PICICA: "Clareza, erudição e paixão. A reedição dos textos de Paulo Emílio Sales
Gomes recoloca em cena um pioneiro da crítica – o filme como motivo para
a reflexão. São artigos que vão do entusiasmo com os primeiros
cineastas até o declínio – segundo o crítico – do público de gerações.
Sales Gomes, morto em 1977, foi um militante fervoroso da imagem. A
antologia O cinema no século prova que suas críticas sobreviveram ao
teste do tempo."
Paulo Emílio Sales Gomes: crítica e convicção
Paulo Emílio Sales Gomes (1916 – 1977) foi um crítico com rara percepção do seu trabalho. A publicação de seus textos jornalísticos, O Cinema no século (Companhia das Letras, 2015), comprova o pioneirismo na militância cinematográfica, na clareza de exposição e na interpretação original. Militante comunista refugiado em Paris, professor universitário, ficcionista bissexto, Sales Gomes escreveu de muitas formas. Na revista Clima ou na fundação do Clube de cinema, na filmoteca do Museu de Arte Moderna (MAM), depois na Cinemateca Brasileira – seus artigos permanecem relevantes para pensar o cinema como cultura. Não envelheceram como seu conhecido ensaio (Cinema: trajetória no subdesenvolvimento) em que o vocabulário de teórico cultural sofre de jargão. Faz sentido – hoje – pensar em cinema nacional sob a ótica de ocupante e ocupado? Na imersão militante pelo cinema brasileiro, e no trabalho acadêmico, a defesa de uma tese faz peso e enrijece o pensamento.
A vitalidade e originalidade de suas críticas, que tentarei exemplificar, resultam de um estilo de escrita claro e direto e da ousadia em defender suas ideias. O preço a pagar é considerável. Não incorrer em obscuridades, vazias ou não, é abdicar de um refúgio e da proteção de escolas de pensamento. Ver na obra cinematográfica os movimentos de uma trajetória universal, marcas da atividade de reflexão, é oferecer-se ao julgamento futuro.
A antologia O cinema no século recupera séries inteiras de textos.[1] O primeiro, Citizen Kane, é de 1941. O último, O Tio Oscar, é de 1973. Os textos cobrem o início das primeiras máquinas modernas de projeção. A origem francesa e americana dos cinematógrafos, as primeiras recepções da nova arte, os primeiros gênios – Chaplin, Méliès, D.W. Griffith.
No cinema as noções de importância histórica, significação como linguagem e a de valor artístico não caminham necessariamente juntas. O declínio de Méliès não deve, porém, ser atribuído exclusivamente aos métodos artesanais de produção. É preciso levar em consideração a sua fidelidade inabalável ao tipo de filme que criou. Le Voyage dans la Lune [Viagem à Lua], de 1902, estabelece princípios que não serão sensivelmente alterados até o encerramento em 1913 das suas atividades cinematográficas. Esses onze anos assistiram à constituição de uma linguagem cinematográfica que Méliès ignorou. (...) Méliès inventou não apenas o abecedário cinematográfico mas constituiu um amplo vocabulário. Aquilo que ignorou durante toda sua carreira cinematográfica foi a sintaxe, um dos grandes títulos da glória griffithiana. (...) Não há mistério na atualidade e juventude de Georges Méliès. Foi ele o primeiro cineasta com um estilo [Atualidade de Georges Méliès, 1959].
Se considerarmos o cinema simultaneamente em seus diversos aspectos, como linguagem, arte, indústria e expressão social, Griffith é incontestavelmente a mais poderosa personalidade de toda a sua história. Ele foi o principal artesão das normas básicas do novo meio de expressão e o primeiro a utilizá-las com fluência e de forma coerente;(...) Griffith só compreendeu seu destino quando este estava fundamentalmente realizado, isto é, por ocasião do lançamento de Nascimento de uma nação. Em última análise, a obra teve para o seu autor um papel semelhante ao que exerceu frente aos contemporâneos: revelar a grandeza do cinema. [D.W. Griffith, 1958]
Selecionar trechos mais conclusivos das críticas de Sales Gomes não é apenas arbitrário. Algo precioso é perdido. Suas análises históricas trazem um anedotário próprio e que resulta no tom despretensioso de suas afirmações. A separação entre testemunho pessoal e análise erudita é artificial. Sua cultura não era de ordem unicamente bibliográfica, e é impressionante que tenha andado pelos continentes assistindo e discutindo cinema – o mundo era muito maior no século passado.
Uma das histórias mais pitorescas, até onde sei, é “O tio Oscar”. Sales Gomes recria a busca pelo modelo humano da estatueta entregue pela Academia, busca que começou nos anos 1950, em solo americano – em vão. Continuou com André Bazin, em Cannes – em farsa. É na Bahia que o crítico entra como o detetive que encontra um contrabandista chamado Oscar. O homem não apenas confirma que é o modelo original como diz “uma frase que se transformou para mim num dogma” – As fitas são sempre mais interessantes do que as críticas. Sales Gomes volta a saber do agora animador de terreiro quando ele aparece como tema de um documentário carioca sobre umbanda, na Tenda do Tio Oscar.
Mas são os doze escritos dedicados a Orson Welles que melhor representam o longo percurso na compreensão das imagens alheias. Em visita ao Brasil, e auxiliado pelo diplomata Vinicius de Moraes, o cineasta leu o primeiro texto – de 1941 – diante do crítico (“Tive a impressão de que a curiosidade com que percorreu o texto foi seguida de certo desapontamento”). Os outros textos são de 1958. Embora pareça injusto, pela extensão, devem ser comparados com o artigo de Ruy Castro (“G de gênio, Ex de exuberante”, Saudades do século XX). Por ele sabemos que parte da originalidade de Citizen Kane deve-se ao roteirista Herman J. Mankiewicz, que frequentava a mansão de Hearst e sabia, entre outras coisas, que rosebud era como o magnata chamava o clitóris da amante (as informações são de Pauline Kael).
Ele foi não só um menino prodígio mas alguém que ainda em plena adolescência conheceu os mais espetaculares sucessos. Ao mesmo tempo, como tanta gente, Orson Welles nunca se tornou realmente um adulto...
Sales Gomes pode acenar para obviedades psicológicas, mas não faz disso o seu método. Ao elencar as virtudes fundamentais de Welles – voz, presença, talento como diretor, americanismo – elege a última como a mais importante: “Diferentemente do que acontece com os europeus, o vanguardismo não foi para Welles uma reação contra o peso de uma tradição ilustre, pelo contrário, significou amor pelo passado, desejo de absorvê-lo, interpretá-lo, comunicá-lo”. A análise intercala interpretações formais dos movimentos de câmera em Cidadão Kane com as motivações do diretor, e arrisca defender um “parentesco psicológico” entre Welles e Kane.
A trajetória individual serve para a análise dos mecanismos do cinema como indústria cultural, e dificilmente outro cineasta cairia tão bem para a função – Welles foi chamado para renovar o cinema dos anos 1930 com suas experimentações trazidas do teatro e do rádio. O culto ao autor, por parte do crítico, às vezes atinge o cume do elogio e esquece de retornar, mas retorna. Hoje sabemos que a genialidade de Welles também era trabalho de equipe, e é possível supor uma digital compartilhada.
Os jovens têm razão quando consideram que o cinema posterior a 1940 não aprendeu tudo o que Cidadão Kane ensinava. Com efeito, se as lições de linguagem podem ser aprendidas, o mesmo não ocorre com o estilo de um autor que, na melhor das hipóteses — que é sempre o pior dos casos —, pode simplesmente ser imitado. Só depois das audácias da linguagem cinematográfica da primeira fita de Welles terem sido perfeitamente absorvidas pelo cinema é que poderemos emitir um juízo definitivo sobre Cidadão Kane, verificar se permanece jovem, apesar de desamparado pela novidade, isto é, se a sua modernidade está condicionada pela atualidade da linguagem ou por uma intemporal comunicabilidade do estilo.
Há um paralelo entre Welles e Sales Gomes. Mais uma vez, não parece justo, e no entanto... Alex Ross, em artigo sobre os 100 anos de Welles, observa que o diretor é lembrado como um artista que naufragou, alcançou cedo o sucesso e logo entrou em declínio (e cuja imagem pública é dividida entre devotados ao gênio obscuro e desmistificadores dessa mesma genialidade). Os lances dantescos da biografia de Welles são bem conhecidos, e parecem a invenção de uma mitologia pessoal e da vida real de um artista incomum. A questão, claro, o que é real? Mas não é ela que serve para pensar um paralelo entre o cineasta e o escritor. Ross relata uma conversa telefônica em que Wells, recriminado como um diretor bom, mas que “não dá dinheiro”, responde: Disappointments continue to affect my confidence - but never my resolve. É sobre as decisões que importam. O sacrifício que impõem e o que resulta delas.
Sales Gomes ainda usou sua clareza e inteligência na ficção, mas não creio que tenha levado sua paixão. Durante décadas, e até o fim da vida, foi através dela que levou a militância pelo cinema ao limite de afirmar que as fitas não importam desde que sejam nossas. Feitas por nós, pensadas por nós. Estranha conclusão, que convidaria ao lugar comum de uma política cultural em iminente naufrágio. E não. Afinal, é só no texto que uma biografia pode ser estruturada de forma sumária e artificial. Como Welles, Sales Gomes permanece um enigma que arrasta lances dantescos - fugas, exílios, começos falhados, amores, desejos de justiça, finais abruptos - e uma decisão intransigente de partir já, a qualquer custo e com os meios possíveis, para tourear com palavras e imagens. Nunca foi fácil.
[1] As notas de rodapé de Carlos Augusto Calil (que fez também a seleção e o prefácio) incluem referências sempre pontuais às citações de obras muitas vezes esquecidas. Quando necessário, incluem informações biográficas que ajudam a contextualizar o tema do artigo.
Vinicius Oliveira Sanfelice
Isto - abre os dedos num gesto obsceno - é tanto meu quanto seu. Roço, capino e vigio. Não sou músico..Fonte: OBVIOUS
Nenhum comentário:
Postar um comentário