dezembro 06, 2015

A floresta que nunca foi virgem. Por Camilo Rocha (NEXO JORNAL)

PICICA: "Durante séculos o mundo conviveu com a ideia da Amazônia como lugar de rara presença humana. É uma noção que tem origem em descrições de viajantes e cientistas dos séculos 17 e 18 e que atravessou o século 20. Nas últimas décadas, descobertas arqueológicas revelaram outra perspectiva: a de que a Amazônia, até a chegada dos europeus, era uma região com cidades populosas, redes de estradas, sociedades hierarquizadas e manejo sofisticado de plantas e solo." 

ESPECIAL


A floresta que nunca foi virgem

Camilo Rocha

Durante séculos o mundo conviveu com a ideia da Amazônia como lugar de rara presença humana. É uma noção que tem origem em descrições de viajantes e cientistas dos séculos 17 e 18 e que atravessou o século 20. Nas últimas décadas, descobertas arqueológicas revelaram outra perspectiva: a de que a Amazônia, até a chegada dos europeus, era uma região com cidades populosas, redes de estradas, sociedades hierarquizadas e manejo sofisticado de plantas e solo.

Grandes cidades

Foi por volta de 1542 que o frei espanhol Gaspar de Carvajal descreveu “grandes cidades” à beira dos rios da região, no primeiro relato europeu do tipo. Carvajal era cronista da pioneira expedição do explorador Francisco de Orellana, que desceu o rio Amazonas a partir dos Andes. Uma destas cidades ficava no exato local onde hoje se ergue Santarém, fazendo da metrópole paraense um assentamento urbano muito mais antigo que sua data de fundação oficial, 1661. “As margens do rio Amazonas eram densamente ocupadas”, diz Eduardo Neves, Professor Titular de Arqueologia Brasileira da USP e um dos principais pesquisadores do passado amazônico.

Vida urbana

Segundo o professor Neves, as descobertas não permitem estimar o tamanho populacional desses agrupamentos urbanos. O que se sabe é que existiam tamanhos diversos de cidade e que estradas chegavam a conectar dezenas de localidades, criando redes de troca e comunicação. A região do povo kuikuro, no alto Xingu, por exemplo, teve identificados 19 povoados pré-colombianos, ligados por um sistema de estradas largas, distando em média entre 3 e 5 km uns dos outros. Um estudo encabeçado pelo arqueólogo americano Michael Heckenberger descreve diferentes categorias de aglomerados: centros maiores com praças centrais e desenho radial de ruas, vilas menores com praças e vilas sem praça central. Os centros maiores poderiam ter populações de 2.500 e 5.000.

MALHA VIÁRIA

Vilas e cidades eram interligadas por redes de estradas

Ambiente preparado

Os habitantes da Amazônia pré-colombiana interferiram muito no meio ambiente, contrariando a ideia de que eram basicamente "caçadores-coletores" se abastecendo da floresta selvagem. Para Heckenberger, obras públicas desenvolvidas através de engenharia habilidosa (como praças, ruas, fossos e pontes) “sugerem um ambiente construído altamente elaborado”. O material de construção vinha principalmente do solo, que, de acordo com Neves, foi “a principal matéria-prima utilizada pelos povos antigos da Amazônia para erguer as estruturas de suas construções, seus canais de irrigação, seus locais de culto religioso".

UMA CIDADE DO ALTO XINGU

Localidade contava com obras públicas de engenharia habilidosa e agricultura diversificada no entorno 

Agricultura

A tradicional imagem do aglomerado indígena ilhado no meio da floresta densa também é contestada pelos achados mais recentes. De acordo com Heckenberger, o entorno das vilas e cidades era comumente caracterizado por parques e terras agrícolas, que se estendiam por áreas amplas. Segundo o pesquisador americano, áreas de entorno podiam incluir “plantações de mandioca, campos de sapé, bosques de piqui”. A domesticação de plantas era ampla, incluindo ao menos 83 espécies locais, como mandioca, abacaxi, pimenta, cacau e tabaco.

PLANTIO VARIADO

Algumas das espécies domesticadas pelos habitantes da Amazônia pré-colombiana 

SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS DA AMAZÔNIA

Número de escavações fornece indícios da ocupação populacional da região 

Cacicados

Muitas dessas sociedades amazônicas eram hierarquizadas. Os pesquisadores usam o termo cacicado para definir uma organização social existente à época da chegada dos europeus que incluía estratificação social e concentração política de poder. Descobertas arqueológicas apontam para estratégias de política regional, redes de troca, circulação de bens e mobilização de mão de obra. Ainda assim, não há registros de aparato estatal, burocracia ou exército permanente. De acordo com Neves, os cacicados “tinham uma tendência à fragmentação, à dissolução”. O comportamento está relacionado à fartura da floresta, segundo o pesquisador. Para ele, estamos acostumados a pensar sob o ponto de vista da escassez, do estoque e do planejamento. Mas na abundância, “não faz mesmo o menor sentido se pensar em acumulação ou obrigação, principalmente no longo prazo”.

Geoglifos

Geoglifos são grandes desenhos realizados no solo, geralmente visíveis na sua totalidade apenas do alto. Foram identificados pela primeira vez nos anos 70 pelo paleontólogo Alceu Ranzi. Com o solo cada vez mais exposto pelo desmatamento, mais geoglifos vieram à tona, com destaque para um grupo de cinco descobertos em Rondônia em 2010. As marcações encontradas na Amazônia são compostas de uma trincheira ou valeta escavada no solo. Chamam a atenção de pesquisadores por suas formas diversas (círculos, quadrados, hexágonos, octógonos) e pela “precisão geométrica”, nas palavras de Ranzi. "Eram locais de encontro e celebrações", de acordo com Denise Schaan, arqueóloga da Universidade Federal do Pará (UFPA). Para Denise, as dimensões de alguns sítios sugerem uma força de trabalho de 200 pessoas com um prazo de construção de até 3 meses. Levando em conta as famílias e necessidade de produzir alimentos, "provavelmente uma população de 600 pessoas estaria envolvida na construção" dos geoglifos, explica a pesquisadora da UFPA. As datas de construção dos geoglifos variam de 1.000 a 2.000 anos atrás, aproximadamente.
 
Geoglífo de Santa Isabel, localizado no Acre, estado que reúne aproximadamente 300 ocorrências de marcações no solo de grande porte. FOTO: Edison Caetano

Terra Preta

As cidades amazônicas não contavam com construções de pedra, o que colaborou para reduzir os vestígios dessa ocupação. A principal evidência é o solo em si: as extensas áreas da região que contém a chamada terra preta. Trata-se de “antrosolo”, ou seja, solo que traz a marca da intervenção humana. A terra preta contém carvão vegetal e fragmentos de cerâmica e é de duas a três vezes mais nutritiva para a agricultura do que a terra “não-preta”. De tonalidade mais escura, estima-se que ocupe 3,2% da área total da Bacia Amazônica. A maior parte se originou entre 500 e 2.500 anos atrás. Quantidade significativa dela é encontrada em montículos formados perto de habitações indígenas, como parte de sistemas organizados que incluem canais, lagoas artificiais e ruas.
Escavação arqueológica no sítio Hatahara, em Iranduba (AM) FOTO: Valdirene Moraes

Restos de objetos

Considerando que a maior parte dos materiais usados pelos povos amazônicos do passado eram biodegradáveis, fragmentos de cerâmica são de grande valia na pesquisa dos arqueólogos na Amazônia. Grandes concentrações de fragmentos fornecem pistas de que no local havia uma densidade populacional elevada, além de indícios sobre tecnologia, dieta e identidade. Cerâmicas tapajônicas são conhecidas por suas alças com cariátides, termo que designa uma figura feminina esculpida. “A área urbana de Manaus tem mais de quarenta sítios. Alguns deles, como no bairro do Japiim, localizados sob o pátio onde ônibus diariamente fazem manobras sobre fragmentos de urnas funerárias com mais de mil anos de antiguidade”, escreveu o professor Neves.

O QUE AS CERÂMICAS DIZEM

Objetos são uma das principais fontes de informações para pesquisadores 


A Bacia Amazônica conta com cerca de 2.700 sítios arqueológicos, mas muitos artefatos são descobertos pela população quando escavam para uma obra em casa. Na imagem, urna fúnebre com 
rosto humano.


Vaso encontrado no sítio de Hatahara, um dos principais da Amazônia, localizado em Iranduba, na região metropolitana de Manaus. Há sinais de ocupação dessa área que vão de 450 AC até 1640 DC.


Objeto escavado no sítio de Hatahara. Vestígios fornecem informações sobre tecnologia, hábitos sociais e concentração populacional existentes na região. Construções eram de material biodegradável.


Vasos com cariátides, palavra grega que designa uma figura feminina servindo de apoio a uma escultura, são típicos da cultura tapajônica. Muitos exemplares já foram encontrados na região de Santarém, no Pará.

O que aconteceu com toda essa gente?

As populações amazônicas originais tiveram o mesmo destino de vários outros povos indígenas ao redor do mundo: morreram aos milhares, vitimados por doenças trazidas pelos europeus contra as quais não tinham resistência, como gripe, varíola e sarampo. Outro fator foram os massacres promovidos pelos europeus. “O rio Urubu leva esse nome por causa da quantidade de urubus atraídos pelos cadáveres de índios mortos na área’, lembra Neves. Os exploradores dos séculos 17 e 18, que ajudaram a criar o mito da floresta intocada, já encontraram a região esvaziada e reflorestada. Estudiosos tem um termo para o “apagão” populacional da região: colapso demográfico.

O "vazio" como política de governo

Sucessivos governos brasileiros no século 20 estimularam a ocupação do “vazio” amazônico. O governo militar, sob o slogan nacionalista “integrar para não entregar”, incentivou a imigração de pessoas de outras regiões do Brasil. “Em junho de 1970, o Presidente Emílio Garrastazu Médici percorreu o superpopuloso Nordeste empobrecido depois de uma seca particularmente penosa. Chocado com as condições que viu, Médici voltou-se para a válvula de escape mais rápida e dramática: uma estrada para franquear as terras desertas da selva ao povo que vivia apinhado no Nordeste”, conta reportagem da revista Reader’s Digest, de 1973, sobre o projeto da rodovia Transamazônica. Na imagem acima, uma propaganda da construtora Queiroz Galvão, hoje envolvida na obra de Belo Monte, celebra o nascimento do “primeiro menino a nascer naquele admirável mundo novo que estamos ajudando a construir”.



Este especial contou com a colaboração de Bruna Rocha, Eduardo Kazuo e Vinicius Honorato.

Produzido por Camilo Rocha.

Design por Simon Ducroquet e Ralph Mayer.

Desenvolvido por Wellington Freitas.

© 2015 Nexo Jornal

Fonte: NEXO JORNAL

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