David Capistrano descrever fatos aparentemente triviais, porém
reveladores da naturalidade com que ele explicitava, a partir da práxis,
a integração da clínica e da saúde pública. Depois que lhe falei do meu
interesse em trabalhar como médico neurologista, ele, na época diretor
de um Centro de Saúde que prestava serviços mais complexos e iniciava a
incorporação da assistência médica individual, começou a me contar as
discussões que tinha com os médicos do Centro de Saúde sobre a maneira
como exerciam a prática clínica. Inesquecíveis dois questionamentos que
motivaram tais discussões com clínicos: o primeiro, sua crítica aos
pediatras que receitavam inúmeros medicamentos e não esclareciam
adequadamente as mães sobre o processo de adoecimento e terapêutico dos
seus filhos e, o segundo, uma crítica técnica aos pediatras por
receitarem anticonvulsivante para todas as crianças que apresentavam
convulsão febril, pois, nesses casos, o emprego de anticonvulsivante é
indicado apenas em circunstâncias especiais.
O que se seguiu? Corria o ano de 1979
quando fiz o concurso para frequentar o curso de especialização em Saúde
Pública, obtive a aprovação e passei a fazer jus a bolsa – ajuda de
custo – que era paga aos alunos enquanto durasse o curso. No ano
seguinte ingressei, por concurso, nos quadros da carreira da SES-SP e
fui ser médico sanitarista na vida.
* Ricardo Fernandes de
Menezes é médico sanitarista da Secretaria de Estado da Saúde de São
Paulo e da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. Texto extraído de
memorial elaborado para inscrição em concurso para professor assistente
da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Fonte: CEBES
Nenhum comentário:
Postar um comentário